sábado, 8 de novembro de 2008

Da cegueira à clarividência ou breve ensaio sobre o ver


Paulo Amoreira
amoreira.paulo@gmail.com
Escritor e Artista Visual

“Meu olhar é nítido como um girassol.
(...)Pensar é estar doente dos olhos”
Alberto Caeiro

Em Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, filme francês dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 2001, após ajudar um homem a reencontrar seus tesouros de infância, a sonhadora Amélie Poulain descobre que pode interferir na vida das pessoas de modo a reaproximá-las da pulsão de vida que tinham adormecido em si. Como uma espécie de guerrilheira do sonho, passa a agir de modo a criar momentos mágicos na vida das pessoas que conhece, ora surreais, ora poéticos. O segundo a ser envolvido na sua missão salvadora é um mendigo, o cego do metrô, que faz ecoar a voz de Edith Piaf com sua vitrola. Amélie o ajuda a atravessar a rua e o transforma em um flâneur impossível ao conduzi-lo em uma vertiginosa caminhada pela rua, narrando intimidades cotidianas do entorno que captura com o lirismo do seu olhar:

Lá vai a viúva do tocador de tambor da fanfarra. Desde que ele morreu, ela usa o uniforme dele; O cavalo do açougue perdeu uma orelha; A risada é do marido da florista. Ele tem rugas nos olhos; Na vitrine da padaria tem pirulitos; Está sentindo esse cheiro? O fruteiro cortou um melão; Hoje tem sorvete de amêndoa; Passamos pela salsicharia. 79 o presunto, 45 a carne salgada; Casa de queijos. 12,90 o picadon e 23,50 o cabécou do Poitou; No açougue, um bebê olha um cachorro que olha os frangos.(...)

O que Amélie compartilha com o cego da vitrola é mais do que sua capacidade de ver, ela compartilha um certo modo de olhar. O filme todo é uma espécie de elogio à clarividência, a capacidade de ver mais e melhor, com mais profundidade e magia o mundo, as pessoas, as relações, os próprios sentimentos. Talvez de forma sintomática, esse mergulho na clarividência sugira um tipo de alheamento comum aos sonhadores, o distanciamento de quem vê e sente (não de quem vê e pensa). Como disse o mestre Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, na epígrafe desse texto, para o clarividente ‘pensar é estar doente dos olhos’. No livro Ensaio Sobre a Cegueira (transposto com considerável fidelidade para as telas de cinema por Fernando Meireles), o escritor José Saramago se utiliza de meios opostos para dizer o mesmo que Jean-Pierre Jeunet diz em seu filme.

Preocupa ao autor português a incapacidade de ver do homem contemporâneo, ou, antes a cegueira imposta pelos excessos imagéticos de uma sociedade cada vez mais visual e menos visível. Não à toa, os personagens de sua história são destituídos de seus nomes (a capacidade de nomear é a capacidade de dar sentido às coisas, como aponta a semiótica), sendo sempre apresentados pelo seu papel social, como ‘o médico’, ‘o motorista de táxi’, ‘o ladrão’, entre outros, ao por características superficiais como ‘a mulher do médico’, ‘a moça de óculos escuros’ ou ‘o atendente da farmácia’. A epidemia de cegueira destitui nomes, capacidade de ver uns aos outros e ver o ambiente. Os personagens mergulham no abismo da anomia, até se reinventarem dentro de si mesmos, através das novas relações com os outros e com o mundo, em uma espécie de clarividência proporcionada pela cegueira, que lhes revela a inutilidade dos adornos e facilidades da civilização na sua atual condição, e uma indesviável necessidade de manterem-se juntos, em relações colaborativas.

É revelador que a cegueira que atinge os personagens seja uma ‘cegueira branca’, o mar de leite que os atinge como se ofuscados por uma luz intensa e permanente, ao contrário da escuridão característica do universo dos cegos usuais. A soma de todas as cores do espectro solar resulta na luz branca. Talvez o que Saramago esteja nos contando na sua parábola sobre a cegueira seja que se, subitamente, pudéssemos ver todas as coisas que existem, como de fato são, em sua natureza mais íntima, ficaríamos cegos até nos rendermos a inevitabilidade da interdependência e, conseqüentemente, a compreensão da fatalidade presente na atitude predatória que persiste na nossa sociedade. Só a partir desse ponto o ser humano teria chances de escapar da inexorável extinção.

Longe de ser uma parábola moral, a história de Saramago é uma parábola ética. Evgen Bavcar (pronuncia-se Eugen Bauchar), o fotógrafo e filósofo esloveno, professor de estética na Universidade de Paris, em seu texto “O Corpo – Espelho Partido da História”, aponta que a mitologia não raro atribuía aos cegos uma outra qualidade de visão, tridimensional, proporcionada pelo aguçamento de todos os outros sentidos - sem distrações - que despertava uma espécie de percepção extra-sensorial que permitia-lhes perceber a realidade do entorno de forma mais completa que àqueles que vêem normalmente. Esse tipo de visão, chamada por ele de “a visão do terceiro olho”, muitas vezes faziam com estes cegos ultrapassassem as limitações impostas pelo tempo e pelo espaço, sendo contemplados com dons proféticos e o título de oráculos:

O olhar tridimensional, o de Édipo ou de Tirésias, portanto a visão que caracteriza o terceiro olho, só pertence aos cegos e a todos aqueles que aceitam a cegueira como a única possibilidade, no sentido da verdade tridimensional do mundo.

Neste texto, Bavcar também apresenta outro entendimento da cegueira como deficiência, baseado na idéia de que deficiente é todo personagem histórico desprovido de aceitação social ou parcialmente destituído pela circunstância histórica onde está inserido. Deficiente é o incompleto, imperfeito, dessemelhante. Seguindo esse raciocínio, na nossa sociedade imagética, o cego – enquanto deficiente - não é somente quem não tem o sentido da visão, mas também aquele que não domina nem compartilha dos códigos que regulam as relações entre as pessoas e o meio em que vivem. Também quem não tem acesso a esses códigos. Também quem os utiliza, mas não os compreende, repetindo padrões impostos.

Quem se rebela diante do que lhe fere e oprime; quem percebe de forma tridimensional a realidade imediata, estabelecendo conexões entre o que viveu e vive, projetando seus devires; quem desperta seu ‘terceiro olho’ que lhe permite participar da extraordinária experiência da existência, fará, no seu corpo, o trajeto entre a cegueira e a clarividência. De onde vemos o que vemos? Se abrirmos mão dos nossos nomes e significações, poderíamos ter acesso a uma tela branca existencial onde pintaríamos novas possibilidades? Como reaprender a ver o mundo se estamos cercados de palavras de comando, estruturas de controle baseadas no consumo, certezas rasas ofertadas em cada esquina? Como nos vermos sem os estereótipos judaico-cristãos que nos enchem de autocomiseração e culpa, reconhecendo nossas limitações e imperfeições como parte do caminho entre o que somos e o que queremos ser?

Como podemos fazer ver ao outro quem somos ou o que sonhamos ou que desejamos sem com isso se impor ao outro, sem vê-lo nas suas singularidades e afinidades? A aventura do olhar é uma aventura do corpo e do espírito. Ver está para além do que é percebido. Faz parte da entrega necessária que cumpre o que somos no tempo que escolhemos para viver. Ver é saber. Sentir. Ser.

Referências Bibliográficas: SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. BAVCAR, Evgen. O Corpo, Espelho Partido da História. In: NOVAIS, Adalto (Org.) O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

Um comentário:

paulo amoreira disse...

.para quem quiser relembrar a passagem do filme 'o fabuloso destino de amélie poulain' citada nesse texto:

http://www.youtube.com/watch?v=Kl8ORq6bMNY