Ricardo Soares de Carvalho
rsoarescg@uol.com.br
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Jornalista e escritor
Poucos autores brasileiros tiveram, como Nelson Rodrigues, uma visão cuja genuinidade é o aspecto trágico da existência. Ao longo de dezessete peças teatrais, nove romances, seis volumes de contos e crônicas e ainda várias centenas de artigos jornalísticos, o leitor incursiona pela atmosfera inventiva de quem enxergava o mundo como um lugar irremediavelmente triste. Enxergando-o assim, porém, utilizou lentes reguladas pelos fenômenos mítico e poético.
Referidos fenômenos prosseguem desafiando os desbravadores da mundividência rodrigueana, urdida na tristeza. Mas o binômio poético-mítico em Nelson Rodrigues afigura-se sobremodo desafiador quando se lembra: o convencional, na tragédia, consiste em as pessoas se oporem a seus destinos, que as destroem; paradoxalmente, ela, tragédia, contém mais otimismo do que a comédia, na qual aludidas pessoas nunca encetam contato com os desígnios universais. Seja qual for a hipótese, cabe evocar Marcel Duchamps na célebre assertiva de que “o humor é a delicadeza do desespero”.
Os livros de Nelson Falcão Rodrigues são repletos de figuras (falsos beatos, grã-finos devassos, entes incestuosos, solteironas reprimidas) atormentadas pelo sexo, que funciona associado à culpa e à morte, aviltando os indivíduos; dentre estes, são escassos os que encontram no amor uma possibilidade de redenção para seus desesperos. Em tal contexto, é percorrendo as 555 páginas de “Asfalto Selvagem” (edição da Companhia das Letras, 1995), que fica melhor perceptível o ângulo captado pela ótica peculiar de Nelson Rodrigues, onde se somam os recursos evidentes da estratégia irônica, do acentuado ceticismo e do clima libidinoso. Porque, jungindo coerentemente ditos recursos, retratou a farsa daquela moral classe-média por ele classificada em tom cáustico: puritana nos julgamentos, desequilibrada nos lares-alcovas e usuária da sexualidade como se estivesse lidando com o detalhe mal-resolvido das sociedades ocidentais. Tratando-se de escritor que considerava a ficção brasileira “cega para o cio nacional”, a prosa contundente de “Asfalto Selvagem” é uma ruptura nessa ficção.
O teatro moderno começou de fato, no Brasil, com a estréia de “Vestido de Noiva”: a ação desenvolve-se simultaneamente em três planos, misturando presente, passado e fantasias intimistas. Não sendo fortuito que, na derradeira peça, “A Serpente”, Nelson Rodrigues tenha abordado situação parecida à de “Vestido de Noiva” num formato mais complexo; pois imobilizara o transcurso dos anos em sua dramaturgia, e as antigas (reiteradas e compactadas) obsessões estavam presentes com a inexorabilidade das tragédias deixadas pelos gregos. Por conseqüência, o que se constata em “A Serpente” é uma fragmentada estrutura armada nas cenas esparsas, com o foco do tempo muito nítido. Verifica-se, ademais, a comprovação do vasto domínio de Nelson Rodrigues sobre a técnica teatral, revelando o fabulista espantoso pela originalidade e pelo despudor no uso de construções gramaticais e de palavras inusitadas (é fascinante seu afã de lexicalizar metáforas ou invocações repetitivas). Motivos sobejos para vê-lo como explorador de imaginários neuróticos, que pretendia típicos da classe média suburbana.
A censura oficial manteve “Álbum de Família” proibida de encenação durante vinte e dois anos; contudo, Nelson Rodrigues também foi censurado politicamente, tanto pela direita quanto pela esquerda: a primeira jamais lhe perdoou a crueza temática e a freqüente galeria de protagonistas escandalosos, ao passo que a segunda odiava a ironia ácida com a qual vergastava os modismos adotados pelo esquerdismo. Impiedoso polemista (as frases que esgrimiu para polemizar foram “os dogmas que tiram o véu do óbvio”, no dizer magistral de José Lino Grünewald), as discussões em torno de si impediram avaliações justas dos escritos que teceu na íntegra de incontestáveis méritos. O que parece descabido quando se pondera que as idéias políticas perdem validade, todavia a condição existencial é permanente. Eis indício seguro de haver critérios nas artes que suplantam os momentos e as ideologias: Sófocles e Shakespeare (que é uma espécie de guia para as possibilidades humanas) persistirão sempre atuais. Observe-se que Macbeth não é imortal por ser uma criatura estranha, e sim porque sua proximidade em absoluto faria bem.
Nessa linha conceptiva, as fases críticas que as expressões do espírito normalmente atravessam não se confundem com o caráter perecível dos posicionamentos ideológicos. Mencionadas fases de crise representam hiatos como o ocorrido com a pintura, quando Mondrian, Klee e Kandinski esgotaram o não-figurativismo; com a escultura, cujo colapso se verificou após os contributos de Brancusi e Giacometti; com a literatura, onde o impasse foi subseqüente ao nouveau roman; e com o teatro, desde que a supressão da linguagem estrutural instaurou paralisante encruzilhada na rota das experiências dramáticas: a diferença, no atinente a Nelson Rodrigues, é que sua criatividade abriu atalhos desviantes dos bloqueios no percurso paralisado. Sem embargo, Ortega y Gasset conceituou o homem de gênio como o que tem a capacidade de inventar alternativas para seus pendores precípuos.
A obra de Nelson Rodrigues é virulenta, explosiva e não raro desagradável (até seus exuberantes comentários sobre futebol avizinham-se do sentido de quem lamenta casos inopinados). Ao examinar referida obra com minúcia, Otto Lara Rezende desvendou traços revolucionários num escritor que proclamava seu reacionarismo. A conclusão, irretorquível, atesta que o mestre de “Senhora dos Afogados” era personalidade marcada pelas controversões. Por isso, Décio de Almeida Prado preceitua sejam-lhe filtrados os méritos, para destes eliminar a manipulação de melodramas: do procedimento emerge, consabido, majestoso legado dramatúrgico.
Anexo: Entrevista com Otto Lara Rezende.
Poucos autores brasileiros tiveram, como Nelson Rodrigues, uma visão cuja genuinidade é o aspecto trágico da existência. Ao longo de dezessete peças teatrais, nove romances, seis volumes de contos e crônicas e ainda várias centenas de artigos jornalísticos, o leitor incursiona pela atmosfera inventiva de quem enxergava o mundo como um lugar irremediavelmente triste. Enxergando-o assim, porém, utilizou lentes reguladas pelos fenômenos mítico e poético.
Referidos fenômenos prosseguem desafiando os desbravadores da mundividência rodrigueana, urdida na tristeza. Mas o binômio poético-mítico em Nelson Rodrigues afigura-se sobremodo desafiador quando se lembra: o convencional, na tragédia, consiste em as pessoas se oporem a seus destinos, que as destroem; paradoxalmente, ela, tragédia, contém mais otimismo do que a comédia, na qual aludidas pessoas nunca encetam contato com os desígnios universais. Seja qual for a hipótese, cabe evocar Marcel Duchamps na célebre assertiva de que “o humor é a delicadeza do desespero”.
Os livros de Nelson Falcão Rodrigues são repletos de figuras (falsos beatos, grã-finos devassos, entes incestuosos, solteironas reprimidas) atormentadas pelo sexo, que funciona associado à culpa e à morte, aviltando os indivíduos; dentre estes, são escassos os que encontram no amor uma possibilidade de redenção para seus desesperos. Em tal contexto, é percorrendo as 555 páginas de “Asfalto Selvagem” (edição da Companhia das Letras, 1995), que fica melhor perceptível o ângulo captado pela ótica peculiar de Nelson Rodrigues, onde se somam os recursos evidentes da estratégia irônica, do acentuado ceticismo e do clima libidinoso. Porque, jungindo coerentemente ditos recursos, retratou a farsa daquela moral classe-média por ele classificada em tom cáustico: puritana nos julgamentos, desequilibrada nos lares-alcovas e usuária da sexualidade como se estivesse lidando com o detalhe mal-resolvido das sociedades ocidentais. Tratando-se de escritor que considerava a ficção brasileira “cega para o cio nacional”, a prosa contundente de “Asfalto Selvagem” é uma ruptura nessa ficção.
O teatro moderno começou de fato, no Brasil, com a estréia de “Vestido de Noiva”: a ação desenvolve-se simultaneamente em três planos, misturando presente, passado e fantasias intimistas. Não sendo fortuito que, na derradeira peça, “A Serpente”, Nelson Rodrigues tenha abordado situação parecida à de “Vestido de Noiva” num formato mais complexo; pois imobilizara o transcurso dos anos em sua dramaturgia, e as antigas (reiteradas e compactadas) obsessões estavam presentes com a inexorabilidade das tragédias deixadas pelos gregos. Por conseqüência, o que se constata em “A Serpente” é uma fragmentada estrutura armada nas cenas esparsas, com o foco do tempo muito nítido. Verifica-se, ademais, a comprovação do vasto domínio de Nelson Rodrigues sobre a técnica teatral, revelando o fabulista espantoso pela originalidade e pelo despudor no uso de construções gramaticais e de palavras inusitadas (é fascinante seu afã de lexicalizar metáforas ou invocações repetitivas). Motivos sobejos para vê-lo como explorador de imaginários neuróticos, que pretendia típicos da classe média suburbana.
A censura oficial manteve “Álbum de Família” proibida de encenação durante vinte e dois anos; contudo, Nelson Rodrigues também foi censurado politicamente, tanto pela direita quanto pela esquerda: a primeira jamais lhe perdoou a crueza temática e a freqüente galeria de protagonistas escandalosos, ao passo que a segunda odiava a ironia ácida com a qual vergastava os modismos adotados pelo esquerdismo. Impiedoso polemista (as frases que esgrimiu para polemizar foram “os dogmas que tiram o véu do óbvio”, no dizer magistral de José Lino Grünewald), as discussões em torno de si impediram avaliações justas dos escritos que teceu na íntegra de incontestáveis méritos. O que parece descabido quando se pondera que as idéias políticas perdem validade, todavia a condição existencial é permanente. Eis indício seguro de haver critérios nas artes que suplantam os momentos e as ideologias: Sófocles e Shakespeare (que é uma espécie de guia para as possibilidades humanas) persistirão sempre atuais. Observe-se que Macbeth não é imortal por ser uma criatura estranha, e sim porque sua proximidade em absoluto faria bem.
Nessa linha conceptiva, as fases críticas que as expressões do espírito normalmente atravessam não se confundem com o caráter perecível dos posicionamentos ideológicos. Mencionadas fases de crise representam hiatos como o ocorrido com a pintura, quando Mondrian, Klee e Kandinski esgotaram o não-figurativismo; com a escultura, cujo colapso se verificou após os contributos de Brancusi e Giacometti; com a literatura, onde o impasse foi subseqüente ao nouveau roman; e com o teatro, desde que a supressão da linguagem estrutural instaurou paralisante encruzilhada na rota das experiências dramáticas: a diferença, no atinente a Nelson Rodrigues, é que sua criatividade abriu atalhos desviantes dos bloqueios no percurso paralisado. Sem embargo, Ortega y Gasset conceituou o homem de gênio como o que tem a capacidade de inventar alternativas para seus pendores precípuos.
A obra de Nelson Rodrigues é virulenta, explosiva e não raro desagradável (até seus exuberantes comentários sobre futebol avizinham-se do sentido de quem lamenta casos inopinados). Ao examinar referida obra com minúcia, Otto Lara Rezende desvendou traços revolucionários num escritor que proclamava seu reacionarismo. A conclusão, irretorquível, atesta que o mestre de “Senhora dos Afogados” era personalidade marcada pelas controversões. Por isso, Décio de Almeida Prado preceitua sejam-lhe filtrados os méritos, para destes eliminar a manipulação de melodramas: do procedimento emerge, consabido, majestoso legado dramatúrgico.
Anexo: Entrevista com Otto Lara Rezende.
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