quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Hitchcock tinha alma

João Batista de Brito
jbbb@openline.com.br
Crítico de cinema

No âmbito do folclore cinematográfico mundial, um dos mexericos mais conhecidos, e também mais maldosos, é a preferência que tinha o cineasta anglo-americano Alfred Hitchcock por mulheres louras, preferência que, de fato, se refletia na sua obra.

E, contudo, a mulher mais importante na vida e na obra do autor de Um corpo que cai não era propriamente loura, nem especialmente bonita: curtos e ligeiramente ondulados, seus cabelos eram castanho-escuros, embora ela fosse alva como uma boa descendente de anglo-saxões. De corpo cheio e cintura fina, tinha um rosto comum, redondo e miúdo, mas seus olhos escuros eram agudos e sua postura incisiva. Refiro-me a Alma Reville (1899-1982), namorada, noiva, esposa e parceira de ofício com que Hitchcock conviveu por quase sessenta anos.

Quando os jovens Alma e Alfred se conheceram, nos primeiros anos da década de vinte, ele ainda não era do ramo e ela já: trabalhava para a indústria cinematográfica britânica havia algum tempo, em funções variadas, principalmente montadora, e até atriz foi, no filme de Maurice Elvey The life story of David Lloyd George (1918) onde fazia o papel da esposa do ministro inglês.

Depois dessa experiência na tela, foi sensata, porém, em definir o seu talento pessoal, que era enorme e versátil, mas decididamente dirigido aos bastidores de filmagem.

Possuía um espírito ágil e treinado para perceber que romance, ou que estória daria um filme interessante. Foi, ela própria, autora de argumentos e de adaptações, e co-roterirista de filmes que fizeram sucesso, como o ótimo A sombra de uma dúvida (1943), cuja autoria dividiu com o dramaturgo Thornton Wilde. Outra agilidade sua estava no olhar, o que lhe deu em muitos filmes a nada fácil missão de continuista, aquele profissional que, em cada tomada, registra os mínimos detalhes para não haver incongruências na combinação das cenas e seqüências. Tanto é que, depois da estréia de Psicose (1960), ao se notar um piscar de olho de Janet Leigh morta no piso do banheiro, o pessoal da equipe admirou-se que, mesmo a continuidade do filme não tendo sido sua, aquilo tivesse lhe escapado. Esse detalhismo a fazia também uma excelente editora de imagens, embora em muitos casos, trabalhando em colaboração espontânea, nem tenha feito questão de seu nome aparecer nos créditos.

Para fazer justiça, seria muito pouco dizer que Alma foi a “esposa do mestre do suspense” ou mesmo a sua colaboradora. Na verdade, o papel que ela desempenhou na confecção mesma da filmografia hitchcockiana transcende as muitas funções que nela ocupou por trás das câmeras, desde o primevo e mudo de 1922 “Always tell your wife” (‘Sempre conte a sua esposa’: título curioso para o assunto desta matéria, não é?) ao derradeiro Trama Macabra (Family Plot, 1976). O comum é que, sem interessar em que estava sendo creditada (e ela está creditada em 28 filmes), Alma acompanhasse de perto todas as etapas da filmagem e desse opinião sobre cada uma delas, e, mais importante, sobre o resultado final. Poucos filmes do esposo escaparam do seu tirocínio.

A importância de sua avaliação pode ser dada por uma frase de Hitchcock, tantas vezes escutada pelas equipes de filmagem ao ponto de ficar famosa. Usada em relação a projetos novos ou a cenas em processo de filmagem, a frase constava destas três palavras: “Alma loved it” e, claro, se Alma adorou – todos tinham o bom senso de deduzir -- é porque era ótimo e prometia sucesso.

De uma relação conjugal bem sucedida costuma-se hoje em dia falar em cumplicidade. Pois já que tantas vezes o tema nos filmes hitchcockianos foi o crime, de uma forma mais pertinente que a comum, pode se dizer que Alfred e Alma foram cúmplices, e nessa condição faleceram, ele em 1980, ela em 82. Em alguns desses filmes, a mulher foi a vítima do marido (Cf Janela indiscreta): na vida real, em que pese ao obsessivo “lourismo” hitchcockiano, jamais.

Ao contrário do que mantém o ditado, nem sempre por trás de um grande homem – a gente sabe -- há uma grande mulher: no caso de Hitchcock houve. Em certa fase da carreira americana do diretor de Rebeca, a mulher inesquecível, anos quarenta, mas sobretudo, cinquenta, a crítica cinematográfica internacional (inspirada no título interrogativo de um certo livro de Henri Agel, “O cinema tem alma?”) costumava se indagar se, por trás do suspense nos filmes de Hitchcock havia alma. Hoje a gente sabe que havia e, melhor, a palavra tinha vários significados.

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