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Escritor, professor e pesquisador de literatura brasileira
“O livro número um do Brasil” - que dezembro completa 107 anos de publicação - diz muito de um drama da história nacional, e também de dramas dos tempos atuais.
“Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade": palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa: ‘le style cest lhomme même’), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753. Os sertões estão fadados à posteridade. A obra-prima de Euclides da Cunha completa 106 anos celebrada por muitos, muitíssimos motivos — em especial por sua espantosa atualidade
Já se falou e escreveu — vai-se falar e escrever sempre, ao que parece — de sua linguagem difícil: o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira, com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra número 1”. É bom lembrar que o “livro vingador” — assim ele mesmo, Euclides da Cunha, o batizou, ao lançá-lo — teve sua primeira edição (custeada com recursos próprios do autor) de 2 mil exemplares, rapidamente esgotados.
O que mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida em 3 idiomas, em mais de 60 países — em muitos deles foram feitas traduções sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é equivocado pensar que sobre Os sertões tudo já foi dito, lido, ouvido e escrito: muito há o que comentar, muito o que refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o que debater e meditar.
O que fez, e faz, Os sertões tão célebre?
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado — um anônimo engenheiro e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado escritor do país, na época — de outro está sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos — chave de Os sertões relacionava-se com um longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos — o cientificismo da ‘geração 1870’; 2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Junior e depois Silvio Romero — além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram, insistindo em signos de raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e conteúdo escapavam do comum, do conhecido — e os ensaios críticos que vieram em seqüência, ao longo dos anos (e até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas: literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática, engenharia”. Tanto Veríssimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de preparo científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra, tão mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.
A emoção e o espanto provocados pela obra de Euclides emite seus ecos até hoje. Quase todos os críticos se entusiasmaram, mas por força de seu ofício ficaram se perguntando: por quê? “É uma obra sem carteira de identidade. A natureza de seu ser, enquanto obra literária, permanece indecifrada. É impressionante verificar como sua realidade ontológica persiste incapturável pela crítica literária”, admitiu o escritor Franklin de Oliveira, que fez a si mesmo a pergunta até hoje ‘clássica’: afinal, o que é Os sertões? É ficção, vaticinaram entre outros Tristão de Athayde e Afrânio Coutinho, que escreveu: “Trata-se de romance-poema-epopéia. Uma epopéia épica,narrativa heróica, da família de Guerra e paz, e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada.” O professor Leopoldo M. Bernucci, da Universidade do Colorado em Boulder, EUA, acredita que em toda a história da literatura brasileira nenhum autor conseguiu estabelecer, até agora, uma relação tão visceral com seus leitores como Euclides. “O sentimento do leitor é de assombro e perplexidade. É detestado e adorado. Tem acertos e deslizes, mas não deixa ninguém indiferente.” Entre os supostos deslizes literários, mostrando que a posteridade não é um refúgio seguro nem para os grandes gênios, inclui-se o comentário de Joaquim Nabuco ao conferir a Euclides a responsabilidade por um certo mau estilo das gerações que o sucederam. Gerardo Mello Mourão, por sua vez, acha que o barroco euclidiano degenerou “no rococó dos deslumbrados, que produziu no Brasil uma literatura altissonante e suspeita, na qual se pode inscrever a obra do próprio Guimarães Rosa”. Independentemente do sucesso de público e de crítica, sua perpetuação, sustenta a antropóloga, pesquisadora e ensaísta Regina Abreu, está relacionada a demandas sociais. Ao ser transformada em monumento, símbolo nacional ou fenômeno cultural, uma grande obra literária extrapola suas características iniciais, passando a desempenhar funções sociais que ultrapassam seu valor essencialmente literário. “O coroamento de Os sertões teve o mesmo efeito de um tombamento__ como ocorre com um bem arquitetônico”, ela explica; “ é como “semióforos”, dotados de um valor simbólico que ultrapassa o valor de uso; considerados preciosidades, estão investidos de valor sagrado. Tornam-se um culto”.
Na consagração de Os sertões, menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa fundação? por inovar, por renovar, por revolucionar... por tornar-se enfim um clássico, em meio a elementos histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período de fortes mudanças no país — não apenas pela substituição da monarquia pela república, que seria aliás interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião de Canudos’.
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Euclides da Cunha nasceu e se criou na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX — uma sociedade monárquica dominada por grandes proprietários de terra e de escravos, em que vigorava o espírito da “sociedade de corte”.Na seara literária, era época da incipiência do naturalismo/realismo — de um naturalismo com cunho cientificista — ascendente sobre o romantismo(então representado sobretudo por Machado de Assis e José de Alencar); tempo ainda da proliferação da temática do sertão e do interior, de profusão de ‘escritores sertanejos’ — e nesse contexto, por força desse vetor, Os sertões encontrou ‘campo fértil’ de aceitação e, face à sua qualidade excepcional, de celebração definitiva.
Sobre o episódio de Canudos outros autores escreveram, à época: Afonso Arinos, que já era conhecido por focalizar o tema dos sertões e contar histórias de sertanejos, com Os jagunços _ novela sertaneja ; Manoel Benício, com O rei dos jagunços; até Artur Azevedo criou uma peça, “O jagunço” , encenada no Rio de Janeiro em 1897; e Machado de Assis (ele mesmo), escreveu oito artigos entre 1894 e 1897 (22/7/94; 13/9/96; 06/12/96; 27/12/96; 31/01.97; 07/02/97; 14/02/97; 11/11/97) em sua coluna “A Semana”, publicada no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.
Mas Euclides, diferentemente da maior parte desses autores que escreveram sobre Canudos, preferiu não editar suas anotações escritas no ‘calor da hora’ dos acontecimentos, registradas no Diário de campanha e nos esboços do livro que a princípio intitulara “Batalhas dos soldados de São Paulo”, para amadurecê-las à base de seu arraigado cientificismo e à luz de novas leituras de trabalhos científicos: o recolhimento em São José do Rio Preto deu-lhe as condições necessárias a esse amadurecimento. Assim, “antecipou um comportamento que seria tônica entre os cientistas sociais, inaugurando de certa forma o ‘trabalho de campo’ seguido da postura de distanciamento e de reflexão teórica sobre o material recolhido”, segundo o crítico e ensaísta José Guilherme Merquior.
Por outro viés, o momento de consagração de Os sertões, no início do século XX, pode ser considerado o coroamento de uma invenção que já vinha se processando há anos, ‘a invenção do sertão’. O sucesso da obra de Euclides veio afirmar — e por ela foi ativada — a positivação da temática sertaneja, do interior, entranhada na cultura literária brasileira. Os sertões, de resto, se inserem numa tradição literária privilegiante do rural e incentivou, insuflou e consolidou uma vertente que iria gerar o ciclo do romance regionalista da década de 1930.
A literatura sertaneja constituida na virada do século já era tradição consolidada. O sertão era considerado o lugar da pureza e da autenticidade, o“lugar da nacionalidade autêntica”. Antonio Candido, por exemplo, sentenciara que “o cânone da literatura brasileira é rural, e não urbano” e já sinalizara nessa direção ao constatar que “desde o início de nosso romance, [o regionalismo] constitui uma das vias de autodefinição da consciência local, com José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay”. O ‘conto sertanejo’ tratava o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso: “era a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense, a ingenuidade de Cornelio Pires, o pretensioso exotismo de Waldomiro Silveira ou de Coelho Neto de Sertão, é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900 e 1930”, observava Candido, enfatizando que “a publicação de Os sertões contribuiu certamente para esse movimento de valorização do interior”.
Só que subvertendo toda uma visão “pitoresca, sentimental e jocosa’” do homem rural, rejeitando toda ‘banalidade, pretensioso exotismo, ingenuidade’ — e mostrando o sertanejo como “antes de tudo um forte... a rocha viva de nossa nacionalidade”. (vale notar que essa visão ‘dicotômica’ do sertanejo, ora como um ingênuo, frágil ora como um forte, veio na década de 1910 a permear a interpretação de Monteiro Lobato com relação ao Jeca Tatu, desenhado sob três perfis distintos ao longo de sua ‘trajetória literária’).
Euclides também se distinguiu dos demais escritores da ‘voga sertaneja’ por vir apoiado em discurso científico, novidade na época, que deu ao livro ‘autoridade’ superior (ao mesmo tempo ‘legitimadora’ das demais obras sertanejas) e forneceu condições para que idéias e conceitos emitidos apenas como impressão ou opinião ganhassem estatuto de fatos ‘cientificamente’. O sertão tornou-se via privilegiada para uma leitura do Brasil tanto do ponto de vista literário e artístico quanto da tradição de estudos de etnografia e folclore: na esteira dessa via vieram Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, até mesmo Glauber Rocha no cinema e Mestre Vitalino na arte popular artesanal.
A grande novidade foi justamente “o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira”, o que coloca Euclides no lugar de “pai fundador da sociologia no Brasil”, pois segundo Antonio Candido “toda a onda [da voga sertaneja] vem quebrar em Os sertões, típico exemplo de fusão, livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, que assinala um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira, no caso as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior”.
É com Euclides da Cunha que se perfaz a revelação intelectual e afetiva do sertão, do “Brasil oculto e verdadeiro”. Os sertões emblematiza ainda a retratação do cientificismo de Euclides, de seu determinismo geográfico e racial, emprestado do darwinismo social — antes convencido da inferioridade das “raças fracas”, mas rendido à descoberta de que ser o sertanejo ‘um forte, uma rocha viva’... Não poderia deixar de ser, nem ser de outra forma : o contexto apontava para isso. O cientificismo de Euclides — de resto, comum a toda sua geração — era emprestado do ‘darwinismo social’(gerado pela publicação do livro A origem das espécies, de Charles Darwin em 1859), propugnante da tese de superioridade de raça, o conceito de raça ultrapassando o campo da biologia, se estendendo à cultura e à política, desvirtuando ou ‘adaptando’ as teorias darwinistas no que fosse mais conveniente, utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo; recorrendo às leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Ao lado da influência de Comte, o evolucionismo de Darwin e de Spencer dispôs Euclides a aceitar, com excessiva confiança, as "leis" sobre os caracteres morais das raças que tanto acabariam pesando na elaboração de Os sertões.
O naturalismo/realismo era acima de tudo “uma extensão literária da mentalidade cientificista em que o espírito positivista, ‘a glorificação do fato’, dominava o cenário intelectual, eliminados os últimos resquícios da educação humanística, dando livre curso à religião da ciência. Repudiando em bloco o espiritualismo da fase romântica, a ‘geração de 1870’ adere em massa ao empirismo materialista __ e Euclides é dessa geração; nela nasceu, nela viveu e por ela foi formado __ daí ser o romance realista uma “narrativa de tese”, uma narrativa que comprova o encadeamento causal dos acontecimentos, exibindo sua dependência de fatores biológicos ou ecológicos.
É preciso, no entanto, saber que por volta de 1894, Euclides já entregara-se com fervor aos estudos brasileiros, passando da geologia à botânica, da toponímia à etnologia: o acervo de conhecimentos que então carreou formaria a base científica de Os sertões. Foram anos de estudo intenso e variado: ao lado das ciências naturais, da geografia e história brasileiras, Euclides embebia-se dos clássicos portugueses cuja. sintaxe e vocabulário deixariam não poucos sinais em Os sertões.Foram também anos de interesse pelas ideologias renovadoras que já encontravam eco em um Brasil em fase inicial de industrialização. Sabe-se que Euclides se achegou ao grupo socialista de São José do Rio Pardo, mas teria sido antes um observador simpático do que um militante convicto: o que importa, porém, é a assimilação de critérios progressistas na gênese de sua obra — já denotado em Os sertões — principalmente nos últimos escritos, dentre os quais é texto exemplar o artigo "Um velho problema", de 1904, página candente de “repúdio à exploração da classe operária”.
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Euclides da Cunha, embora Os sertões fosse o seu primeiro livro, já havia atingido um alto estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e uma clara consciência da sua arte: o crítico Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam o estilo euclidiano, e que em qualquer outro escritor” poderiam resultar em desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da palavra que nele preexistia”. O crítico e ensaísta Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado da linguagem : Euclides implementou “uma consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição , expressa no livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de opostos, dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de toda a obra euclidiana — os ‘contrastes e confrontos’ (que deram título, aliás, a uma delas)
A questão de originalidade e autenticidade de Os sertões em última análise nada mais seria do que reflexo da personalidade de Euclides. Se o estilo é natural e original, “ele escreve o que vem de dentro, como sente”, nas palavras de José Verissimo, diferencia-se do escritor guiado apenas por sua subjetividade, pois examina a realidade exterior com as lentes da ciência, procurando o distanciamento — outra das características apontadas pelos críticos: o ecletismo, o jogo de oposições, de tese e antítese (na melhor acepção da filosofia‘hegeliana’),de ‘contrastes e confrontos’, presente da primeira obra a todos os escritos posteriores de Euclides, em que trata de “assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política, envoltos em problemas de história, pátria, imigração, povoamento, indústria, engenharia”, como chamou a atenção Araripe Junior.
“Os sertões permanece atual, desafiando o tempo”, sustenta a ensaísta Walnice Nogueira Galvão. “O papel de Euclides da Cunha na construção da memória da Guerra de Canudos é fundador”, reitera; “Os sertões narra a conversão de Euclides, que foi para lá levar a civilização e o progresso e, quando viu, estava levando o massacre dos pobres; o livro fez por uma insurreição popular o que nenhum outro foi capaz de fazer, no país: alçou-a a tragédia paradigmática, mediante o louvor à coragem do sertanejo”. E dessa maneira, sentencia Walnice, “legou seu libelo à posteridade”.
José Guilherme Merquior ressaltou “uma eletricidade abertamente monumentalizante” nas páginas de Os sertões — obra que para ele era antes de mais nada “uma retratação”, no caso uma dupla retratação: retratação do republicano que condenara dogmaticamente, sem procurar a princípio entender o fenômeno, o “obscurantismo reacionário dos jagunços de Antônio Conselheiro”, e que em contato direto com a realidade, o ambiente, o hinterland, foi levado a reconhecer “o heroismo anônimo das populações seretanejas”.
Seriam contradições, sustentava Merquior, que por mais que turvem a coerência da visão cientificista de Euclides, depõem em favor de sua honestidade intelectual, enriquecem em especial a significação sociológica e estética de sua saga sertaneja. O alcance épico da rebelião que ele pintou em cores ‘poéticas e literárias’, fruto de sua própria transfiguração artística, teria sido basicamente o que levou a crítica a comentar “o romance que pulsa sob Os sertões” — sob a bitola da “linguagem rutilante, da ornamentação verbal”. Mas em Euclides há mais esplendor verbal do que simples ‘ornamentação’, afirmou Merquior.
Para Merquior, “Os sertões. é o clássico do ensaio de ciências humanas no Brasil”, numa época, enfatiza, em que os estudos sociológicos ainda conservavam muitas afinidades com a formação humanística. É exemplo notável de uma “intelectualização da literatura”, num livro meio científico meio literário que abordou “alguns temas atualissimos da pesquisa antropológica”: um deles, da mística do advento do Reino de Deus por intermédio do messias Conselheiro — e aqui surge o tema do messianismo e do sebastianismo (dos mais polêmicos : no que tange ao caso de Canudos, guarde-se as devidas cautelas acerca das peculiaridades e acepções que “a mais famosa, dramática e peculiar manifestação messiânica brasileira , simbolizada pela figura de Antônio Conselheiro , afirmando ou negando o índice messiânico daquela comunidade); outro, “o fato de Euclides da Cunha ter sentido muito lucidamente o problema da definição sociológica de certas formas de anormalidade mental”, escreveu Merquior. Ao reconhecer o entrosamento dos aspectos irracionais da personalidade do ‘profeta de Canudos’ com as aspirações e carências de uma comunidade rústica, sufocada por flagelos naturais e indiferença das camadas dominantes, Euclides “intuiu brilhantemente a natureza psicossocial da noção de loucura, dessa ‘zona mental onde se acotovelam gênios e degenerados’; sobre Antônio Conselheiro, cujo delírio místico traduzia o desespero de uma sociedade, Euclides afirmou que ‘foi para a História como poderia ter ido para o hospício’. Vale dizer, “o positivista Euclides suspeitava da existência de uma ‘sociologia do psiquismo’, do mesmo modo que o darwinista social constatara a força titânica das ‘raças inferiores’. Fulgurante pela transbordante energia poética de seu estilo narrativo, Os sertões sobrevive ad eternum também por seus inovadores vislumbres sociológicos __ inéditos e ‘revolucionários’ para a época, absolutamente válidos e instigantes hoje”, sublinhou Merquior.
Berthold Zilly, professor no Instituto Latino-americano da Freie Universität Berlin e o tradutor alemão de Os sertões, registra: “Euclides da Cunha chamou a atenção para os excluídos em obra fundadora da nacionalidade”. E observa que “o escritor é mais clarividente do que o pensador. O ideólogo republicano e cientificista Euclides da Cunha cada vez mais cede lugar ao patriota e homem cheio de empatia e de compaixão do mesmo nome, que se considera ´narrador sincero´, representando a realidade através de um ´consórcio’ da ciência e da arte”.Zilly destaca que entre as suas visões inovadoras merece destaque a valorização da mestiçagem como processo fundamental para a formação da sociedade sertaneja e brasileira. “Na história do pensamento social do país, Euclides, com sua elevação do sertanejo a herói nacional, constitui importante elo de ligação entre o viajante alemão Martius, que no seu tratado ‘Como se deve escrever a história do Brasil’, publicado em 1844, reinterpretou a mestiçagem como processo necessário e positivo para a constituição do Brasil como nação, e o sociólogo Gilberto Freyre, com seu ensaio clássico Casa-Grande e senzala”. A glória e a atualidade de Os sertões, registra Zilly, nem tanto se devem às informações e às reflexões sobre a guerra e o sertão, que se encontram em numerosos outros escritos da época, mas principalmente “à sua arte encenatória, sugestiva e plástica, à sua força imagética, à sua prosa altamente retórica e poética, entre sarcástica e sublime, à sua teatralização do meio, dos eventos e dos personagens; o caráter sagrado do sertão, na visão dos canudenses, passa para a obra, o assunto santifica o texto. Raramente na história da literatura a identificação entre uma realidade e a sua representação é tão intensa quanto em Os sertões”.Segundo Zilly, é isso que explicaria o extraordinário êxito junto ao público letrado, à opinião pública, aos críticos literários e aos próprios historiadores, “ justamente, o caráter abrangente da obra, que pode ser encarada como summa, e ainda sua indefinição, ou melhor, a multiplicidade de gêneros literários que condensa, sua capacidade de congregar as mais variadas informações, atitudes, formas de enunciação — relatos, poemas, pichações de paredes, artigos e livros sobre a guerra — incorporando, portanto, vários tipos de texto: crônica, lenda, depoimento, diário, tratado geográfico, etnográfico e historiográfico, formas populares simples e ainda romance, ensaio, discurso forense e político, oração fúnebre, tudo amalgamado num estilo relativamente coeso, próprio, inconfundível”. Enfatiza que o livro reúne as três formas básicas da literatura — a epopéia, o drama e a lírica — “um livro-síntese de temas, pontos de vista, métodos de pesquisa e ideologias, quase uma enciclopédia do sertão, que ‘digere’ todo tipo de texto anterior sobre o assunto, obra polissêmica, por isso mesmo sugestiva, instigadora da imaginação do leitor, radicaliza suas contradições, exacerba os paradoxos. Os sertões são muitos livros em um só”
Por outro lado, um certo viés de reticência oferece o ensaísta Roberto Ventura . Em texto ainda inédito, ressalta que “Os sertões é obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza. Euclides da Cunha recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a epopéia, para estilizar a guerra de Canudos e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular”, mas defendia a tese de que “Euclides interpretou a Guerra de Canudos a partir de fontes orais, como os poemas populares e as profecias religiosas encontrados em papéis e cadernos nas ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem da autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em Os sertões, um retrato sombrio do líder da comunidade”.
Segundo Ventura, os sermões de Antônio Conselheiro, recolhidos em dois volumes manuscritos a que Euclides não teve acesso (as prédicas e discursos de Conselheiro constam de um caderno manuscrito encontrado em Canudos, após o fim da luta, por João de Sousa Pondé, médico que participou da campanha como cirurgião da última e vencedora expedição militar ;o escritor baiano Afrânio Peixoto , por sua vez, passou-os a Euclides da Cunha, quando Os sertões já estavam publicados. Euclides morreu poucos meses depois e não se sabe se teve tempo de folhear os manuscritos do Conselheiro) mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou do profeta milenarista : revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de forma articulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional, corrente na Igreja do século XIX.
Ventura aponta que a leitura dos textos de Antônio Conselheiro traz uma surpresa instigadora: têm um nível considerável de organização, com uma distribuição e uma seqüência lógica dos assuntos; são gramaticalmente bem estruturados e seu conteúdo religioso, longe de qualquer aberração, é equilibrado e bastante próximo do texto bíblico.No discurso "Sobre a República" ,por exemplo, estão expostas as idéias de Antônio Conselheiro em que “se pode observar um conteúdo mais político, embora sempre determinado pela religião. A premissa fundamental do texto é a de que a República deseja acabar com a religião e por isso é nociva ao povo sertanejo; a República é criticada como ‘assunto que tem sido o assombro e o abalo dos fiéis’. Vista como grande mal para o Brasil, sua implantação é debitada à ‘incredulidade do homem’. Na ótica do Conselheiro, a deposição do monarca contrariava a vontade divina, pois ‘todo poder legítimo é emanação da Onipotência eterna de Deus’. “Tratava-se, portanto, de uma questão de princípio sustentada por um dogma religioso que fundamentava sua posição contrária ao regime republicano. Para ele, combater a República era defender a religião”, escreveu Ventura.
Dessa forma, a visão de Euclides acerca de Canudos torna-se complexa e problemática. Segundo o ensaísta, o discurso de Euclides da Cunha é ambíguo,” marcado por um torneio retórico de antíteses, em que Antônio Conselheiro, seus seguidores e Canudos emergem da análise num jogo de contradições, ora positivados e admirados, ora negativados e execrados. Isso mostra o impasse de Euclides diante da realidade observada, diante da dimensão humana do conflito e diante das limitações do seu método de análise. Todavia, pode-se considerar que o seu distanciamento cultural se mantém em todo o percurso do livro”. Todavia, ressalvou Ventura, “Euclides fixa a consciência de que os canudenses não representavam uma ameaça real à instituição republicana, pois não constituíam um movimento político organizado na tentativa de restaurar objetivamente a Monarquia, e assim procura mostrar que as idéias contrárias à República eram resultantes do atraso civilizatório, do estado de ‘ignorância’ em que se encontrava a população sertaneja. Sob essa ótica, a luta necessária não seria feita através da força militar e dos canhões, mas sim da educação, das letras, das luzes, no processo de introdução dos sertanejos ao progresso, incorporando-os à nacionalidade”. E Roberto Ventura concluía :”Esta constatação abre o caminho para a autocrítica e para a revisão de idéias anteriores, como a de que Canudos era ‘A nossa Vendéia’. A partir disso, Euclides interpreta a intervenção militar como um erro histórico, como um ‘crime da nacionalidade’ contra patrícios, de que seu livro se oferece como denúncia e libelo.” Em sua interpretação , Euclides foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil cuja história seria movida pelo choque de etnias e culturas, e lançou seu brado de alerta: ‘estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos.’
Desse modo, independentemente da perda de sua vitalidade conceitual, a permanência e a atualidade de Os sertões se devem à veemência de sua denúncia, à sua pertinência histórica e à sua excelência literária, o que o sustenta como um marco fundamental da cultura brasileira. Por todas suas implicações, significações, interpretações e nuances, um livro enfim que veio afirmar novos valores e novos temas de literatura e ciência, obra com a rara qualidade de possibilitar aproximação plural e múltiplas leituras __ entre elas uma reinterpretação do Brasil, renovado com a descoberta dos sertões.
Os sertões recebem, de Gilberto Freyre, uma interpretação que sublinham seu caráter ‘fundador e canônico’. O autor de Casa grande & senzala apontava “a eternidade e incolumidade” da obra diante de um movimento cada vez mais radical de mudança de eixo para interpretação dos fenômenos sociais: o conceito de raça, pelos idos de 1940, como explicativo para o social, estava sendo derrubado, e as ciências sociais proclamavam sua autonomia frente às ciências da natureza. “Como então Os sertões, que tinha em grande medida como quadro conceitual as ciências da natureza, mantinha-se [e mantém-se] atual, glorificado em edições e mais edições, traduções? Como resistiu ao movimento de releitura da raça como fator de inferioridade, explicativo da sua gênese?”, indaga Freyre, para ele mesmo responder: “porque Euclides da Cunha, ainda que resvale no pessimismo dos descrentes da capacidade dos povos de meio-sangue para se afirmarem em sociedades equilibradas e organizações sólidas, uma descrença lastreada no fatalismo da raça, no determinismo biológico,ao tentar compreender a psicologia do sertanejo, fez um ensaio revelador sobre a formação do homem brasileiro. Desmistificou o pensamento vigente entre as elites do período, de que somente os brancos de origem européia eram legítimos representantes da nação. Mostrou que não existe no país raça branca pura, mas uma infinidade de combinações multirraciais. Previu um destino trágico para o Brasil, se o país continuasse a não levar em conta as diversas raças que o formaram. Mostrou que o Brasil tinha contradições e diferenças étnicas e culturais extremas. Concluiu que havia uma necessidade imperiosa de se inventar uma raça. Caso contrário, o Brasil seria candidato a desaparecer”.
Apesar de imerso num contexto intelectual e sociológico onde predominava o determinismo biológico, Euclides teve, no entender de Freyre, a lucidez de perceber que “o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, ele percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas, principalmente o da raça, lhe tivessem perturbado a análise e interpretação de alguns dos fatos de formação do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos". Ao tecer o perfil de Euclides da Cunha como escritor além de seu tempo, intuindo o primado do fator cultural no estudo das sociedades num ambiente intelectual, sociológico e antropológico em que predominava a noção de raça como elemento explicativo do social, Gilberto Freyre propõe nova atualidade para o autor de Os sertões.
A atualidade e modernidade de Os sertões __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e transformação do pensamento social sobre o Brasil. “Euclides da Cunha é o intelectual brasileiro que mais se interessou em conhecer mesmo o Brasil por dentro”, vaticina o crítico e ensaísta Luiz Costa Lima. ”Os sertões deixou um retrato, um cenário que não pode nunca ser esquecido”, completa.
Costa Lima sustenta ser “Os sertões obra de estranhamento e paradoxos” , e especula : “pode uma obra ser ao mesmo tempo ficcional e não-ficcional? pode , na medida em que recicla e faz repensar o papel desempenhado pelo discurso científico e pelo discurso literário”. Lima argumenta que Euclides constrói na verdade ”uma dupla inscrição, uma estrutura narrativa que supõe o ajuste de um centro tematizado com bordas e molduras”. Nisso residiria exatamente o ‘estranhamento’, porquanto “o texto se desgarra do centro férreo — ‘cientificista’ — e se mostra sob a forma de ‘ilhas’, nas bordas em que uma espécie de representatividade teatral vence a intencionalidade autoral”. O que, no entender de Lima, entre muitos outros aspectos torna a obra absolutamente genial.
Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o Brasil dentro de um momento histórico e complexo processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso, científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor especial: igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’ e seja fadado à posteridade.
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No lastro da posteridade, porque Os sertões, simbiose entre jornalismo, literatura, história, ensaísmo, ciência, geografia, sociologia, antropologia, geologia, é obra de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade, atualidade.
Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é “uma epifania de brasilidade, uma fala do Brasil”.
Perenidade, em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos fundadores, fontes da historiografia literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza e Silva , José do Patrocínio. Perenidade, ainda, por ser inovadora de uma literatura-denúncia;
Atualidade por “chamar a atenção para os excluídos”, denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome, registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice, o misticismo e o messianismo — algo sempre latente no cenário político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador da Pátria’).
Sobretudo, a atualidade da obra deve-se à inquietação que seu caráter de denúncia provoca, um livro que oferece a oportunidade de ,a partir de Canudos, ter uma visão clara de questões de origens sociais.
Os sertões diz muito de um drama da história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.
Anexo: Trailer do documentário Sobreviventes - Filhos da Guerra de Canudos dirigido por Paulo Fontenelle.
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