quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Lévi-Strauss e o espírito dos insetos




Sérgio Medeiros
panambi@matrix.com.br
Escritor e professor de literatura na UFSC

A noção de que o mundo é povoado de outros sujeitos ou pessoas, além dos seres humanos, é uma concepção ameríndia, ou extra-ocidental, e pressupõe às vezes um monismo ao qual o pensamento ocidental (não a arte ocidental, bem entendido) parece resistir, como bem mostrou Philippe Descola, no seu já clássico Par-delà nature et culture (Gallimard, Paris, 2005). Descola é um dos mais ilustres herdeiros de Claude Lévi-Strauss, ao lado do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. No livro citado, Descola chama a atenção, inicialmente, para a hierarquia entre objetos animados e inanimados. Os animais e as plantas, por possuírem alma e subjetividade, como os povos ameríndios reconhecem, perceberiam os seres humanos como outro, porém, não necessariamente como humanos, gente. Para cada perspectiva, a sua pirâmide. Os insetos, no entanto, podem (ou não) ficar à margem dessa ordem (a comunidade das “pessoas”, num sentido amplo), correspondendo, entre os Achuar, àquilo que chamamos “natureza”, ao lado dos peixes e das ervas, que parecem ser destituídos de alma. Essa concepção não-dualista do mundo pode, enfim, ser mais ou menos radical, nesta ou naquela tribo amazônica, menos entre os Achuar e mais entre os Makuna, por exemplo, onde o fenômeno é evidente.

No centro das cosmologias ameríndias deparamos, então, guiados pela crítica etnológica de Lévi-Strauss e de seus herdeiros, Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro, com a complexa relação entre a subjetividade humana (e outras subjetividades, como deuses, espíritos, mortos) e os animais, relação que o perspectivismo tentará deslindar.

Se “os animais são gente, ou se vêem como pessoas”, eles possuiriam uma forma interna humana, a qual, geralmente, só os xamãs (seres transespecíficos) poderiam perceber. “Essa forma interna”, esclarece Viveiros de Castro, “é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal”. Os seres animados compartilhariam, como se pode deduzir, uma mesma essência, apenas sua forma visível difere, mas ela é enganosa, pois, no fundo, é uma “roupa” que se pode despir (concepção provavelmente panamericana).

A consulta aos quatro volumes das Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss, sem dúvida fornece numerosos exemplos que confirmam a teoria perspectiva e lançam luz, ainda, sobre o papel dos insetos na origem da cultura. Aos insetos, como vimos, nega-se às vezes que tenham “alma”, mesmo em cosmogonias indígenas, que poderão inseri-los, simplesmente, no reino “natural”. Em O Cru e o Cozido (Cosacnaify, São Paulo, 2004), primeiro volume das Mitológicas, há várias referências a larvas e insetos, destacando-se as formigas, dotadas de “espírito”: elas podem estar ligadas, segundo certos mitos, ao dom das plantas cultivadas (os seres humanos receberam seus bens culturais de animais, por mais humildes que estes pareçam). Os insetos, porém, são também “naturais”, e já estão presentes, de forma eloqüente, num trabalho anterior de Lévi-Strauss, Tristes Trópicos (Companhia das Letras, São Paulo, 2004), alimentando-se de secreções ou embriagados pelo suor de suas vítimas. Nas palavras de Lévi-Strauss, descrevendo sua estada no Brasil central, “ávidos por suor, brigam pelos locais mais favoráveis, comissuras dos lábios, olhos e narinas onde, como que inebriados pelas secreções de sua vítima, preferem ser destruídos ali mesmo do que voar”.

A possibilidade, trazida à tona pelo perspectivismo, de utilizar textos de Lévi-Strauss como referência para estudar, no mundo contemporâneo, as fronteiras cada vez mais porosas ou indecidíveis entre humanos e não-humanos, entre natureza e cultura, talvez seja a maior prova da atualidade do seu pensamento.

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