domingo, 31 de maio de 2009

Walt Whitman: o profeta da América Moderna

Gilfrancisco Santos
gilfrancisco.santos@gmail.com
Jornalista

Desde o começo deste ano, o mundo comemora os 150 anos da primeira edição de Folhas da Relva, do poeta Walt Whitman (1819-1892) que perpetuou por meio dessa arte um conjunto de idéias e sentimentos que, em vez de dividir e frustrar os seres humanos, tendem, de modo geral, a uni-los, satisfazê-los e realizá-los. Nenhum autor americano, com a exceção de Poe e Longfellow, criou tamanhas diferenças de opiniões, provocou controvérsias tão marcadas, como Walt Whitman. Em suma, foi levada por seu próprio idealismo a torna-se um crítico realista da sociedade, observando, com um olhar penetrante e franco para os fatos, os males herdados pela democracia. Odiado pelo público e crítica quando publicou Folhas de Relva , hoje é tida universalmente como a mais famosa obra poética da literatura americana, nela transparecendo o amor de Whitman pela natureza e pela vida.

Folhas de Relva é, ao mesmo tempo, a realização do romance americano e o início de uma revolta contra ele, a consumação de uma América do Norte mais antiga e o prenúncio de uma nova. Sua poesia é basicamente transcendentalista, a influência primordial é de Ralph Wald Emerson, pois o pensamento de ambos é ilógico, nada sistemático, intuitivo, profético, ou seja de um místico. Suas verdades tinham essa certeza mística, eram principalmente verdades transcendentais, que ao reinterpretá-las, Whitman as impregnou de sua personalidade que lhes deu um tom mais sadio, vigoroso, extremado e, por vezes, irritante.

O individualismo dos transcendentalistas tornou-se, nele, ora um egoísta arrebatado, ora um prazer e admiração românticos diante do mistério de seu próprio ser. Como no longo poema Eu canto a mim mesmo, onde o egoísmo não é estreito nem egoísta, não é apenas o indivíduo Walt, que ele declara, mas em si torna-se imediatamente um tipo de toda a raça humana - misticamente, sua identidade funde-se com sua miríade (quantidade indeterminada) de companheiros mudos. Entre esses dois pólos prende grande parte de sua poesia anterior: de um lado o gozo apaixonado de sua própria individualidade, do outro, o sentimento igualmente apaixonado da fusão de sua própria personalidade, cujo sentimento duplo encontra-se no poema A travessia de Brooklyn.

Enquanto Whitman mergulha no mistério transcendentalista do ego, ao mesmo tempo adotava um otimismo ainda mais entusiástico do que o de Emerson. O amor pela vida tornou-se uma paixão, que o emocionava com um êxtase de amante. “O gosto sem sabor da atmosfera límpida era mais doce que o perfume; o oceano, cujas ondas ritmadas não passavam muito tempo longe de sua cadência, era um companheiro selvagem, mas afetuoso. “Satisfeito com a vida em todas as suas faces, Whitman resolveu cantar suas maravilhas com tanta desenvoltura a simples alegria de viver: o mistério do sexo, a libertar os prazeres carnais das peias da pseudocultura, e assim, passou a celebrar o corpo com uma franqueza concreta.

Embora estivesse sempre pronto a reconhecer seu transcendentalismo, não o considerava como a tendência principal de sua poesia, o seu nacionalismo estava acima de tudo, aspirava ser o bardo e o profeta da democracia americana. Regozijava-se de uma América Livre materialista (“alimentar o espírito mais alto, a alma”), onde a liberdade devia desabrochar num “personalismo rico, luxuriante e variado”, em sua essência. Portanto, Whitman substitui a antiquada celebração da lealdade feudal pelo louvor à fraternidade democrática. Em sua revolta as convenções, quer sociais ou literárias, clamou por uma América Livre, especialmente o Oeste, com uma raça altiva, nobre e ambiciosa de literatos que retratasse de modo adequado o cenário americano, que estimulasse e despertasse o povo americano. Pois isso, não só pelo sentimento nacional, mas também por outros aspectos do seu romantismo, é Walt Whitmam um precursor da América do século XX.

Suas audácias de forma e pensamento eram prematuras para uma literatura dominada por Longfellow e Lowell; depois, já a sua fé na democracia e seu generoso otimismo foram ultrapassados pelas reviravoltas trazidas pela Revolução Industrial e pelos resultados da Guerra de Secessão. Além disso, em meio à febre de negócios, o romance eclipsou a poesia e a vítima foi Whitman. O poeta de Folhas de Relva traduziu o padrão existente de pensamento num novo e largo simbolismo que o definiu, adaptou-o a uma nova linguagem capaz de exprimi-lo, e fê-lo acessível a uma nova geração que estava passando por mudanças, tanto na crença consciente como na implícita, mais antiga, no indivíduo como padrão para avaliar os sistemas intelectuais e o material literário. Ele era mais autoconsciente, artificial e afetado do que os escritores da primeira metade do século. E , por essa razão, reflete uma decadência do espírito criador que havia levado a literatura norte-americana a seu período de vitória sobre suas inevitáveis importações do exterior.

Havia nele uma verdadeira mística, uma fé servida por inteligência lúcida, impulsionava-o uma grande esperança, sem ilusão alguma; era idealista sim, mas conservava os pés firmes no solo e não era cego para as dificuldades e perigos da democracia. Além disto, sua sensualidade e sua percepção da natureza proporcionavam-lhe as comunhões com as coisas mais humildes e as visões inesperadas de beleza que caracterizavam os grandes poetas. Todavia, a transmissão de uma atitude mental de uma geração para outra deve processar-se substancialmente em nível consciente em meados do século - não apenas em Whitman, mas na política, na economia e em outras manifestações não literárias - poderia não ter atingido o lugar que atingiu na tradição norte-americana. Nem por isso deixa-o de ser um criador tipicamente americano e surpreendente, portador de uma realização espontânea do ideal individualista transcendental, como definiu a si mesmo.

Apesar da grande influência de Whitman sobre o poeta heterônimo Álvaro de Campos, podem constatar entre os dois diferenças sensíveis, identificadas pelo próprio Fernando Pessoa ao afirmar que: “Álvaro de Campos definiu-se excelentemente como sendo um Walt Whitman como um poeta grego lá dentro; há nele toda a pujança da sensação intelectual emocional e física que caracteriza Whitman; mas nele verificou-se o traço preciosamente oposto.” O poeta e ensaísta norte americano Ezra Pound, um dos que lançou as bases para uma nova modalidade de estudos de crítica literária, em seu livro ABC of Reading, publicado em 1934, diz que “os erros de Whitman são superficiais; ele dá bem uma imagem de seu tempo: escreve história mora; assim como Montaigne escreveu a história de sua própria época. Pode-se aprender mais acerca dos Estados Unidos do século XIX com Whitman do que com qualquer um dos escritores que ou se abstiveram de perceber, ou limitaram seu registro ao que lhes haviam ensinado era expressão literária conveniente.”

Vivendo todo o período de transformação industrial de seu país, Whitman produziu uma obra poética bastante original, escrita em versos de métrica livre, linguagem vibrante e musicalidade própria. Seus poemas apresentam longas numerações de imagens pulsantes, pregando a valorização dos sentidos e exaltando a vida moderna e a democracia. É fácil entender agora por que Álvaro de Campos, dirige-se a Whitman no poema Saudação a Whitman: “O sempre moderno e eterno, cantor dos concertos absolutos, / Concubina fogosa do universo disperso, / Grande pederasta roçando-te contra a adversidade das coisas, / Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões.” Whitman acreditava numa unidade universal maior, que englobasse todos os homens, todos os seres, todas as coisas existentes.

Daí sua necessidade de provar todas as emoções, de entender seu canto a todas as coisas e seres. A saudação de Álvaro de Campos é, pois, endereçada a um de seus principais inspiradores, cuja poesia escreveu constantemente em tom profético, tinha ele consciência de seu papel pioneiro. Álvaro de Campos é o poeta que se propõe a abrir seus sentidos todos ao mundo e a vida, buscando uma linguagem poética capaz de exprimir sua alucinante vontade “sensacionalista”.

Walt nasceu em Long Island, numa fazenda localizada à beira Mar, em New York, em 31 de maio de 1819 e, talvez pelo fato dessa proximidade, toda a sua vida ele sentiu verdadeira sede de mar e o barulho das ondas dava-lhe renovado ânimo. Filho de carpinteiro pobre, começou desde cedo a trabalhar como tipógrafo e jornalista. Entusiasta de reformas sociais como a abolição da escravatura, direitos da mulher e amor livre, também o empolgavam os grandes espetáculos, como a feira mundial realizada em 1853, e o lançamento do primeiro cabo telegráfico transatlântico cinco anos depois, inspirando-lhe fé ilimitada no progresso da América.

Tendo completado doze anos de idade, Walt arranjou emprego no escritório de um velho advogado do Brooklyn, Clarke, que lhe deu de presente uma assinatura para freqüentar a biblioteca local. Passando a se interessar pela leitura, não demorou a compor alguns versos, que teve publicação no jornal The Long Island Patriot.

Com alma de vagabundo, não podia permanecer por muito tempo no mesmo lugar, de jornal em jornal e de emprego em emprego, pois mudava tão logo se aborrecia ou se cansava. A cidade de Nova York e a sua querida Manhattan foram as suas mestras, pois freqüentava os teatros, andava de ônibus e lancha, além de fazer novos amigos onde quer que fosse. Enquanto jornalista indolente, preparava-se lentamente, meio conscientemente, para ser o poeta mais representativo do romance americano.

Whitman estava encontrando dentro de si mesmo uma solução em hieróglifos para as questões que iria formular se manifestando em voz alta uma sabedoria posta à prova segundo as diretrizes. Pois, a vasta experiência que tinha da vida americana, somada a poesia de Scott, o Antigo e Novo Testamento, Ossian, Ésquilo, Sófocles, Dante, Homero, formava sua filosofia política não só pela prática da democracia jeffersoniana na América do Norte, mas também pelas teoria herdadas do iluminismo do século XVIII.

Em julho de 1855, ano do falecimento do pai, publicou seu primeiro livro Folhas de Relva, consistia doze longos poemas de tonalidade épica, sem títulos, escritos em versos irregular, com tiragem de oitocentos exemplares. Esse pequeno volume encadernado em verde, impresso em papel grosseiro, trazendo na capa uma ingênua vinheta de folhas e folhas. Segundo o próprio autor, para exprimir o momento, era “necessário forjar uma nova linguagem poética, que postas de parte as muletas da rima e da métrica, tivesse amplitude suficiente para abranger aquela vasta matéria épica, conferindo-lhe significado e beleza.” Mal sucedido nessa primeira experiência tanto de vendas como de crítica, escandaliza-se com certos versos em que o poeta louvava o próprio corpo, não se negando de referir-lhe as partes mais secretas; ou com outros em que exaltava ao amor físico, conclamando os homens e as mulheres de sua pátria a procriarem uma raça bela e sadia. Em meio à tempestade de insultos, o apoio de Emerson animou o poeta a lutar contra a hostilidade dos críticos e a indiferença do público, quando este numa carta, louva-lhe o talento e a coragem: “...esfreguei os olhos para ver se este raio de sol não era uma ilusão, mais a solidez do livro valia por uma firme certeza.”

Visivelmente empenhado em fazer da sua vida e da sua obra uma coisa só, Walt Whitman reeditou várias vezes com revisões e acréscimos, conservando sempre o mesmo título e o mesmo espírito. Somente a parti da 2.ª edição, publicada no ano seguinte, Whitman inseriu a carta de Emerson, mas o livro continuou antipático, tendo mais aceitação na Europa do que nos EUA, onde até os Correios se negavam a aceitá-lo para entrega.

Por fim pronta a terceira edição, revista, e publicada por um editor de Boston em junho de 1860, com cento e cinqüenta sete poemas, repartidos em quatro partes: Cantos Democráticos, Folhas de Relva, Filhos de Adão e Calamus. Apesar de ter sido prevenido contra a “linguagem extremamente forte” dos poemas, achando que os leitores talvez não soubessem interpretá-los, Walt achou que os leitores deveriam ler o que ele tinha para dizer e o que livro devia ser publicado exatamente como ele tinha escrito. Folhas de Relva é um dos livros seminais da literatura moderna, introduziu o verso livre, o tratamento poético das coisas da vida cotidiana, dos progressos técnicos, das grandes cidades e - com inteira franqueza - do amor sexual.

Whitman publicou ainda, Impressões das Folhas de Relva em 1860 que reunia opiniões da imprensa, tanto as favoráveis como as desfavoráveis; Perspectivas Democráticas, 1871 (prosa), que passou desapercebido, muito embora se tratasse de uma obra na qual o gênio Whitmaniano se mostrava em toda a sua pujança. Onze anos depois sairia Dias Típicos e Coletânea (notas autobiográficas), 1885; Rufar de Tambores, coletânea de poemas em louvor a Lincoln. Ramos de Novembro publicado em 1888 é mais uma coletânea de trabalhos em prosa e verso, incluindo trechos de crítica, páginas autobiográficas e poemas curtos publicados anteriormente em revistas.

Adeus, minha fantasia de 1891 é um volume composto igualmente de fragmentos em prosa e cerca de uma trintena de novos poemas. Em dezembro do mesmo ano, prepara o volume da décima edição (definitiva) da Folhas de Relva, incorporando as derradeiras correções ao texto e enfeixando quatrocentos e onze poemas. Em 1873, Walt Whitman sofreu um ataque de paralisia, do qual nunca se recuperou inteiramente, lhe paralisou o braço e a perna esquerdos, vindo a falecer aos setenta e três anos, em 26 de março de 1892 em Camdeu, New Jersey.

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