quinta-feira, 7 de abril de 2011

Billie Holiday: no fio da navalha, a essência visceral do jazz

Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.br
Jornalista, pesquisador e produtor cultural

Billie Holiday (7/4/1915 - 17/7/1959) foi a maior cantora de jazz de todos os tempos. Lady Day chegou a ser chamada de ‘Lester Young do jazz vocal’, numa referência ao grande expoente do sax tenor. E não é para menos, pois ninguém no canto jazzístico foi mais influente e deixou uma contribuição tão significativa quanto Billie. Os 95 anos de seu nascimento, em abril, e os 51 anos de sua morte, em julho, são momentos de reflexão sobre seu papel no universo do jazz moderno.

Sua voz, carregada de emoção, marcou uma inovação determinante no universo do jazz ao insinuar uma interpretação impregnada de lirismo e de sensualidade. A concepção do fraseado de Billie foi única e insuperável. E seu domínio sobre o que cantava foi completo. Nenhuma cantora, até hoje, conseguiu viver a música com a intensidade de Billie. O prazer e a dor, a sofisticação e a marginalização, os grandes clubes e a prisão, a sedução e a melancolia, a suavidade e a exasperação, o sucesso e a discriminação acentuaram os contornos que tornaram o mito Billie Holiday indestrutível.

A droga, a bebida, a prostituição, o racismo e a violência do cotidiano forjaram cicatrizes vivas em Billie e se tornaram determinantes no mosaico que compôs sua trajetória ao longo de 44 anos de vida. Uma vida pessoal sombria e uma performance cultuada como cantora maior do jazz marcaram a ascensão e a queda de Billie Holiday de forma dramática. À medida em que conquistava projeção como artista completa, Billie mergulhava fundo na autodestruição via álcool e droga. Billie lutou contra tudo e contra (quase) todos. Mas não resistiu à pressão que a cercou durante sua meteórica passagem pela vida norte-americana por quase quatro décadas e meia.

O jazz teve em Billie Holiday uma matriz inspiradora inigualável e uma permanente fonte de influências, além de uma cantora que provocou inovações e deixou um rastro invejável. Qualquer referência sobre Billie Holiday é um convite para ouvir seu canto único. Mesmo o mais desavisado, certamente, será seduzido por sua voz docemente amarga e por sua capacidade de viver a música com uma intensidade apaixonante e apaixonada.

Seu canto continua mais vivo que nunca e, graças às amplas possibilidades tecnológicas oferecidas pela remasterização digital, Billie Holiday vem tendo grande parte de suas interpretrações essenciais resgatadas. Assim, preciosidades gravadas a partir de meados da década 1930 até fins dos anos 50 estão em catálogo e vêm sendo relançadas. Hoje, já se encontra uma grande quantidade de CDs e de LPs traçando um amplo painel da trajetória da cantora mais visceral dos Estados Unidos. Nascida Eleanor Fagan Gough, teve o nome Billie escolhido pela mãe, Sadie, numa homenagem à atriz Billie Dove, e o sobrenome Holiday veio do pai, Clarence Holiday, músico que tocava com Fletcher Henderson.

Billie teve uma adolescência em meio à barra pesada e chegou a ganhar uns trocados fazendo serviços domésticos num bordel até fins dos anos 20, quando sua mãe levou-a para Nova York. Aí se envolveu novamente em um bordel e após algumas complicações passou a cantar no Harlem, até que em 1933 impressionou John Hammond e este conseguiu que Benny Goodman a ouvisse. Daí para a primeira gravação, foi um passo. E um passo decisivo para a carreira meteórica de Billie Holiday.

Hammond ouviu Billie cantando no Nonette Moore, um bar clandestino que existia na West 133rd Street. Aos 17 anos, ela era uma desconhecida e, segundo o próprio Hammond, “cantava como se tivesse conhecimento da vida”.

A Sony (Columbia) é a detentora de jóias como a primeira gravação da cantora, em 27 de novembro de 1933, em Nova York, a canção “Your mother’s son-in-law”, com Benny Goodman e sua orquestra trazendo nada mais nada menos que Goodman (clarineta), Charlie Teagarden e Shirley Clay (trompetes), Jack Teagarden (trombone), Art Karle (sax tenor), Buck Washington (piano), Dick McDonogan
(guitarra), Artie Bernstein )baixo) e Gene Krupa (bateria).

Esta e outras 152 canções com Billie Holiday, gravadas de 1933 a 1942, integram a coleção “The Quintessential Billie Holiday”, composta de nove volumes e que, no Brasil, foi lançada a partir de 1987. Todas as faixas foram remasterizadas digitalmente dos tapes analógicos originais.

As gravações desta fase trazem Lady Day acompanhada por pequenas formações, muitas delas lideradas pelo pianista Teddy Wilson. Cobras do primeiro time do jazz participam destas primorosas seções: Ben Webster (sax tenor), Roy Eldridge (trompete), Johnny Hodges (sax alto), Harry Carney (clarineta), Lester Young (sax tenor), Freddie Green (guitarra), Jo Jones (bateria), Benny Carter (sax alto), Harry Edson (trompete), Don Byas (sax tenor), Kenny Clarke (bateria), entre outros.

Billie também cantou com Fletcher Henderson, com Jimmie Lunceford, com o grande Count Basie e até com os ‘brancos’ de Artie Shaw. Mas, em 1939, optou por cantar no Greewich Village, no sofisticado Café Society, e na década de 40 consolidou sua reputação como maior cantora de jazz de seu tempo. O fundamental era como Billie Holiday cantava e não o que cantava.

Ao aliar técnica, flexibilidade e impacto vocal, Billie se credenciou a ser um divisor de águas no canto jazzístico e a influenciar uma legião de cantoras, permanecendo insuperável, principalmente, por sua extraordinária capacidade de transformar tudo o que cantava em música visceral e da melhor qualidade.

Poucas cantoras conseguiram, depois de Billie, articular o fraseado jazzístico com o sentido e a precisão de um instrumento como ela. Este aprimoramento de estilo foi conquistado não sem muita dor. Afinal, Billie Holiday sempre cantou o que vivenciou. E toda sua exploração de nuances e sua sutileza interpretativa conviveram no fio da navalha com a turbulência que marcou sua vida e com a rejeição explícita ao racismo.

Todo o sentimento de Billie está expresso em suas gravações e toda a atmosfera que envolvia sua vida pode ser sentida na carne em qualquer canção que tenha passado por sua voz. A sensibilidade em Billie Holiday aflora com impacto fulminante e seduz de cara. Na verdade, Billie acentuava o despojamento e o lirismo. O conceito de arte ganha contornos definitivos quando se ouve Billie Holiday devorar e cantar deliciosamente a essência do jazz.

Mas outras preciosidades gravadas por Lady Day pela Columbia também podem ser encontradas no mercado. Em “Billie, Ella, Lena, Sarah”, estão reunidas em 12 faixas Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Lena Horne e Sarah Vaughn. E em “Lady in Satin”, a cantora está ao lado de Ray Ellis e sua orquestra, em gravações de fevereiro de 1958, em Nova York.

A Blue Note, representada no Brasil pela EMI, também resgatou gravações de junho de 1942, em Los Angeles, de abril de 1951, em Nova York, e de janeiro de 1954, em Koln, na Alemanha, e lançou o CD intitulado “Billie’s Blues”, em 1988, contando com as participações de Red Mitchell (baixo), Buddy De Franco (clarineta) e Red Norvo (vibrafone), entre outros. Com gravações ao vivo e em estúdio, este disco tem o mérito de trazer Billie cantando alguns blues da pesada.

A Verve, por sua vez, resgatou gravações da década de 50 com Billie dominando tudo o que cantava, mesmo com a voz não tendo a força de antes. A maturidade prevalecia, apesar das marcas provocadas pela droga, pela bebida, pelo racismo; enfim, por toda a dor que cercou sua vida.

Em “Billie Holiday – The Silver Collection”, 14 faixas de 1956 e 1957, gravadas em Los Angeles, mostram a cantora junto a formações de pequeno porte onde despontam Ben Webster, Harry ‘Sweets’ Edison, Jimmy Rowles e Barney Kessel. Mesmo sendo uma coletânea, a música desta compilação é de grande valor artístico.

“The Billie Holiday Songbook” traz 14 canções gravadas entre 1952 e 58, com a cantora cercada de feras como Kenny Burrell (guitarra), Oscar Peterson (piano), Freddie Green (guitarra), Ray Brown (baixo), Roy Eldridge (trompete), Coleman Hawkins (sax tenor), Al Cohn (sax tenor), Harry ‘Sweets’ Edison (trompete), Barney Kessel (guitarra), entre outros. Aqui, o que conta é a alma de Billie Holiday dando mostras de vitalidade incomum e sustentando um corpo dilacerado, desesperançado e autodestruído. A colheita pessoal de Billie Holiday pode ter sido amarga, mas o fruto de sua criação musical foi doce e sedutor como nenhum outro. Billie não só transformava tudo o que cantava, imprimindo sua marca incomparável e inconfundível, como abriu o caminho para as gerações que beberam na sua fonte inesgotável. Por isso, o prazer toma conta de quem a ouve.

E “Last Recording” marca a associação entre Ray Ellis, sua orquestra e Billie Holiday, em Nova York, em 3, 4 e 11 de março de 1959, portanto, quatro meses antes de sua morte aos 44 anos, em 17 de julho. São 12 faixas devastadoras e arrepiantes pela intensidade emocional com que Billie fez questão de se expressar.

Passados 95 anos de seu nascimento e perto de completar 51 anos de sua morte, o canto de Billie permanece envolvente, como nos dias em que a dor, o prazer e a emoção caminhavam lado a lado em permanente desafio à lâmina da navalha, que marcou profundamente a trajetória de Billie Holiday.

A própia cantora nunca escondeu o tormento que marcou o início de sua vida. Em “Hear me talkin’ to ya”, de Nat Hentoff e Nat Shapiro, ela afirma: “Um dia eu e minha mãe estávamos com tanta fome que mal conseguíamos respirar. Fazia um frio infernal. Eu saí pela porta e andei da 145th Street até a 133rd, descendo a Seventh Avenue, parando em todos os lugares tentando conseguir emprego. Por fim, fiquei tão desesperada que parei no Log Cabin Club, dirigido por Jerry Preston. Eu disse a ele que queria uma bebida. Não tinha um níquel. Pedi gin (esta foi minha primeira bebida – não sabia a diferença entre gin e vinho) e tomei um gole.

- Pedi a Preston um emprego, disse a ele que era dançarina. Ele me disse para dançar. Eu tentei. Ele disse que eu fedia. Eu disse a ele que sabia cantar. Ele disse: cante. Num canto do bar havia um sujeito tocando piano. Ele atacou ‘Trav’lin’ e eu cantei. Os fregueses pararam de beber. Eles se viraram e olharam. O pianista, Dick Wilson, passou para ‘Body and soul’. Nossa, você precisava ter visto aquelas pessoas – todas começaram a chorar. Preston se aproximou, sacudiu a cabeça e disse: Garota, você venceu!”.

Foi assim que tudo começou. A partir daí, Billie Holiday mergulhou fundo e pagou um preço alto por sua ousadia.

terça-feira, 15 de março de 2011

Sonhos Imperfeitos

Rodrigo C. Vargas

Ondas rolando sobre pequenas cidades, frágeis. Cotidianos desaparecidos, selvagens. A terra tremendo, o ar furioso e contaminado. Centenas de imagens nipônicas resumindo tudo a pó, repetidas na minha frente. Sentado no sofá, alguma coisa mudou. Eu senti algo parecido com o que é comumente conhecido como Déjà vu. Não era meu e eu não conseguia lembrar. Depois comecei a relacionar as imagens. Apesar de saber que a história é feita de fatos repetidos, o que eu via não saiu de nenhum livro. Toda esse drama está claramente representado num clássico do cinema mundial: Sonhos de Akira Kurosawa, produzido em 1990.

A terra preta banhada de sangue e os gritos vindos de todos os lugares me remeteram ao sonho número seis, Monte Fuji em Vermelho. Neste capitulo, Kurosawa descreve o caos íntimo, uma premonição. Nem Dali conseguiu tocar tão fundo no inconciente. O desespero daqueles milhares aos pés do Monte Fuji em erupção, respirando o ar negro expelido de uma usina nuclear em chamas. No filme o homem que se diz responsável pela falha que expôs o povo à radiação diz preferir a morte rápida de um afogamento à lenta provocada pela radiação.

Akira conduziu sua obra com ternura, mesmo nos momentos viscerais. Portanto, por mais que tudo pareça pesadelo, o sonho é a forma que encontrou de mostrar que o caos modifica o homem quase sempre para melhor. No cinema a catástrofe foi causada pelo homem, a realidade que o Japão vive hoje é natural. Resta uma pergunta: natural ou naturalizada? Não há resposta. Não adianta tentar.

Os filhos do sol nascente não desejam a eterna repetição do recomeço. É assim desde Hiroshima e Nagasaki. É assim desde o princípio. A angustia desse povo estruturado é saber que o que vem de fora muitas vezes é mais forte do que o que vem de dentro. Essa é a verdadeira ordem natural das coisas. Espero que um dia mude.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Literatura e Carnaval: Fragmentos de um inventário da alegria



Miguel Leocádio Araújo
miguel.leocadio@hotmail.com
Mestre em literatura brasileira pela UFC

Quando Jorge Amado publicou seu primeiro romance em 1931, o Brasil já era O país do carnaval. O protagonista da narrativa retornava ao país depois de anos em Paris. Voltara afrancesado e pedante, achando que tudo aqui representava atraso. Ele aporta no Rio de Janeiro em pleno carnaval: a cidade ferve de calor e alegria e o samba corre em todos os ouvidos. Ele observa tudo entre o olhar crítico e lascivo e enfim rende-se aos encantos da festa.

Este exemplo nos dá uma impressão de que existe uma vertente da cultura letrada interessada no tema, a ponto de fixar sua atmosfera nas páginas de literatura. Nada mais cabível num país que, de forma bastante original, forjou para si um momento de catarse coletiva, dando indícios de uma identidade cujos traços de irreverência, crítica e insatisfação podem mostrar-se, embora escondidos sob a máscara da celebração com música, cores, imaginação e sensualidade. Materiais mais do que adequados para exercícios de plasticidade descritiva, que a literatura faz, entre as reflexões sobre o homem e sua condição. Os nossos escritores não ficaram alheios a isso, sobretudo na literatura do século XX.

Se mapearmos a produção literária brasileira, em diversos gêneros, observaremos a recorrência do tema. Desde João do Rio, uma tradição se fortaleceu. O cronista escreveu sobre a magia e a lascívia dos cordões, das guerras de confete, dos corsos, das fantasias, dos encontros às escuras e sobre como a Rua do Ouvidor se tornava intransitável. O seu carnaval era o da região central do Rio, com seus blocos de sujos e entrudos. Em “O bebê de tarlatana rosa”, seu conto mais conhecido, essas práticas são ficcionalizadas, porém envoltas numa atmosfera que beira o horror e causa nojo. Numa linguagem totalmente pessoal, o escritor manda seu recado: caídas as máscaras, pode-se encontrar podridão. Ele abriria, assim, caminhos para o Modernismo. Aliás a própria Semana de Arte Moderna ocorreu em fevereiro. Mera coincidência?

Mário de Andrade foi um dos que soube fazer do carnaval pano de fundo para situações de seus personagens. Em Amar, verbo intransitivo, a narrativa finda com uma cena de carnaval. Na paulicéia desvairada e carnavalesca não há espaço para as tristezas, mas para os projetos de um futuro que chegará depois da quarta-feira de cinzas.

Oswald de Andrade, em Pau Brasil, deixou poemas sobre o tema. Mas foi com “Escapulário” que pôde virar item de carnaval. Os versos “No Pão de Açúcar/De cada dia/Dai-nos Senhor/A Poesia/De cada dia” foram musicados por Caetano Veloso, transformando-o em um sambão bem adequado a um desfile momino e à necessidade de poesia no cotidiano que os carnavalescos, às vezes, entendem bem.

Manuel Bandeira publicou, antes da Semana, um livro de poesia apropriadamente intitulado Carnaval. Ali aparecem pierrôs, colombinas, arlequins, fantasias e musicalidade que sobra num poeta que transita do simbolismo para o varguardismo modernista. O “Sonho de uma terça-feira gorda” e o “Poema de uma quarta-feira de cinzas” são expressões de um pensamento poético que já ruma para o cotidiano, ao qual o poeta será freqüentemente associado.

Mesmo Clarice Lispector lembrou-se do carnaval no conto “Restos do carnaval”, em que uma menina fantasiada de flor vive a tristeza de ter a mãe doente em casa. Depois de ter saído na chuva para conseguir remédio, a flor murcha, a fantasia se destrói; e a sua única salvação seria ainda ser reconhecida como flor, e não como simples menina... Clarice ainda estava longe de mostrar a alegria de que é constituído o festejo, pois mostra-se uma alegria difícil e melancólica de um carnaval quase malogrado.

Luís Fernando Verísssimo colocou num de seus contos de verão uma situação de carnaval. Trata-se de um flerte de crianças, que só ocorre no carnaval e se repete no baile do ano seguinte. A cada ano, uma nova fantasia; até que “Bandeira branca” anuncia a terna alegria do romantismo de carnaval...

Alegria fácil ou difícil, o fato é que o carnaval permanece tema que mobiliza os escritores. A adoção do tema por prosadores e poetas chama a atenção para seu senso de oportunidade no trato com o material de que se origina a literatura: como pretexto para escrever sobre coisas da vida, toma-se o carnaval como ambiente para a problemática de personagens – a festa se entremeia a vidas. Neste sentido, a literatura, como outras manifestações artísticas, apodera-se do vivido pelo povo como forma de representar o real. E o carnaval faz parte deste nosso real.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Galileu e a fé

(Cristiano Banti)

Pablo Nogueira
pablonogueira@gmail.com
Jornalista

Livro mostra que, em vez de livre pensador, o astrônomo italiano era católico e tentou conseguir a bênção de um papa para tirar a Terra do centro do Universo

Além de ser considerado o pai da ciência moderna, Galileu Galilei (1564-1642) entrou para a história como protagonista de um processo que opôs ciência (as descobertas astronômicas) e fé (as crenças da Igreja). Novos estudos revelam que essa história é bem complexa e envolveu até a relação pessoal entre o astrônomo e o papa da época. Em seu livro "Galileu - Pelo Copernicanismo e pela Igreja", o físico e historiador italiano Annibale Fantoli esmiuça as pesquisas históricas mais recentes sobre o caso que afetou até a maneira pela qual a Igreja interpreta a Bíblia. O autor conversou com Galileu.

O Católico: É errado pensar que Galileu era um livre pensador. Ele era católico e queria ser visto como tal. O seu objetivo era tornar a Igreja mais aberta à visão de mundo proposta por Copérnico. A Igreja apoiava as idéias sobre astronomia propostas por Aristóteles [filósofo grego] e Ptolomeu [astrônomo grego]. Aristóteles dizia que os corpos celestes, planetas e estrelas, eram feitos de uma matéria especial, que seria incorruptível e, por isso, imutável. Quando um amigo de Galileu, o cardeal Barberini, foi escolhido como o papa Urbano VIII, o astrônomo foi tomado por uma grande esperança de que o modelo copernicano poderia ser adotado pela própria Igreja. Por isso ele foi a Roma conversar com o papa e obteve permissão para escrever um livro apresentando os dois sistemas [batizado de "Diálogo sobre os Dois Sistemas Máximos do Mundo"]. Obteve a permissão, mas com a condição de não tomar uma posição como definitiva. Deveria apenas mostrar os prós e os contras de cada uma. Como crente na Igreja, o resultado do processo, que resultou na ordem para que abjurasse publicamente as idéias de Copérnico, foi um resultado muito, muito doloroso.

Driblando a Bíblia: O "caso Galileu" aconteceu porque a Igreja se baseou numa interpretação literal da Bíblia. No livro, há muitas passagens que sugerem que a Terra está parada, enquanto o Sol se move. Mas Galileu escreveu duas cartas famosas - uma para seu amigo Castelli e outra para Cristina, mulher do duque da Toscana - nas quais procurou demonstrar como o sistema copernicano e a Bíblia poderiam ser conciliados. Nelas afirmou que o livro segue o senso comum das pessoas. Nós realmente temos a impressão de que o Sol se move pelo céu ao longo do dia. Ele argumentava, no entanto, que não havia uma necessidade real de interpretar o texto bíblico literalmente. E, aos poucos, os desdobramentos do caso mostraram isso à Igreja. No final do século 19, o papa Leão XIII escreveu uma encíclica afirmando que a Bíblia não deveria ser interpretada literalmente. Ele havia adotado a visão de Galileu, sem no entanto mencioná-lo. O caso serviu para a Igreja como uma lição sobre a interpretação das escrituras.

O Papa e o "Diálogo": Quando o papa Urbano VIII era ainda o cardeal Barberini, tinha uma relação muito boa com Galileu. Barberini não fazia uma oposição clara às idéias de Copérnico, nem se opunha à possibilidade de que, com sua pesquisa, Galileu um dia pudesse provar que o sistema copernicano estava correto. Mas, mesmo quando ainda tinham boas relações, o cardeal havia recomendado ao astrônomo que fosse prudente em relação ao modelo heliocêntrico [o Sol como centro]. O papa Pedro V havia declarado que o sistema copernicano era contrário às escrituras. A congregação responsável pela elaboração do índex [lista de livros considerados heréticos pela Igreja] expediu um decreto público sobre isso. Mesmo assim, Galileu continuou defendendo as idéias de Copérnico. Então recebeu a visita de outro cardeal, Belarmino, que o admoestou a não falar assim publicamente. Por isso, quando Galileu viu seu amigo Barberini elevado a papa, foi a Roma pedir a permissão para que pudesse escrever o livro.

Quando "Diálogo sobre Dois Sistemas" foi publicado, Urbano notou que Galileu não havia seguido a sua orientação. Pelo contrário. O texto defendia claramente a superioridade do sistema copernicano sobre o tradicional. O papa ficou furioso e sentiu-se traído. Por isso, Galileu foi chamado a Roma e, posteriormente, condenado.

Tortura nunca: Quando foi julgado, Galileu tinha 70 anos, e a prática do Tribunal do Santo Ofício não era a de indicar a tortura de pessoas tão idosas. Nós temos todos os documentos originais que registram tudo o que aconteceu no último interrogatório do processo. Se a tortura houvesse ocorrido, haveria algum registro. Os documentos mostram que ele passou pela Territio verbalis, que era uma ameaça verbal de tortura. Hoje temos quase certeza de que ele não foi fisicamente torturado.

"E PUR SI MUOVE": A história de que ele teria dito "E pur si muove" (e, no entanto, ela se move) após a abjuração é falsa. Surgiu no século 19. Essa seria uma atitude muito, muito perigosa. A abjuração o livrou da acusação de suspeita de heresia. Mas, se ele voltasse a defender o sistema copernicano, seria declarado relapsus, isto é, alguém que voltou a se envolver com heresia. E naqueles dias qualquer relapsus ia para a fogueira.

A benção, João de Deus: Após a morte de Galileu, o duque da Toscana sugeriu a construção de um memorial em sua homenagem. Logo o papa Urbano VIII fez saber que não era uma boa idéia erigir um monumento para alguém que sustentara idéias tão perigosas para a Igreja, e o duque desistiu. Posteriormente, o papa morreu, mas a oposição da Igreja impediu que o monumento fosse construído. No século 17, o trabalho de Isaac Newton ajudou a consolidar o sistema copernicano, e ele logo passou a ser usado universalmente pelos astrônomos. Mas a Igreja manteve os livros de Copérnico e de Galileu no índex de obras proibidas até o século 19. A Igreja sabia que havia cometido um erro, mas não queria admitir, para não chocar os cristãos.

E, quando os livros saíram do índex, não houve anúncio oficial. Só no último quarto do século é que o papa João Paulo II reconheceu que houve excessos no processo e admitiu não só a grandeza de Galileu no plano científico, mas sua capacidade de enxergar longe no plano teológico.

Mais um enigma

A mundialmente famosa Esfinge - que está ao lado da pirâmide do faraó Quefrem e que se acredita ter sido erguida para homenageá-lo - teria sido construída originalmente com o rosto de um leão. Quem afirma é o geólogo inglês Collin Reader. Com base em análises geológicas, ele acredita que a estátua tenha sido construída antes das pirâmides do planalto de Gizé, que foram erigidas por volta do século 26 a.C. O trabalho de Reader foi tema de um documentário exibido no canal de TV britânico Channel Five em dezembro.

Mais um enigma

A mundialmente famosa Esfinge - que está ao lado da pirâmide do faraó Quefrem e que se acredita ter sido erguida para homenageá-lo - teria sido construída originalmente com o rosto de um leão. Quem afirma é o geólogo inglês Collin Reader. Com base em análises geológicas, ele acredita que a estátua tenha sido construída antes das pirâmides do planalto de Gizé, que foram erigidas por volta do século 26 a.C. O trabalho de Reader foi tema de um documentário exibido no canal de TV britânico Channel Five em dezembro.

O que será?

Quanto mais irmãos um homem tiver, maior é a probabilidade de que venha a ser pai de meninos. Inversamente, os com mais irmãs têm mais chance de serem pais de mulheres. Foi essa a conclusão de um estudo da Universidade de Newcastle, que analisou 556 mil indivíduos dispersos em 927 árvores genealógicas. O resultado sugere que algum gene ainda não descoberto é responsável pela predisposição a gerar mais filhos de um sexo ou de outro.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A Darwin o que é de Darwin...

Gabriela Carelli
gabrielacarelli@hotmail.com
Jornalista

As ideias revolucionárias do naturalista inglês, que nasceu há 200 anos, são os pilares da biologia e da genética e estão presentes em muitas áreas da ciência moderna. O mistério é por que tanta gente ainda reluta em aceitar que o homem é o resultado da evolução

Charles Darwin é um paradoxo moderno. Não sob a ótica da ciência, área em que seu trabalho é plenamente aceito e celebrado como ponto de partida para um grau de conhecimento sem precedentes sobre os seres vivos. Sem a teoria da evolução, a moderna biologia, incluindo a medicina e a biotecnologia, simplesmente não faria sentido. O enigma reside na relutância, quase um mal-estar, que suas ideias causam entre um vasto contingente de pessoas, algumas delas fervorosamente religiosas, outras nem tanto. Veja o que ocorre nos Estados Unidos. O país dispõe das melhores universidades do mundo, detém metade dos cientistas premiados com o Nobel e registra mais patentes do que todos os seus concorrentes diretos somados. Ainda assim, só um em cada dois americanos acredita que o homem possa ser produto de milhões de anos de evolução. O outro considera razoável que nós, e todas as coisas que nos cercam, estejamos aqui por dádiva da criação divina. Mesmo na Inglaterra, país natal de Darwin, o fato de ele ser festejado como herói nacional não impede que um em cada quatro ingleses duvide de suas ideias ou as veja como pura enganação. Na semana em que se comemora o bicentenário de nascimento de Darwin e, por coincidência, no ano do sesquicentenário da publicação de seu livro mais célebre, A Origem das Espécies, como explicar a persistente má vontade para com suas teorias em países campeões na produção científica?

Para investigar a razão pela qual as ideias de Darwin ainda são vistas como perigosas, é preciso recuar no passado. Quando o naturalista inglês pela primeira vez propôs suas teses sobre a evolução pela seleção natural, a maioria dos cientistas acreditava que a Terra não tivesse mais de 6.000 anos de existência, que as maravilhas da natureza fossem uma manifestação da sabedoria divina. A hipótese mais aceita sobre os fósseis de dinossauros era que se tratava de criaturas que perderam o embarque na Arca de Noé e foram extintas pelo dilúvio bíblico. A publicação de A Origem das Espécies teve o efeito de um tsunami na Inglaterra vitoriana. Os biólogos se viram desmentidos em sua certeza de que as espécies são imutáveis. A Igreja ficou perplexa por alguém desafiar o dogma segundo o qual Deus criou o homem à sua semelhança e os animais da forma como os conhecemos. A sociedade se chocou com a tese de que o homem não é um ser especial na natureza e, ainda por cima, tem parentesco com os macacos. Havia, naquele momento, compreensível contestação científica às novas ideias. Darwin havia reunido uma quantidade impressionante de provas empíricas – mas ainda restavam muitas questões sem resposta.

O primeiro exemplar a sair da gráfica foi enviado a sir John Herschel, um dos mais famosos cientistas ingleses vivos em 1859. Darwin tinha tanta admiração por ele que o citou no primeiro parágrafo de A Origem das Espécies. Herschel não gostou do que leu. Ele não podia acreditar, sem provas científicas tangíveis, que as espécies podiam surgir de variações ao acaso. Pressionado, Darwin disse que, se alguém lhe apontasse um único ser vivo que não tivesse um ascendente, sua teoria poderia ser jogada no lixo. O que se encontrou em profusão foram evidências da correção do pensamento de Darwin em seus pontos essenciais. Hoje, para entender a história da evolução, sua narrativa e mecanismo, os modernos darwinistas não precisam conjeturar sobre o funcionamento da hereditariedade. Eles simplesmente consultam as estruturas genéticas. As evidências que sustentam o darwinismo são agora de grande magnitude – mas, estranhamente, a ansiedade permanece.

Outros pilares da ciência moderna, como a teoria da relatividade, de Albert Einstein, não suscitam tanta desconfiança e hostilidade. Raros são aqueles que se sentem incomodados diante da impossibilidade de viajar mais rápido que a luz ou saem à rua em protesto contra a afirmação de que a gravidade deforma o espaço-tempo. Evidentemente, o núcleo incandescente da irritação causada por Darwin tem conotação religiosa. A descoberta dos mecanismos da evolução enfraqueceu o único bom argumento disponível para a existência de Deus. Se Ele não é responsável por todas essas maravilhas da natureza, sua presença só poderia ser realmente sentida na fé de cada indivíduo. Mas isso não explica tudo. Em 1920, ao escrever sobre o impacto da divulgação das ideias darwinistas, Sigmund Freud deu seu palpite: "Ao longo do tempo, a humanidade teve de suportar dois grandes golpes em sua autoestima. O primeiro foi constatar que a Terra não é o centro do universo. O segundo ocorreu quando a biologia desmentiu a natureza especial do homem e o relegou à posição de mero descendente do mundo animal". Pelo raciocínio do pai da psicanálise, a rejeição à teoria da evolução seria uma forma de compensar o "rebaixamento" da espécie humana contido nas ideias de Copérnico e Darwin.

O biólogo americano Stephen Jay Gould, um dos grandes teóricos do evolucionismo no século XX, morto em 2002, dizia que as teorias de Dar-win são tão mal compreendidas não porque sejam complexas, mas porque muita gente evita compreendê-las. Concordar com Darwin significa aceitar que a existência de todos os seres vivos é regida pelo acaso e que não há nenhum propósito elevado no caminho do homem na Terra. Disse o biólogo americano David Sloan Wilson, da Universidade Binghamton: "As grandes ideias e teorias são aceitas ou rejeitadas popularmente por suas consequências, não pelo seu valor intrínseco. Infelizmente, a evolução é percebida por muitos como uma arma projetada para destruir a religião, a moral e o potencial dos seres humanos". Uma pesquisa publicada pela revista New Scientist sobre a aceitação do darwinismo ao redor do mundo mostra que os mais ardentes defensores da evolução estão na Islândia, Dinamarca e Suécia. De modo geral, a crença na evolução é inversamente proporcional à crença em Deus. Mas a pesquisa encontrou outra configuração interessante: os habitantes dos países ricos acreditam menos em Deus que aqueles que vivem em países inseguros. Isso pode significar que a crença em Deus e a rejeição do evolucionismo são mais intensas nas sociedades sujeitas às pressões darwinistas, como escreveu a revista Economist.

A teoria da evolução causa mal-estar em muita gente – mas só algumas confissões evangélicas converteram o darwinismo em um inimigo a ser combatido a todo custo. Como essas reli-giões são poderosas nos Estados Unidos, é lá que se trava o mais renhido combate dessa guerra santa. Ciência e religião já andaram de mãos dadas pela maior parte da história da humanidade (veja reportagem). Mas esse nó se desatou há dois séculos e Dar-win foi um dos responsáveis por esse divórcio amigável, com nítidas vantagens para ambos os lados.

Desde o ano passado, o bordão entre os criacionistas americanos é "liberdade acadêmica". A ideia que tentam passar é que o darwinismo é apenas uma teoria, não um fato, e ainda por cima está cheio de lacunas e é carente de provas conclusivas. Sendo assim, não há por que Darwin merecer maior destaque que o criacionismo. O argumento é de evidente má-fé. Em seu significado comum, teoria é sinônimo de hipótese, de achismo. A teoria da evolução de Darwin usa o termo em sua conotação científica. Nesse caso, a teoria é uma síntese de um vasto campo de conhecimentos formado por hipóteses que foram testadas e comprovadas por leis e fatos científicos. Ou seja, uma linha de raciocínio confirmada por evidências e experimentos. Por isso, quando é ensinado numa aula de religião, o gênesis está em local apropriado. Colocado em qualquer outro contexto, só serve para confundir os estudantes sobre a natureza da ciência.

A ciência não tem respostas para todas as perguntas. Não sabe, por exemplo, o que existia antes do Big Bang, que deu origem ao universo há 13,7 bilhões de anos. Nosso conhecimento só começa três minutos depois do evento, quando as leis da física passaram a existir. Os cientistas também não são capazes de recriar a vida a partir de uma poça de água e alguns elementos químicos – o que se acredita ter acontecido 4,5 bilhões de anos atrás. A mão de Deus teria contribuído para que esses eventos primordiais tenham ocorrido? Não cabe à ciência responder enquanto não houver provas científicas do que aconteceu. O fato é que a luta dos criacionistas contra Darwin nada tem de científica. Em sua profissão de fé, eles têm o pleno direito de acreditar que Deus criou o mundo e tudo o que existe nele. Coisa bem diferente é querer impingir essa maneira de enxergar a natureza às crianças em idade escolar, renegando fatos comprovados pela ciência. Essa atitude nega às crianças os fundamentos da razão, substituindo-os pelo pensamento sobrenatural.

Manda o bom senso que não se misturem ciência e religião. A primeira perscruta os mistérios do mundo físico; a segunda, os do mundo espiritual. Elas não necessariamente se eliminam. Há cientistas eminentes que creem em Deus e não veem nisso nenhuma contradição com o darwinismo. O mais conhecido deles é o biólogo americano Francis Collins, um dos responsáveis pelo mapeamento do DNA humano. Diz ele: "Usar as ferramentas da ciência para discutir religião é uma atitude imprópria e equivocada. A Bíblia não é um livro científico. Não deve ser levado ao pé da letra". A Igreja Católica aceitou há bastante tempo que sua atribuição é cuidar da alma de seu 1 bilhão de fiéis e que o mundo físico é mais bem explicado pela ciência. O Vaticano até organizará em março o simpósio "Evolução biológica: fatos e teorias – Uma avaliação crítica 150 anos depois de A Origem das Espécies".

Em A Origem das Espécies, num raciocínio que cabe em poucas linhas mas expressa ideias de alcance gigantesco, Darwin produziu uma revolução que alteraria para sempre os rumos da ciência. Ele mostrou que todas as espécies descendem de um ancestral comum, uma forma de vida simples e primitiva. Darwin demonstrou também que, pelo processo que batizou de seleção natural, as espécies evoluem ao longo das eras, sofrendo mutações aleatórias que são transmitidas a seus descendentes. Essas mutações podem determinar a permanência da espécie na Terra ou sua extinção – dependendo da capacidade de adaptação ao ambiente. Uma década depois da publicação de seu livro seminal, o impacto das ideias de Darwin se multiplicaria por mil com o lançamento de A Descendência do Homem, obra em que mostra que o ser humano e os macacos divergiram de um mesmo ancestral, há 4 milhões de anos.

O embate entre evolucionistas e criacionistas teria causado um desgosto profundo a Darwin, que era religioso e chegou a se preparar para ser pastor da Igreja Anglicana. Esse plano foi interrompido pela fantástica aventura que protagonizou entre 1831 e 1836, em viagem a bordo do Beagle, um pequeno navio de exploração científica, numa das passagens mais conhecidas da história da ciência. Aos 22 anos, Darwin embarcou no Beagle para servir de acompanhante ao capitão do barco, o aristocrata inglês Robert Fitzroy. Durante a viagem, que se estendeu por quatro continentes, Darwin deu vazão à curiosidade sobre o mundo natural que o acompanhava desde a infância. Até a volta à Inglaterra, havia recolhido 1 529 espécies em frascos com álcool e 3 907 espécimes preservados. Darwin escreveu um diário de 770 páginas, no qual relata suas experiências nos lugares por onde passou. No Brasil, visitou o Rio de Janeiro e a Bahia, extasiando-se com a biodiversidade da Mata Atlântica – mas ficou horrorizado com a escravidão e com a maneira como os escravos eram tratados.

Durante a viagem, Darwin fez as principais observações que o levariam a formular a teoria da evolução pela seleção natural. Grande parte delas teve como cenário as Ilhas Galápagos, no Oceano Pacífico. Lá, reparou que muitas das espécies eram semelhantes às que existiam no continente, mas apresentavam pequenas diferenças de uma ilha para outra. Chamaram sua atenção, principalmente, os tentilhões, pássaros cujo bico apresentava um formato em cada ilha, de acordo com o tipo de alimentação disponível. A única explicação para isso seria que as primeiras espécies de animais chegaram às ilhas vindas do continente. Depois, desenvolveram características diferentes, de acordo com as condições do ambiente de cada ilha. Era a prova da evolução. Mais recentemente, ao estudarem os mesmos tentilhões das Ilhas Galápagos, grupos de biólogos observaram a evolução ocorrer em tempo real. Os pássaros evoluíam de um ano para outro, de acordo com as mudanças nas condições climáticas da ilha. Darwin, que definiu a evolução como um processo invariavelmente longo, através das eras, ficaria espantado com as novas descobertas em seu parque de diversões científico.

Ao retornar à Inglaterra, após a viagem do Beagle, Darwin foi amadurecendo a teoria da evolução e começou a escrever A Origem das Espécies dois anos depois, em 1838. Só publicou o volume, no entanto, após 21 anos. Ele sabia do potencial explosivo de suas ideias na ultraconservadora Inglaterra do século XIX – da qual, ele próprio, era um legítimo representante. Elaborar uma teoria que ia contra os dogmas da Bíblia era, para Darwin, motivo de enorme angústia. Não colaboravam em nada os temores de sua mulher, Emma, de que, por causa de suas ideias, Darwin fosse para o inferno após a morte, enquanto ela iria para o céu – com isso, eles estariam condenados a viver separados na vida eterna. Darwin nunca declarou que a Bíblia estava errada. Manteve a fé religiosa até os últimos anos de vida, quando se declarou agnóstico – segundo seus biógrafos, sob o impacto da morte da filha Annie, aos 10 anos de idade.

Após o lançamento de A Origem das Espécies, um best-seller que esgotou rapidamente cinco edições, os cientistas não demoraram a aceitar a proposta de que as plantas e os animais evoluem e se modificam ao longo das eras. Na verdade, essa ideia chegou a ser formulada por outros cientistas, inclusive pelo avô de Darwin, o filósofo Erasmus Darwin. A noção de que a evolução das espécies se dá pela seleção natural, no entanto, é original de Charles Darwin, e só foi aceita integralmente depois da descoberta da estrutura do DNA, em 1953. Darwin atribuiu a transmissão de características entre as gerações a células chamadas gêmulas, que se desprenderiam dos tecidos e viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais. Lá chegando, seriam copiadas e passadas às gerações seguintes. Os estudos feitos com ervilhas pelo monge austríaco Gregor Mendel na segunda metade do século XIX, mas aos quais a comunidade científica só deu importância no início do século XX, estabeleceram a ideia básica da genética moderna, a de que as características de cada indivíduo são transmitidas de pais para filhos pelo que ele chamou de "fatores", e hoje se conhece como genes. Com as ervilhas de Mendel, o processo concebido por Darwin teve comprovação científica. A descoberta da dupla hélice do DNA, pelos cientistas James Watson e Francis Crick, em 1953, finalmente esclareceu o mecanismo por meio do qual a informação genética é transmitida através das sucessivas gerações. Hoje, os biólogos se dedicam a responder a questões ainda em aberto no evolucionismo, como quais são exatamente as mudanças genéticas que provocam as adaptações produzidas pela seleção natural. É espantoso que, enquanto continuam a desbravar territórios na ciência, as ideias de Darwin ainda despertem tanto temor.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Brecht e o Brasil

Fernando Marques
fmarquesfreitas@terra.com.br
Jornalista, poeta e compositor, doutor em Literatura Brasileira

A relação entre Brecht e o teatro brasileiro teve sua fase mais marcante entre 1958 e 1978

Se é verdade que escrever em português pode, ainda hoje, confinar um autor a circuitos relativamente restritos, produzir em alemão tampouco garante divulgação internacional imediata. Embora muito prestigiosa, a literatura de língua alemã precisou, freqüentemente, do passaporte das traduções francesas ou inglesas para alçar os seus escritores à notoriedade global.

O alcance do idioma será, quando menos, um dos fatores capazes de explicar o fato de que o dramaturgo, poeta e pensador alemão Bertolt Brecht, nascido em 1898 e morto há 50 anos, a 14 de agosto de 1956, só viria a ser mundialmente festejado depois que peças como Mãe Coragem chegaram às salas de Paris e Londres. Outro fator liga-se ao exílio: Brecht, a exemplo do que fizeram tantos intelectuais, fugiu da Alemanha encampada pelos nazistas em 1933, trocando de país "como quem troca de sapatos" (até o retorno em 1948), o que dificultou a difusão menos tardia de suas peças e idéias.

Costuma-se marcar a data de chegada de Bertolt Brecht ao Brasil pela primeira montagem profissional de um de seus maiores textos, A alma boa de Setsuan, encenado em São Paulo com Maria Della Costa, sob a direção do italiano Flaminio Bollini, em 1958. A fase de "deglutição" local do autor vai de 1958 a 1978, ano em que estréia a Ópera do malandro, de Chico Buarque, resposta à Ópera dos três vinténs, de Brecht e Kurt Weill.

No entanto, diga-se, o contato brasileiro com o teatro brechtiano não se fez esperar demais. Ao mesmo tempo em que se começava a falar amplamente de Brecht na Europa, devido a "uma versão bastante comovente de Mãe Coragem", em Paris, segundo informa o biógrafo Frederic Ewen, ocorria por aqui a montagem - com alunos da Escola de Arte Dramática, em São Paulo - de A exceção e a regra. Esta é uma das peças denominadas pelo autor de "didáticas": breves textos destinados à elaboração de questões éticas e políticas. O ano era o de 1951.

A exceção e a regra, escrita em 1930, e a bem-humorada (e pungente) Alma boa de Setsuan, de 1940, abordam o tema da bondade impossível, num mundo monitorado pelo egoísmo; ambas ficaram como marcos inaugurais da recepção de Brecht no Brasil certamente porque obtiveram registros na imprensa. Mas (sem querer exasperar o leitor com problemas de genealogia) anoto que, de acordo com Wolfgang Bader, organizador da coletânea Brecht no Brasil (1), o marco inicial cabe mesmo a Terror e miséria do Terceiro Reich, encenada em 1945, em São Paulo, "por alemães exilados, que nos anos de 1940 começam diversas atividades teatrais aqui".

O sentido inicial das montagens brechtianas no país, sentido que se vai desdobrar em caminhos correlatos nos anos seguintes, relacionou-se à luta contra o fascismo, verberado já no título da peça. Bader e Fernando Peixoto (que, na mesma coletânea, também alude a Terror e miséria do Terceiro Reich) limitam-se a mencionar a montagem de 1945, sem fornecer outros dados a seu respeito, sinalizando que a memória do espetáculo em boa parte se perdeu. Mas o texto seria revisitado, nos anos de 1960, pelos encenadores Antonio Abujamra, Paulo Afonso Grisolli e Amir Haddad.

Significativa, também, foi a inclusão de um dos episódios que compõem a peça, chamado "O delator", no espetáculo-colagem Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, sucesso no Rio de Janeiro de 1965, já, portanto, em tempos pós-Golpe. Paulo Autran e Tereza Rachel representavam os pais que temem ser denunciados como opositores do regime pelo próprio filho, não mais que um menino. Evidenciava-se um dos traços da presença brechtiana: o dramaturgo ajudou a politizar o teatro nacional ou, por outra, emprestou instrumentos de análise e crítica, ideológicos e estéticos, a dramaturgos, atores e diretores brasileiros, na fase em que os palcos se tornaram praça de resistência ao regime militar instalado em 1964.

A tradução para o inglês de A alma boa de Setsuan e de O círculo de giz caucausiano, pelo norte-americano Eric Bentley, peças publicadas em 1948 (Bentley divulgou a obra de Brecht nos Estados Unidos, onde o dramaturgo passou a fase final do exílio), permitiu ao crítico Décio de Almeida Prado ler o autor, para depois comentá-lo a propósito de A exceção e a regra, poucos anos mais tarde. Já Sábato Magaldi viu pela primeira vez uma peça de Brecht em Paris, em 1953. Era Mãe Coragem, a história da tragicômica mulher que se sustenta como vendedora ambulante em plena guerra, metáfora dos que pretendem se valer das situações de conflito e caos, delas aferindo vantagens (a obtusa Coragem perde seus três filhos, um a um, ao longo da história).

Sábato não gostou, contudo, da encenação de Jean Vilar: "Não vou esconder que fiquei muito decepcionado: achei o espetáculo por demais cansativo, e o público se enfadava todo o tempo" (2). Efeito, quem sabe, de tratamento excessivamente literal do teatro épico proposto pelo escritor, teatro em que a ação dramática está constantemente emoldurada por expedientes narrativos (cartazes e canções, entre outros), destinados a evitar a simples identificação emocional entre público e espetáculo, privilegiando-se a atitude racional. Para Brecht, o mundo (resumido em cena) deve aparecer como passível de ser modificado pela vontade consciente, jamais como inacessível a mudanças objetivas.

Houve acertos e desacertos na recepção dada à obra na França ou aqui. O crítico Yan Michalski inicia depoimento de 1986 dizendo precisamente isto: "Brecht forneceu a matéria-prima literária e teórica para alguns dos mais equivocados momentos da cena brasileira dos últimos 30 anos, e para alguns dos seus momentos mais iluminados e enriquecedores". Compreensão limitada do famoso "efeito de distanciamento"(3), preconizado pelo também diretor Brecht (o ator deve afastar-se de seus personagens, buscando pensar e fazer pensar sobre eles), possivelmente responde por alguns daqueles equívocos.

Já os acertos se devem a uma utilização criadora, pouco subserviente, das idéias do autor. O que se verificou também nos espetáculos que não se basearam em textos de Brecht, mas foram de algum modo inspirados por suas concepções, caso da comédia Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, integrantes do Grupo Opinião. O espetáculo estreou no Rio, em 1966, sob a direção de Gianni Ratto.

No prefácio ao Bicho, os autores aludem a procedimentos não-realistas que ajudariam a representar melhor a própria realidade. Depois de situar as fontes da comédia na literatura popular (no caso, o cordel e a farsa nordestina), dizem: "A literatura popular e a grande literatura sempre tiveram um ponto fundamental em comum: a intuição da arte dramática como uma manifestação de encantamento, de invenção"(4). Encantamento, segundo eles, é justamente "o que Brecht repõe na literatura dramática".

Vianna e Gullar esclarecem, referindo-se implicitamente ao humor e ao caráter lúdico também presentes nas peças do escritor alemão: "Mas quando falamos em encantamento, não estamos querendo dizer envolvimento passional. Com encantamento queremos dizer uma ação mais funda da sensibilidade do espectador que tem diante de si uma criação, uma invenção que entra em choque com os dados sensíveis que ele tem da realidade, mas que, ao mesmo tempo, lhe exprime intensamente essa realidade". O efeito, no Bicho, seria o de uma incisiva caricatura das relações políticas no Nordeste dos coronéis e, por analogia, em todo o país. Já nos anos de 1970, o Grupo Opinião recorre, em O último carro (1976), de João das Neves, peça ambientada num trem de subúrbio, à técnica de composição por cenas isoladas, eminentemente épica.

O Teatro de Arena de São Paulo esteve fortemente relacionado à estética de Brecht, reelaborando-a criativamente. Dois espetáculos devem ser destacados nesse sentido: Arena conta Zumbi, de 1965, e Arena conta Tiradentes, de 1967, ambos escritos por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.

As lições relativas às técnicas épicas reaparecem no Arena sob a forma da narração coletiva e da dissociação de atores e personagens (um mesmo papel pode ser interpretado por diversos atores, o que dilui a empatia e reforça o exame crítico das situações), como se deu em Zumbi. Ou, ainda, sob a figura do Coringa, espécie de mestre de cerimônias que conta a história e encarna o ponto de vista autoral, como em Tiradentes. Boal articula, na ocasião, o Sistema do Coringa e, depois, as técnicas do Teatro do Oprimido, em certa medida derivadas de matrizes brechtianas.

De volta aos textos do próprio Brecht, lembre-se Galileu Galilei, encenado pelo Grupo Oficina em 1968, com estréia no mesmo dia em que se editou o AI-5, pelo qual os militares cassavam as liberdades públicas. Tendências racionalistas, de índole marxista, e irracionalistas, estas ligadas à contracultura que então se afirmava, batiam-se dentro do grupo, o que resultou em espetáculo híbrido (e bem-sucedido): o texto de Brecht narra a história do astrônomo renascentista para ressaltar os poderes críticos e a responsabilidade política da ciência, enquanto a montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa sublinhava uma das cenas, a do carnaval, até a embriaguez, como se correntes contrárias se chocassem no interior do mesmo espetáculo.

A Ópera do malandro vem atualizar a Ópera do mendigo (1728), do inglês John Gay, e sua descendente alemã, 200 anos mais velha, a Ópera dos três vinténs, de Brecht e Weill. Esta já havia sido encenada (por exemplo) sob a direção de José Renato, em 1964; a adaptação de Chico Buarque, apoiada em convivência já extensa dos brasileiros com a obra de Brecht, traz a ação para o Rio de meados dos anos de 1940, quando a ditadura de Vargas chegava ao fim e o país entrava numa fase de ambígua modernização capitalista.

Em lugar de replicar o niilismo existente na Ópera dos três vinténs, Chico e o diretor Luís Antônio Martinez Corrêa acentuaram seus aspectos de crítica política, satirizando o clima de engodo que se armava no segundo pós-guerra, quando os Estados Unidos se confirmavam no papel de líderes do mundo "cristão e ocidental". Propunha-se analogia do passado, os anos de 1940, com a atualidade, a década de 1970, momento em que se continuava a promover, por aqui, o banquete das elites.

O que permanece válido em Brecht, agora? Conforme notou Roberto Schwarz no artigo "Altos e baixos da atualidade de Brecht", de 1999 (5), a obra do dramaturgo carece hoje de revisão e de crítica, dado que premissas importantes de seu trabalho perderam força. O primeiro pressuposto vencido é o de que o mundo caminharia para uma ordem solidária ou socialista: não foi o que ocorreu. Já a segunda premissa refere-se ao arsenal das técnicas épicas, que parecem gastas. Os recursos de quebra da ilusão cênica e, por extensão, política, tomados tal e qual Brecht os compreendeu, apropriados inclusive pela publicidade, deixaram de ser eficazes.

Schwarz diz também, no entanto, que o reexame das peças pode nos reconduzir a bons achados. Um exemplo: o ácido retrato de um capitalismo amoral, como que absoluto, isento de culpas ou recalques, exposto em Santa Joana dos Matadouros. Ao parodiar a literatura clássica alemã, fazendo-a falar o jargão das negociatas, a peça ilustra o quanto há de vivo na ampla obra do dramaturgo.

A receita vale para outros grandes textos do autor, que se mantêm atuais, até porque a realização das esperanças de mundo melhor teve mesmo de ser adiada por tempo indeterminado. Nosso mundo, meio século mais velho que o de Brecht, guarda pontos de contato fundamentais com o dele. O que, aliás, não é de se comemorar.

NOTAS

1. BADER, Wolfgang. Brecht no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
2. in Brecht no Brasil, pág.223
3. in Brecht no Brasil, pág 226
4. VIANNA FILHO, Oduvaldo e GULLAR, Ferreira. Se corre o bicho pega, se ficar o bicho come. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966
5. SCHWARZ, Roberto. "Altos e baixos da atualidade de Brecht", in Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Almeida Prado - música acima das referências

Ana Lúcia Vasconcelos
analuvasconcelos@globo.com
Jornalista e atriz

(Escrito em 2010)

Ontem dormi tarde como sempre e acordei cedo - 8 h - o que inédito para mim. Quando fui para a copa fazer o café minha mãe perguntou se eu sabia quem havia morrido? Disse não. Quem? Ela: o Almeida Prado. É a segunda vez que minha mãe me dá uma noticia da morte de um amigo porque leu antes os jornais. A primeira vez foi a morte do Léo Gilson Ribeiro. Já comecei a ler a matéria do Estadão e só que desta vez não fiquei nervosa, abalada, coisas do tipo. Vocês vão pensar que perdi o senso? Não! Simplesmente me acostumei com a morte - desde a morte da Hilda já morreram Leo, J. Toledo, Pinotti, José Luis Mora Fuentes, Massao Ohno sem contar que antes eu havia perdido vários amigos atores, atrizes e editores. Isso sem falar na morte do meu filho que justamente no dia 19 de novembro de 2010 fez 14 anos.

Na sequência me arrumei e fui para a missa na catedral de Campinas-há uma missa as 12.15h e eu queria rezar pelo Almeida Prado porque para quem não sabe para depois da morte orações e missas é o que há de melhor. E la ouvindo as musicas, meditando, confesso que derramei umas três, quatro lagrimas mas a sensação que tinha todo o tempo era de alegria. E quando sai, estava ventando - os famosos ventos campineiros - e uma revoada de pombos passou por cima da minha cabeça no praça da Catedral e me veio a palavra jubilação que aliás ele usava muito e que como vocês lerão aqui na entrevista que está na sequencia feita em 1989 é utilizada duas vezes em diferentes ocasiões.

* * *


Pianista, compositor de música erudita contemporânea, José Antonio de Almeida Prado, 63, é doutor em Música pela Unicamp, onde lecionou até o ano de 2000. Titular da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Música e membro da Foundation Nadia e Lili Boulanger, na França, ganhou entre outros o prêmio Carlos Gomes pelo conjunto de sua obra - que soma mais de quatrocentas composições. Na música ele começou cedo: aos nove compôs sua primeira peça, tendo sido aluno de Dinorah de Carvalho, Camargo Guarnieri e Osvaldo Lacerda no Brasil. Viajou para Santiago de Compostela aos 24 anos e aos 26 foi para Paris onde estudou com os grandes compositores e professores de música erudita contemporânea: Messiaen e Nadia Boulanger durante cinco anos.

De volta ao Brasil dirigiu o Conservatório de Musica de Cubatão, sendo que em 1974 foi convidado a lecionar na Unicamp - Universidade de Campinas, onde foi professor de composição até 2000. “Imagine você sair de Paris para dar aulas em uma escola que ficava em cima de um supermercado, numa das cidades mais poluídas do mundo. É como se formar na universidade e então ser diretor de uma tribo em Angola! Se você não tem formação de missionário, você entra em crise. Porque tudo o que você aprendeu não representa nada. Foi inútil! Mas, nessa decepção, eu promovi uma reforma no conservatório. Convenci o prefeito a construir um prédio, implantei métodos didáticos e preparei as professoras. Após um ano, deixei Cubatão, com um sentimento maravilhoso de missão cumprida, e fui convidado para a Unicamp.”

A esta altura, segundo conta, começou a desenvolver uma técnica em que tentava misturar elementos tonais, seriais e o que chamou de “transtonal” que é, segundo diz, “a utilização consciente dos harmônicos superiores e inferiores de uma fundamental, mesmo que artificialmente, já que os harmônicos inferiores são muito contestáveis”. Na seqüência recebeu uma encomenda da prefeitura de São Paulo para compor a trilha sonora do Planetário do Ibirapuera. “Comprei, então, um livro chamado Atlas Celeste, de Ronaldo Mourão, que ilustra o céu do Brasil e suas constelações em todos os meses do ano. Criei um acorde para cada estrela e fiz os acordes se seguirem como indica a linha imaginária que une as estrelas de uma constelação naquele livro.”

“Em Cartas Celestes, usei pela primeira vez o “transtonalismo” em 1981, retomei estes acordes e compus mais cinco Cartas Celestes. Ao longo deste trabalho, fui me cansando daquele material sempre atonal e, aos poucos, fui introduzindo elementos tonais nas peças. Ao final delas, eu já me dava liberdade de encaixar um minueto à forma, pois eu já estava muito seguro e muito amadurecido neste processo. Essas peças foram gravadas, venderam muito bem e eu fiz meu doutorado sobre elas. As Cartas Celestes acabaram por se tornar um marco na música do Brasil. Até Messiaen e Boulanger diziam que era uma coisa nova. E elas estavam em sintonia com o espectralismo, de Murail e Grisey, embora eu não conhecesse o que eles faziam e nem eles o que eu fazia.”

“Ai então eu me tornei um compositor rotulado de ‘transtonal’ quando isso não me interessava mais. E já na última das seis Cartas Celestes, comecei a compor num estilo que eu classifico como pós-moderno, por ter como característica revisitar texturas e mecanismos do repertório do passado, tomando elementos dele e adaptando à minha linguagem, ou ainda fazendo colagem mesmo. Eu queria sair daquela atmosfera cósmica e mística. Eu queria estar com os pés no chão.”

Sua obra vasta publicada pela Tonos Verlag de Darmstadt (Alemanha), percorre uma variedade de formas musicais, dos estudos as sinfonias passando pelos oratórios e missas, sonatas, mas sempre dando preferência a obras para piano e percussão. Entre as mais de quatrocentas composições algumas merecem citação especial: Pequenos Funerais Cantantes, composta a partir de um poema da Hilda Hilst, Cartas Celestes, que hoje conta com 14 volumes e é considerada uma de suas obras mais importantes, ao lado de centenas de outras, entre elas: Lettres de Jerusalém- considerada pelo critico Claver Filho “uma das mais impressionantes da musica brasileira do século XX”, Missa da Paz, Villegagnon ou Les Îles Fortunèes, Momentos de Cubatão, Rosário de Medjugorje, As 14 Palavras de Cristo na Cruz, Amavisse, também sobre poemas de Hilda Hilst, entre centenas de outras.

Duas de suas composições: Sinfonia dos Orixás - composta para comemorar os dez anos da Orquestra Sinfônica de Campinas e Missa de São Nicolau tiveram estréia na Suíça. Sinfonia dos Orixás estreou em outubro de 1987 no Grande Theâtre de Genebra e Missa de São Nicolau foi apresentada na Igreja Villars-sur-Glâne e na Catedral e São Nicolau em Fribourg. Esta obra, dedicada ao Coro da Matriz de Villars e ao seu diretor George Rubaty, foi inspirada, segundo o compositor “num sentimento romântico e descritivo de emoção religiosa”.

O critico do jornal La Liberté, Bernard Sansonnens considerou esta missa uma obra prima que ficará nos anais da história do condado e da música. “Isso porque, podem-se contar nos dedos das mãos a criação de missas para coro, orquestra e solistas na produção musical do século XX.” Almeida Prado considera esta sua melhor obra, a mais densa, a mais longa que escreveu e que depois da sua morte, será o seu testamento. “Ela acumula todas as minhas experiências anteriores de composição.”

A obra sendo estudada

A esta altura, muitos musicistas têm se debruçado sobre sua obra para estudá-la (até agora são vinte e sete teses de mestrado e doutorado) entre outros, a pianista Adriana Lopes que escolheu para seu mestrado os 16 Poesilúdios, inédita tanto nos palcos quanto em gravações e que ela interpretou em estréia mundial quando defendeu sua tese de mestrado na Unicamp no dia 10 novembro de 2002. Adriana conta que quando foi pesquisar a obra do compositor, cujas partituras estão sendo catalogadas no Centro de Documentação de Música Contemporânea (CDMC) do Instituto de Artes, observou que a obra de Almeida Prado era comumente dividida em sete fases. “A obra de Beethoven é dividida em três fases. Achei sete um exagero, mesmo considerando a diversificação do século XX”, diz Adriana Lopes.

Daí que ela optou por dividi-la em três fases, acrescentando uma quarta a pedido do próprio Almeida Prado: a primeira corresponde ao estudo do folclore com Camargo Guarnieri, sob a estética de Mário de Andrade, resgatando a brasilidade com temas na sua maioria nordestinos. A segunda fase surge quando se senta com Gilberto Mendes para ouvir Schoenberg, Stockhausen, Messiaen, Stravinsky, e parte para a França a fim de descobrir algo que não conhecia além-mar. E a terceira e quarta fases, já de volta ao Brasil, têm várias tendências que correm paralelas: a astrológica, ecológica, brasileira, mística e livre. Na quarta, que se chamou de pós-moderna, acontece uma auto-releitura e uma mesclagem das diversas tendências dentro de uma mesma obra, que se inicia com os Poesilúdios.

Para que pudesse conceber uma interpretação embasada dos Poesilúdios, Adriana afirma que contou com o apoio do pianista Maurícy Martin, atual coordenador do Departamento de Música do Instituto de Arte da Unicamp e com a orientação da professora Maria Lúcia Pascoal que participou “de todos os passos do trabalho”.

O CD que acompanhou a dissertação de mestrado da pianista foi gravado na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, sendo que a verba da Fapesp permitiu a produção de 40 cópias. Adriana pretende ainda um possível lançamento comercial do CD, que pode trazer um livreto contendo análises de cada peça. E para que seu trabalho não fique numa prateleira e ninguém o veja, a pianista vem interpretando e analisando as peças para professores de piano e alunos em várias cidades.

Esta divulgação também contribuiu para a lembrança dos 60 anos do compositor Almeida Prado, completados em 2003 (ele nasceu em 8 de fevereiro de 1943) e comemorado no dia 5 de outubro, com um concerto da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, no Teatro Sérgio Cardoso (região central de São Paulo), com a estréia do Concerto para Oboé e Orquestra de Cordas, com solo de Alexandre Ficarelli e regência do maestro Wagner Polistchuk, titular da Sinfônica da Universidade Estadual de Londrina.

Entre suas obras mais recentes ele cita: Variações Sinfônicas para orquestra composta oficialmente para o Festival de Campos do Jordão em novembro de 2005; Hiléia, Um Mural da Amazônia que deve estrear no próximo ano nos Estados Unidos e vai marcar o lançamento de uma nova campanha internacional pela preservação da Amazônia, sendo que a renda do concerto será destinada a instituições ligadas a programas ecológicos na região. E atualmente ele prepara, a convite do governo do Rio de Janeiro, uma obra para piano e orquestra para comemorar o bicentenário daquela cidade e a chegada de Dom João VI e que deve estrear em 2008. Será baseada em algumas gravuras de Debret e terá o título: Gravuras Sonoras.

Ao longo de sua carreira Almeida Prado, teve várias de suas obras executadas por importantes nomes da música brasileira, como Eleazar de Carvalho, Camargo Guarnieri e, mais recentemente, John Neschling (à frente da Osesp) e Antônio Menezes, que estreou sua Sonata para Cello e Piano. Obteve ainda alguns dos mais importantes prêmios no Brasil e no exterior: Prêmio APCA de Melhor Obra de 1967 com Paixão Segundo São Marcos, peça para coro, órgão e piano e cravo e atores; Prêmio Lili Boulanger com Sinfonia nº. 1, Prêmio Fontainaibleau do Primeiro Concurso de Minas Gerais do Coral Ars Nova com a cantata sacra Jesus de Nazaré.

Além desta atuação e da criação de novas obras Almeida Prado dedica-se a cursos em diversos centros culturais de São Paulo, onde mora atualmente, não apenas para músicos como para apreciadores de música em geral. Seu último curso foi sobre a obra de Johannes Brahms nos seus múltiplos aspectos divididos em dez encontros na Casa do Saber que começou no dia 28 de março e terminou em 30 de maio de 2007. Ali ele interpretou e analisou diversas obras de Brahms – os dois concertos para piano, o concerto para violino, as sinfonias, as músicas de câmara, as canções e outras obras para piano. E, além disso, faz um programa de grande sucesso na FM Cultura, o Caleidoscópio.

Entrevista

Nesta entrevista, publicada com cortes na revista Artes (SP) de novembro/dezembro de 1988 e janeiro de 1989, Almeida Prado fala da sua infância, seus professores, sua vocação, seu processo criativo, sua religiosidade, suas influências. Para atualizá-la falei com ele ao telefone e decidimos publicá-la como está - já que é um documento importante de determinada fase de sua vida. Há disponível, para quem quiser saber mais sobre sua vida e fértil e inovadora obra, muitas outras matérias aqui na internet.


ALV - Tive a impressão, lendo o seu Memorial-resumo de sua obra e vida até o ano de 1989 elaborado para sua livre docência, que você teve uma infância feliz. Você foi uma criança feliz?

Almeida Prado - Era feliz e não era, porque eu era o ultimo filho, eu nasci meu irmão mais velho tinha 18 anos, e minha irmã mais próxima tinha cinco anos mais que eu. Meu irmão que nasceu depois de mim, morreu então eu fiquei o último super mimado e super carente. Porque parece que há uma alquimia quando você é muito minado fica também carente porque não tem proporção. Eu só vim a perceber isso agora com a psicanálise que o fato de me mimarem muito as proporções eram desengonçadas. Então não tinha aquele carinho justo na hora certa: não era nada ou era demais. Então ficam aqueles buracos.

E depois você estudava...

AP - A musica era tudo para mim...

E o Almeida prado, o sobrenome ajuda ou atrapalha?

AP - É aristocracia rural, família de quatrocentos anos como eles falam. Ajuda para a vaidade de você chegar num banco e assinar um cheque e as pessoas perguntarem: ah você é Almeida Prado, parente de fulano, mil fazendas e você diz: não, não tenho, sou dos pobres...

O que, aliás, ninguém acredita...

AP - Ninguém acredita. Mas é bom para empréstimos porque você é riquíssimo... (risos)

Sei que você começou a ouvir música erudita muito cedo. Sua irmã estudando piano, Mozart, Beethoven. Você diria que foi ai que começou a despontar a vocação para o piano, as composições, etc?


AP - Eu acho que o dom a gente recebe de Deus e só cresce se você rega. Não adianta você ter um dom de físico, de químico ou de bailarino se desde criança não te colocam numa escola, não fazem florescer este dom. Tenho a impressão que quando Deus escolhe alguém para uma missão ele já coloca os pais certos, a cidade, latitude, a longitude, o clima, tudo já concorre para que aquela pessoa dê naquilo.

Você começou com quantos anos? Tenho a informação que aos nove compôs Adeus...

AP - Com menos, com sete. Então eu tinha que ter uma irmã que tocava como uma louca para eu ficar ouvindo.

Como você sentiu que era um compositor? Começou a estudar piano com quantos anos?


AP - Senti que era um compositor porque para mim quando eu ia estudar a musica alheia queria mudar o texto, queria brincar. Aí as pessoas não deixavam, diziam que eu estava brincando com o Beethoven. Então como eu não podia brincar com o Beethoven eu começava a brincar fora do Beethoven. Então eu lia uma história de criança sobre o Saci, João e Maria, etc. Eu ia para o piano e fazia a história na musica.

Então surgiram suas primeiras composições: Adeus, Os duendes na floresta, Dança Espanhola, Procissão do Senhor Morto, O Saci, O gato no telhado. Se hoje você analisar essas musicas com o olhar critico de um professor, como as definiria? Elas apresentam alguma novidade?

AP - Elas não apresentam novidades porque são reminiscências de Villa Lobos ou do que eu ouvia. Mas se chegasse uma criança como essas músicas eu diria: este cara é um gênio (risadas).Bem você vê que eu não tenho modéstia...mas duas delas estão publicadas agora na Alemanha num álbum que eu fiz para minhas filhas: O Saci e O gato no telhado.

Você começou a fazer sucesso muito cedo. Ao lado das obras do Bach, Mozart nos concertos que dava em Santos, você tocava suas próprias composições. Como fica na cabeça de uma criança o sucesso?

AP - Eu adorava o sucesso, porque era o único momento em que eu era aceito, porque eu era uma criança magrinha, feiinha, e não podia rivalizar com os colegas que eram jogadores de futebol, eram atletas, másculos. E para mim a masculinidade sempre foi outra coisa - a retidão, a integridade. Eu já estava todo mergulhado em Deus e me lembro que tinha sete anos e queria ser santo. Não sabia o que era isso, mas ficava quieto e queria pensar em Deus. Aí eu ia para debaixo de uma árvore e ficava alguns minutos ou mesmo meia hora tentando rezar completamente vazio, quer dizer que fazia a oração mais zen sem saber o que era... Ou seja, meu discurso não tinha nada a ver com o dos meus colegas. E eu não tinha culpa de ser assim como eles não tinham obrigação de me aceitar: um animal raro no zoológico deles. Então caçoavam me humilhavam e a única revanche que eu tinha era minha genialidade. E na hora em que eu ia aos nove anos tocar na televisão nenhum deles ia e a professora dizia: ah José Antonio vi você e tal e todos ficavam com inveja... Era a única hora em que eu tinha um pouco o troco... Enfim eu não tinha o clichê necessário para viver naquela tribo.

E sua família como reagia? Porque eram pessoas de cultura, havia musicistas.


AP - Sim eles aceitavam porque me ouviam tocar e sabiam que eu era uma pessoa rara.Mas de qualquer forma eles queriam que eu levasse uma vida segundo os clichês deles e eu era obrigado a passar por humilhações e provações. E assim fui ido até a adolescência.

E esta questão da religiosidade. Parece que sempre foi inerente. Não tem nada a ver com influencias da família ou tem?

AP – Também, porque eu tenho uma irmã freira que me marcou muito. Enfim ter uma irmã que entrou para o convento, aquela coisa austera, nunca mais vê-la em casa. Eu achava bonito.

E como ficaram as figuras dos maestros Camargo Guarnieri, Taberin, Caldeira Filho e evidentemente Dinorah de Carvalho, os professores com que você estudou até os 23 anos?

AP - Bom eles eram os melhores da época. Mas quem me pegou desde criança foi a Dinorah de Carvalho a quem devo tudo e foi uma mãe para mim. Ao mesmo tempo em que foi boa, ela tinha a síndrome da não maternidade e tratava as “crianças” que estudavam lá como seus filhos. Então era uma fábrica de crianças-prodígio. Todos tocavam com orquestra aos oito, nove anos.

Você se lembra de algumas dessas crianças?

AP – Ah. Flávio Varani, grande pianista que mora nos Estados Unidos e Maria Regina Luponi, professores da Academia de Viena. Ela dava para o aluno a Dinorah, a síndrome de Peter Pan, quer dizer não se podia ficar adulto para não perder a magia. E isso, este lado maléfico que era inconsciente foi muito prejudicial acho que para todos que estudaram lá.

Como foi sua primeira experiência no exterior: o curso de música em Santiago de Compostela na Espanha que você fez aos 24 anos? Conte as seqüências disso, as repercussões na sua carreira.

AP - Foi muito interessante porque eu vi que sabia mais do que imaginava e muito menos também. Por exemplo, eu tinha coisas da minha formação de compositor muito mais avançadas que os colegas americanos e tinha falhas enormes também que é essa coisa cultural brasileira e que me faziam ver que eu ainda não estava no ponto.E esta desigualdade eu só vim a sanar dois anos depois com a Nadia Boulanger e o Messiaen.

Você diria que sua vivência-aprendizado com Gilberto Mendes com quem analisou Schoenberg, Berg, Webern. Stockhausen, Boulez, Messiaen, Villa Lobos, Stravinsky foram decisivos para sua opção pela musica serial ou isso já era anterior?


AP – Bem, Guarnieri foi meu professor cinco anos e ele me deu o artesanato sonoro nacionalista de acordo com a ótica pós Mario de Andrade. Mas ele era totalmente avesso a qualquer caminho dodecafônico, serial, atonal. Ele era conta. Agora, aos vinte anos eu tinha necessidade de conhecer o outro lado e não compor uma musica de 1890.

Você já tinha vontade de partir para o atonalismo?


AP - Pelo menos saber o que era... Quer dizer não é dogma de fé. Tudo é som. Aí me irritava que eu tivesse que fazer o discurso caipira na minha musica quando eu era um homem urbano. Eu era um homem sofisticado, já, gostava de Hilda Hilst, gostava de ler Valéry, gostava de ler São João da Cruz e de repente tinha que fazer nhém nhém, nhém ...(imita toada caipira) quer dizer em nome do quê?(risadas) eu não nasci em Jaú, no Cariri, nunca plantei feijão, um homem altamente sofisticado, urbano de família esnobe... Sou um homem litorâneo de Santos, que ouvia Elvis Presley, rock, não ouvia viola ao luar (gargalhadas). Lógico que eu tinha colegas que nasceram no sertão e vivenciaram tudo isso.

Evidente, não fazia parte do seu mundo.

AP - Então eu conheci o Gilberto Mendes, um homem urbano com cabeça aberta e indiretamente foi ele meu professor, porque ele não sendo, foi me dando subsídios. Ele dava livros que eu lia, ouvíamos discos, discutíamos e era um aprendizado. Eu devo isso a ele.

Ou seja, Guarnieri te deu a base acadêmica, ensinou a desenhar...

AP -O Guarnieri me ensinou a desenhar aquele homem de cachimbo na boca ao por do sol... E que também é muito bonito e bom, e o Gilberto Mendes me ensinou a fazer o abstrato. E ai na Europa eu fiz a síntese, porque estando longe do Brasil não tinha mais nada a ver com o Brasil, estava em Paris. Agora interessante que foi lá que comecei a usar de maneira nova todos os recursos do folclore, da flora e da fauna, da Amazônia, porque eu estava longe.

Você podia abstrair, estava distanciado...

AP - Foi ai que a minha obra começou a fica com dimensão universal e brasileira, porque eu tinha as ferramentas apuradas para eu poder fazer o que quisesse, desde as Cartas Celestes, cósmica, que tem de repente no Cosmos um ritmo de baião, porque eu quis - c´est un caprice, eu posso, eu posso tudo. Na hora em que você pode tudo, você se liberta.

Você tem muitas composições sacras. A primeira foi Missa da Paz, depois veio Paixão Segundo São Marcos.

AP - Eu fui um dos primeiros compositores a fazer no Brasil missa em português, porque o Concílio tinha liberado o texto e foi uma experiência interessante. Mas eu acho que minha obra é mística mesmo sem usar o texto sacro, ela busca dar a quem a ouve, um estado de contemplação. A minha música tende a fazer você entrar num clima. Os melhores momentos da minha música são momentos estáticos de paz, são grandes porções, grandes praias. Ela é new wave antes da new wave. Eu já fazia música minimalista antes...

Do Philip Glass...

AP - Antes do Philip Glass eu já fazia muita coisa que agora o pessoal está fazendo. Sabe você é profeta, como eu acho que a Hilda (Hilst) antes de muita gente em Qadós, ela já estava aprontando. Só que nunca santo de casa faz milagre. Você precisa morrer e ai dez anos depois uma louca da USP faz uma tese sobre a tua obra e ai fala: nossa na página 14 do primeiro volume de Cartas Celestes o Almeida Prado usou um acorde que agora no século XXI está usando. Quer dizer você já estava careca de saber disso (risadas) e ninguém falava nada.

Por que isso? As pessoas nunca são compreendidas, estão muito além do seu tempo?

AP - Não é nada de esnobismo não é isso. Simplesmente você intui um outro tempo. E esta outra dimensão que você intui e que é Deus que te dá essa intuição, e que nem você às vezes sabe.

Você disse que ter musicado o poema da Hilda Hilst: Pequenos Funerais Cantantes foi responsável por uma guinada de 180 graus na sua carreira. Conte esta história.


AP - Foi um divisor de águas. E foi também um caso de destino. Eu tinha lido no jornal esta série de poemas da Hilda: Um Corpo de Terra e era o texto que eu precisava para fazer uma musica para o Concurso...

Concurso da Guanabara...

AP - Eu li aquele texto... “chagas de sol, rosácea ardente, aqueles rios de sangue”.. E ai a música veio absolutamente genial - quadrinhas pequeninas e densas e para a música não tem melhor... “porta de fogo, caminho ígneo”. Você já sente tudo, porque quando tem muito blá blá blá já vira ópera. Eu fiz numa semana esta musica e mandei e ai ela foi classificada e quando eu no Rio ouvi o coral cantando aquela coisa eu disse: que obra genial.

Você já estava distanciado, não havia mais vaidade?


AP - Não, porque uma coisa existe em mim: a total lucidez quando eu gosto do meu trabalho. E não é sempre que isso acontece. Algumas obras me dão esta sensação: ela é maior que eu. Eu me ajoelho diante dela. É um filho que você gerou, ficou rei e você beija a mão do filho. É uma humildade porque é óbvio que não é obra tua, você foi instrumento. E aí foi um escândalo porque os grandes compositores da época perderam e eu ganhei. Eu era desconhecido, tinha 26 anos. Era um dinheiro incrível, 25 milhões, eu me dei uma bolsa e fui para a Europa. E depois lá consegui outras e acabei ficando cinco anos em Paris. Eu tenho uma gratidão muito grande pelo governador Abreu Sodré que me arranjou uma bolsa de um ano. Foram os melhores anos da minha formação.

Mas você já tinha afinidades com a França porque a cada quatro palavras em português diz duas em francês...

AP - Eu tinha pelo seguinte: a formação da musica erudita brasileira é francesa, não é americana. É Villa Lobos, que tem influencia de Debussy e Ravel, é Guarnieri que estudou na França com a Nadia, então na verdade eu fui buscar meus avós musicais, culturais...

Bom pelo que você conta o exame do Conservatório de Paris foi uma verdadeira tortura.

AP - Eu não passei no exame, não passei...

Mas depois foi chamado...

AP - Porque eu não estava preparado, não tinha metier para isso, mas fiquei tão deprimido que o Messiaen - porque eu coloquei no exame, na prova de escuta, os Funerais Cantantes e na prova de metier não passei, mas ele viu que dentro daquela coisa que eu errei, ele viu que tinha alguém ali. Ele tem o faro como eu tenho hoje com meus alunos da Unicamp (na época ele ainda lecionava na Unicamp). Não interessa que o cara errou tudo, mas ele tem a chama. E o que acertou tudo não vai dar em nada. Aí ele mandou um aluno na minha casa dizer: si te plais, mon jeune homme Messiaen implora que você vá à classe dele como ouvinte e você terá as mesmas aulas que ele dá para os outros. Eu comecei a freqüentar, ele adorava o que eu compunha, sempre. E ele me disse para eu não fazer o tal exame porque ia ter que estudar coisas sem interesse para o meu trabalho, totalmente vanguarda. E, além disso, eu estava estudando com a Nadia...

Paralelo você estudava com a Nadia Boulanger?


AP - Com a Nadia que não gostava de Messiaen...

Mas parece que você compunha ferozmente.

AP - Eu estudava como um louco, não tinha tempo para nada.

Ela era genial? Você até compôs uma obra Portrait de Nadia Boulanger. E Lili Boulanger como era?

AP - Era irmã dela, que morreu tuberculosa aos vinte anos, que era um gênio na composição. A Nadia sabia que ela não era um gênio, era Salieri, ela sabia, tinha cultura, então deixou de compor. Ela dizia: minha irmã disse o que eu não posso dizer. Quando a irmã morreu ela renunciou a fazer música e passou a ensinar.

Mas distinguia, sabia ver a genialidade do outro?

AP - Fazia o outro compor genialmente.

A edição das suas obras na Tonos Verlag de Darmstadt foi importante na sua carreira internacional, porque possibilitava a divulgação de sua obra. A partir daí ela foi mais executada?

AP - Eu acho que a Tonos apareceu através de um amigo meu que era o Manuel Massarani que era adido cultural da embaixada do Brasil em Genebra, um rapaz muito importante na minha vida. Ele era attaché cultural da delegação do Brasil na ONU - e de muita gente importante no Brasil e que as pessoas se esquecem de nomear. A Anna Stela Schic me disse: você tem que conhecer o Massarani porque ele pode te ajudar a fazer uma carreira na Suíça. Aí peguei o trem, modestamente, liguei da estação para a embaixada falei com ele e acabei hospedado em sua casa quinze dias. Neste tempo aconteceram coisas incríveis: ele marcou um recital meu no Conservatório de Genebra, recebi quatro encomendas de obras dos melhores grupos da cidade, ele ligou para Darmstadt falou com o Koenig que era editor, fui lá, assinei um contrato, ganhei um dinheiro adiantado. Quando cheguei a Paris já tinha obra tocada, tudo já marcado para dois anos de atividade na Suíça. Porque era um homem que fazia tudo na hora. E ele fazia isso para pintores, marcava exposições, tudo. É uma pena que ele não esteja mais lá, voltou para o Brasil e depois aconteceu que a Suíça ficou sendo mais do que França onde tudo acontece com minhas obras.

E o Oratório Villegagnon ou Les Îles Fortunées que você escreveu para o Quarto Centenário da morte de Nicolas de Villegagnon e que te possibilitou o ficar mais um ano em Paris?

AP - Foi isso que me fez ficar mais um ano, foi isso que me fez ficar mais conhecido em Paris, eu fui tocado em Provins, em Chartres, é uma obra muito interessante, foi um boom que me aconteceu.

Você voltaria a morar lá em Paris ou na Suíça?


AP - Eu tenho vontade de passar este ano um tempo lá (lembrar que estávamos no ano de 1989). Tenho um convite do João Carlos Martins para gravar uma musica minha em Los Angeles, e ir para os Estados Unidos com ele para a gravação. Tenho vontade de voltar a Suíça para continuar meu trabalho, da minha missa que foi um sucesso. Agora em Paris não tenho mais contato. Mas sempre acontece isso: há um lugar onde você é mais tocado. É este ou aquele a não ser Stravinsky, Messiaen que são tocados no mundo todo. Já está ótimo que haja um lugar onde você é amado, respeitado. Mas eu tenho vontade de ir para a Suíça, e Israel também me atrai muito... É uma coisa absolutamente mística, musical, é uma cidade carrefour, é a Bizâncio tudo acontece lá,a paz a guerra. Outro dia eu estava em oração e às vezes tenho uma locução interior (termo místico usado para designar contatos com o Alto) e Nossa Senhora me disse que meu tempo no Brasil estava terminando e que eu tinha que ir para outro lugar. Porque quando fui para a Europa, ano passado, que fui para ficar um longo tempo. Mas fui parar em Medjugorje e tive que voltar para dar início a todo este movimento, as imagens que eu trouxe (de Nossa Senhora Rainha da Paz que aparece a cinco videntes desde 1981) e daí que precisava estar aqui.Agora as coisas estão indo, andando sem mim e sinto que fechei um capitulo aqui e tem que abrir outro em outro lugar.É isso, nós somos peregrinos.

Esta coisa de Israel não será seu lado judaico, quero dizer esta atração pela terra dos seus antepassados?

AP - Gozado, quando eu era criança eu tinha uma coisa com Israel uma intuição que um dia eu iria morar lá. E quando estava na Europa eu tinha uma coisa com Israel, que era a coisa do Cristo, o grande judeu, Nossa Senhora a grande judia. Olha só que interessante aos dez anos eu profetizei - o repórter me perguntou: “o que você vai ser quando crescer?” “Quando crescer eu vou estudar em Paris”. Olha, eu tinha dez anos, o que eu sabia?E fui e foi em Paris que eu comecei. Minha filha Maria Constanza diz: eu vou para Nova York e eu a vejo assim: uma mulher linda, com cabelos com laço marrom, de vermelho tocando no Lincoln Center, um concerto de Beethoven com orquestra.

Quando voltou de Paris você foi dirigir o Conservatório de Musica de Cubatão. Em seguida foi convidado para a Unicamp. Conte esta história.

AP - Foi uma volta maravilhosa até porque eu voltei como estrela, ganhava bem, eu gostava do Conservatório, mas ai veio um convite do Rogério Cerqueira Leite, do Benito Juarez (que foi maestro da Orquestra Sinfônica de Campinas durante anos) e do Raul do Valle para eu ir para a Unicamp. Aí fui almoçar com o Rogério e foi um almoço histórico, muito interessante e muito rápido. Eu cheguei às 11 horas, ele me deu um cafezinho e me disse: soube que você é um grande compositor e em seguida me convidou para almoçar. No almoço ele disse: escuta aqui, você quer trabalhar na Unicamp? Nós vamos fundar um departamento de musica. Eu disse não, estou ganhando muito bem, 2.500,00 cruzeiros, pago 400 de aluguel, andava de táxi, ia para Cubatão de táxi. Ele me disse: mas estou te oferecendo 13. 500,00. Aí me lembro que caiu o garfo e a faca (risos).

Treze...

AP - Treze mil e quinhentos cruzeiros novos... Quer dizer de dois para treze. Aí parou tudo e perguntei: tem telefone aqui para ligar para Cubatão porque me exonero já. Não, porque ai já é uma coisa absurda. Mas daí eu disse: você está brincando? Ele: não, é o que vou te oferecer, MS 4.Sim, mas quando? Ele: já agora. Só que você vai fazer o seguinte: você já está ganhando a partir de hoje, você leva o curriculum, etc. Mas vai deixar o dinheiro no banco e vai para a Europa, só volta em fevereiro.

Mas era bom demais...

AP - Sim foi de bandeja. Me deu viagem para a Europa e em fevereiro de 1975 eu tinha no banco uns 90 milhões (lembrar que eram cruzeiros novos).Ai aluguei apartamento, comprei móveis, piano, tudo.Então a Unicamp foi um dom que Deus me deu, um presente.

Então você começou uma nova fase na sua carreira. Aliás, você já disse gostar muito da Unicamp, inclusive compôs uma sinfonia em homenagem a ela.

AP - Foi aí que comecei a florescer porque antes da Europa eu considero um aprendizado imaturo. Na Europa foi um grande aprendizado ainda mais apoiado em Messiaen e Nadia e quando eu cheguei ao Brasil e fiz aquela obra Momentos de Cubatão e Ilhas. Foi quando eu dei o grande divisor da minha obra e comecei aquilo que eu realmente queria. Aí compus as Cartas Celestes e fiquei o Almeida Prado com estilo próprio, com discurso pessoal.

São os Episódios de Animais, Ilhas, Exoflora, enfim você era um brasileiro compondo musicas que falavam da realidade do seu país?

AP - Tudo isso, que já considero do mesmo nível dos que eu faço hoje.

E por que acredita ser Cartas Celestes sua obra mais sólida e importante?

AP - Eu acho a obra mais importante para piano da literatura mundial, não só nacional. É uma das mais importantes porque é a obra mais longa para piano que existe, nem Messiaen tem uma obra assim, feita com o mesmo material. Na verdade ela é um grande afresco, um grande mural cósmico que mudou muita coisa no discurso do piano e influenciou muito a musica brasileira, todos os compositores jovens foram beber lá. Todos os que compõem para piano foram beber nas Cartas Celestes. Como também as Cartas Celestes tem influencia de Messiaen, Debussy, Villa Lobos, mas enfim ela é uma coisa nova. Ela é o Qadós da Hilda (hoje Kadosh da Hilda Hilst).

Ela foi executada no mundo inteiro, você me disse.

AP – Foi sim, foi gravada pelo Ney Salgado, Fernando Lopes, Roberto Szidon, japoneses, enfim foi executada no mundo inteiro.

Gostaria que falasse agora da sua fase na Unicamp. Parece-me que você considera sua obra composta neste período sua melhor obra?


AP - Foram treze anos, a porção mais importante da minha vida: dos 32 aos 45 anos. Eu compus a minha melhor obra e isso que te disse outro dia: se eu morresse agora, eu já fiz uma obra. Eu ainda posso compor mais, mas se eu morresse neste instante eu acho que não deixei descumprida a obra. Ela fechou. Então talvez eu faça uma outra obra, mas esta fechou. Tem as Cartas Celestes, A Sinfonia dos Orixás, a Sinfonia Unicamp, tem a Missa de São Nicolau que é maravilhosa.

Que segundo me contou foi estreada em Villars-sur Glâne, na Suíça. Conte em detalhes.

AP - Foi impressionante. Você não pode imaginar a minha emoção-eu na igreja de Villars-sur Glâne, nevando fora, Deus preparou o cenário teatral para mim...

Era véspera de Natal.

AP - Eu chegando e o maestro dizendo: não você não vem ver o ensaio hoje, vem na véspera para ser uma surpresa e tal. Mas como eu estava morando na casa de uns amigos, que ficava justamente atrás da igreja de repente comecei a ouvir uns sons, eu nunca tinha ouvido...

Mas como? Você compôs?

AP - Sim, mas uma coisa é você compor e outra é ouvir com coral, etc. Subi as escadas do Coro, ninguém sabia que eu estava lá e então eu ouvi uma coisa e falei: eu fiz isso e ai eu chorava aos prantos, de adoração, de gratidão, porque era uma coisa tão linda, porque, eu pensava, era nível de Beethoven, de Mahler...

É porque você é modesto...

AP - Não, você fica modesto diante de uma obra que realmente é maravilhosa. Ela ultrapassa... Mas aquela emoção não foi repetida porque depois eu ouvi novamente com pessoas ao lado, então você tem que ter atitudes, mas ouvir virginalmente... Eles diziam: quel merveille, eles elogiavam sem saber que eu estava lá, tudo foi espontâneo, tudo autêntico. Porque se soubessem que o compositor estava lá já seria diferente.

Isso foi onde? Na catedral?

AP - Foi numa igreja pequena, século IX. Mas na catedral foi uma emoção diferente, dia de Natal, missa de dez horas, pontifical com bispo, cardeal, e aí eu fiquei anônimo no meio da massa humana e aquela música era a catedral, aquela musica era de Deus, não era mais minha.

Gostaria que falasse um pouco da Sinfonia dos Orixás sua última obra grande não é?

AP - Eu estava na Suíça como você viu, eu estava lá para a première mundial. Porque é o seguinte: o Benito me encomendou uma obra para comemorar os dez anos da Orquestra Sinfônica de Campinas. Resolvi então usar algum clichê brasileiro usando afro, e fiz uma obra em que cada movimento era um orixá, um simbolismo. Eu não sou crente do candomblé, mas respeito. Então não era uma obra de alguém que crê em candomblé. Eu faço candomblé como podia fazer Zeus, Apolo, etc. e ficou muito bonito, muito colorido. E o Oscar Arrais, que é um grande coreógrafo, que era na altura diretor do Ballet de Genebra, um dia estava conversando com o maestro – veja de novo o destino - ele disse: “O que eu poderia fazer para a nova temporada - Lago do Cisne eu não agüento mais, Ofélia, Sacre du Printemps - ele queria uma coisa diferente- As Bachianas já era. Aí ele viu o disco sinfonia dos Orixás na mesa do maestro e perguntou - Almeida Prado quem é? Vamos ouvir isso aí.” E aí começaram aquelas coisas, os tambores, aquele som, ele ficou louco. Falou: é esse ballet. Endoideceu, ligou para a Unicamp, mandou telegrama, porque quando as pessoas querem te encontrar... Finalmente ligou para o meu editor que mandou material. Enfim foi posto na temporada oficial do melhor teatro de ballet da Europa - o Grand Theâtre de Genève junto com Bela Bartók.

Sei que você esteve em Medjugorje, ex-Iugoslávia, atual Bósnia-Herzegovina onde se registram aparições da Virgem Maria desde 1981 e sei também que o que te aconteceu lá ocasionou grandes mudanças na sua vida. Poderia me contar a viagem, a experiência, tudo?

AP - Pois então entre a Missa, a estréia da Missa, que era em dezembro de 1987, e o ballet em outubro, eu não tinha o que fazer na Europa. Estava com dinheiro, mas aí me lembrei de Medjugorje, que eu relutava em ir, eu tinha medo..

Por que, você sendo tão religioso?


AP - Das exigências de Jesus, porque eu não estava vivendo uma vida de acordo, estava vivendo de um jeito oba oba e eu sabia que isso não ia me levar a lugar algum. E via Deus como um grande caçador me espreitando, sabe como uma daquelas redes que se caçam os leões? Porque Deus é um grande caçador, ele te caça, ele te quer, malgrè, eu ia para cá ele para lá. Eu sabia que se chegasse lá e ele me pedisse para renunciar a tudo, todas as ilusões... Mas ai mais uma vez arranjei desculpas, eu não posso gastar dinheiro, se eu tivesse dois mil francos, pensei, eu ia. No dia seguinte fui ao banco e lá havia dois mil francos a mais na minha conta já dos direitos autorais do ballet. Ai eu pensei: é um insulto a Providencia de Deus eu não ir. Então arrumei uma maleta e fui para a estação de trem, peguei o trem para Berna, fui à embaixada carimbei o passaporte, em geral isso leva um mês, eu consegui em dois minutos. Fui para o aeroporto peguei o avião, fui a Zagreb, peguei o trem até Mostar e cheguei as 10 h da noite e havia um homem me esperando na estação... Ele perguntou: vai para Medjugorje? Quer dizer-São Gabriel (o arcanjo das comunicações) ou São Miguel, um anjo de Deus ali, vestido de chofer de táxi! Ele levou de táxi até lá. Eu pensava ou este homem vai me matar ou então é verdade. Ele me levou na casa de uma senhora que só falava croata. Eu dizia: sleep, dormire, recostare, dormitatum, falava em grego, a mulher nada (risadas). Aí eu disse: Nossa Senhora, já que me trouxe aqui, arranje pelo menos uma língua celta, que é pelo menos mais perto do francês que esse horror de w com z cortado de baixo para cima (o croata) não dá... Aí eu ouvi: mais non, parce que je... Aí fiquei mais aliviado - era alguém falando francês. Era a tal canadense...

A jornalista canadense que se converteu e está lá escrevendo?

AP - A Lise Leclerc que vai a Medjugorje duas vezes por ano, uma mulher rica e importante. Ela ficou trabalhando para Nossa Senhora. Aí eu disse: s´il vou plait madame... e finalmente me alojaram, eu estava quebrado. Aí, tudo bem, dormi de roupa, não havia chauffage e me acordaram às quatro da manhã para eu assistir a missa na capela das aparições - fazia menos dez graus, gelo no caminho. Aí começou todo o trabalho, eu senti necessidade de confessar, de procurar soltar e as coisas que foram dando certo até que durante uma aparição senti a presença de Maria chegando perto de mim e eu estava no céu - me veio uma certeza que Deus me ama, como eu sou, e que Deus não é um tirano, que o céu é uma jubilação, não dá para entender, foram minutos que para mim pareceram anos. E naquele minuto eu tudo entendi, eu tudo perdoei. E fiquei tão perturbado que comecei a trabalhar este dom e então comecei a rezar. Ia para a colina e ficava quatro horas em oração, ia para o quarto rezar, ia andar.

E aquelas locuções interiores de que me falou? Quando aconteceram?

AP - Ah foi depois - ouvi a voz de Maria na cruz azul que fica na colina – que ela havia me levado lá para me entregar a Jesus e que era irreversível, que ela com muito custo tinha conseguido me levar e que tinha lutado muito com Satanás e que eu não ia mais decepcioná-la. Não vem a frase, vem uma intuição. Aí, dias depois, fui rezar numa cruz que é uma cruz de madeira, como tem em Campos de Jordão e aí Jesus falou: “Dá-me tua vida”. Aí fiquei em pânico, pensei que ia morrer.E eu disse: “toma Jesus, tudo é teu”. Eu senti uma alegria, uma jubilação, fiquei inebriado, como se tivesse tomado cinco garrafas de vinho. Fiquei rejuvenescido. Mas eu não podia por uma tenda e ficar lá e eu tive que voltar, trabalhar, etc. Fui para Fribourg e levei uma vida entre o retiro e a solidão, aquela neve e comecei a escrever o Rosário de Medjugorje e fiquei esperando a Missa de São Nicolau, a estréia da minha Missa. Mas então começou a dar errado e voltei com a imagem que ela abençoou e começou todo um movimento aqui no Brasil. Fui para Belém do Pará e a coisa está crescendo, a divulgação das mensagens, das aparições...

Quer dizer que nesta hora ninguém sabe quem você é, compositor famoso, etc.?

AP - Ninguém sabe meu RG. Ali eu sou apenas o homem que foi para Medjugorje e que põe as mãos e pede: que Jesus te salve. Nesta hora eu sou instrumento de Cristo e eu tive que me acostumar com isso.

E quais as obras que você compôs depois desta experiência?

AP - O Rosário de Medjugorje, três canções baseadas num poema do pai de um amigo meu: Notre Dame de la Route - Eric Tillo. Vou ler para você: “Notre Dame, Vierge pure, vous etiez... Você era apenas uma medalha que eu carregava. Toda leve, rápida, doce, terna nos passos pesados do teu filho e eu te carregava como medalha alegremente. Eis que graça florida, que você vai à minha frente rápida, sobre as pedras. E meu coração te vê e escuta teus passos rápidos entre as pedras com o bastão. De seus pés, misturados na poeira, cintilando como um mistério no ar morno e palpitante. O seu manto é como um pano é um céu azul e flutua resplandecente entre as nuvens brancas e nos seus cabelos dourados, onde os trigos são olhados, a lua fina faz um desenho como um diadema de prata. Ando muito tempo em silencio e a noite cai e as árvores em cadência balançam com o vento. Você não escuta Maria, meus passos que estão sendo ralentados? Maria, ó santa Maria escuta, eu estou te seguindo eu não agüento mais andar. Aí você veio: ela parou e na escura sombra fria e nua você me pegou pela mão e na sua plenitude, sem medo nem cansaço. Enfim, divino privilégio, no meio dos seus braços de neve, o seu amor me faz subir. E o coração palpitando, eu escuto Nossa Senhora do Caminho, o vosso coração batendo e cantando”.

Ah que lindo... Nossa Senhora o carrega nos braços... Ele ouve seu coração batendo... Belíssimo!

AP – Sim ele está andando com a medalha e de repente vê a Virgem andando na sua frente e ele a segue, mas está cansado a certa altura... Cansado de andar.... E de repente ele não a ouve mais... Porque justamente ela o carregou nos braços. Ele era um grande poeta suíço. E depois, eu compus já aqui no Brasil Nove Louvores Sonoros e O Jardim Final que é uma lembrança de tudo aquilo que eu passei - uma espécie de psicanálise musicada sobre tudo o que passei toda essa experiência mística.

Você considera sua obra suficientemente divulgada e conhecida ou gostaria de vê-la mais tocada e mais conhecida? Sei que você diz não conseguir fazer coisas simples?

AP - Gostaria de ser mais tocado, lógico, mas eu tenho a impressão que faço uma obra tecnicamente muito difícil. Eu não consigo ser simples. Mas eu já me conformei, não estou mais preocupado.

Agora gostaria que você dissesse de forma "simples" o que e atonalismo. E transtonalismo.

AP - (vai ao piano e faz acordes maravilhosos, transtonais).

Vamos traduzir isso em palavras. Compare o tonalismo e atonalismo.

AP - O atonalismo é o uso e todo o espectro harmônico das ressonâncias cromáticas. Quer dizer, no atonalismo você pulveriza a limitação de um modo (vai ao piano e faz um modo maior). Agora você tem isso (faz um modo menor) e isso ocorre porque a terça diminuiu. Mas ouvindo uma música tonal você sente que ela tem um clichê de começo, meio e fim, que são as cad~encias (ilustra novamente no piano).

Vamos comparar com a literatura, para eu entender melhor a coisa. Você diria que o Ulysses de Joyce é atonal?

AP - É como escrever assim: “Maria acordou e estava muito feliz. Foi à cozinha e encontrou seu gato dormindo e disse: ó gato, você está dormindo”. Na literatura é aquilo que está previsto e pode ser genial. Agora a música atonal: Maria acordou gato falou ó gato, ontem eu estava passando... Aquela coisa estilhaçada, delirante, é o Kadosh da Hilda, em que você entra no futuro, no passado. Então Ulisses de Joyce é atonal. Dostoievski é tonal, Hilda Hilst é atonal, Lygia Fagundes Telles é tonal. E na pintura seria o abstrato. É quando você perde as referências. É o universo acima das referências.

Os tempos estão misturados, não há linearidade?

AP - Não tem linear. Na música atonal você instintivamente coloca harmonia, porque os têm como arquétipos herdados. Agora a música atonal não. O que não quer dizer que não se possa fazer música tonal hoje em dia, apenas que o discurso sonoro foi levado a um outro tipo. Mas agora (notar que ele falava isso em 1989) o tonal está voltando - o próprio Stockhausen é tonal.

Obras principais

Música orquestral: Cidade de São Paulo (1981); Sinfonia dos Orixás (1985-86); Sinfonia Apocalipse (1987); Variações concertantes para marimba, vibrafone e cordas (1984); Concert Fribourgeois (1985) e Concerto para piano e orquestra (1983);

Música coral: Ritual para a Sexta-feira Santa para coro e orquestra (1966); Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos (1967); Pequenos funerais cantantes para coro, solistas, orquestra (1969); Carta de Patmo para coro, solista e orquestra (1971); Thèrèse ou l’Amour de Dieu para coro e orquestra (1986); Cantata Bárbara Heliodora para solistas, coro misto e orquestra de câmara (1987); Cantata Adonay Roi Loeçar para solistas, coro e orquestra de câmara;

Música instrumental: Sonata para violoncelo (1980); 3 Sonatas para violino e piano; Sonata para viola e piano (1983); Réquiem para a paz (1985); Sonata para flauta e piano (1986); Trio marítimo para violino, viola e piano (1983); Livro mágico de Xangô para violino e violoncelo (1984);

Música para piano: Cartas celestes (1974); 9 Sonatas; Noturnos; Prelúdios; Variações; 6 Momentos; Ilhas; Rios; Itinerário idílico e amoroso ou Livro de Helenice (1976); 3 Croquis de Israel (1989); Rosário de Medjugorje (1987); 15 Flashes de Jerusalém (1989).