quarta-feira, 13 de maio de 2009

Arquétipos e caricaturas do negro no cinema nacional

João Carlos Rodrigues
jcrodrig@terra.com.br
Jornalista e pesquisador

Um dos questionamentos mais freqüentes feitos ao cinema brasileiro por intelectuais e artistas negros é o de que seus filmes não apresentam personagens reais individualizados, mas apenas arquétipos e/ou caricaturas: “o escravo”, “o sambista”, “a mulata boazuda”. A acusação é pertinente, embora o cinema brasileiro moderno prefira em geral personagens desse tipo, esquemáticos ou simbólicos, negros ou não.

O antropólogo Artur Ramos já observara, em O folclore negro no Brasil -1935, como alguns orixás “passaram ao folclore brasileiro e mantêm estreito contato com a imaginação popular, contato mágico e algo familiar, pois sobrevivem como símbolos de complexos individuais“. Isso pode ser comprovado no excelente documentário de Eduardo Coutinho, Santo forte-1999, onde cidadãos perfeitamente “normais” conversam com entidades sobrenaturais. Esses símbolos são muito bem detalhados por Pierre Fatumbi Verger no livro Orixás-1981, cuja classificação das qualidades e defeitos pessoais das divindades afro-brasileiras revela mais de uma dezena de personalidades humanas, diversas e complexas. Esses arquétipos acabam, de um modo ou de outro, influenciando a Arte e os artistas. Sempre me pareceu uma pena que os psiquiatras, psicanalistas e psicólogos do Brasil não tenham se aprofundado mais nesse assunto.

Outra família de tipos provêm da imaginação do branco, forjada pelo medo, solidariedade, amor ou ódio. Pertence a um extrato mais recente do que os de origem africana. Muitos são oriundos do tempo da escravidão, outros estão ainda em formação no inconsciente coletivo do brasileiro. São comuns a outras sociedades surgidas na plantation de cana, café ou algodão, como o sul dos Estados Unidos e Cuba. Nem todos são pejorativos, como veremos.

Inspirado na peça Os negros de Jean Genet, baseado na obra de Verger e na minha própria observação pessoal, estabeleci a seguinte subdivisão de arquétipos e caricaturas do negro no cinema brasileiro, primeiro numa série de artigos no jornal ùltima hora em1975, posteriormente em livro, em 1988 e 2001. O livro e o filme de Joel Zito Araujo (A negação do Brasil–1999), que tratam do mesmo tema na televisão brasileira, confirmaram que eu estava no caminho certo. Na ficção brasileira, no cinema ou fora dela, todos os personagens negros pertencem a uma das classificações abaixo, ou são uma mistura de mais de uma delas.

1. Pretos Velhos

São típicos dessa mescla de substratos culturais diversos. Descendem dos griots e dos akpalô da África Ocidental, cuja função é manter a tradição oral das tribos, através de contos, lendas e genealogias. Essa função transferiu-se para o Brasil com os escravos, como atestam os escritores Gilberto Freyre e José Lins do Rego, que conheceram nos engenhos de Pernambuco velhas mucamas contadoras de histórias, que se locomoviam de fazenda a fazenda, deliciando a garotada. Nosso folclore também assinala o ciclo das Histórias de Pai João e Mãe Maria, do tempo da escravidão, narrando com uma ironia resignada o relacionamento entre patrões e escravos. Algo parecido existe nos Estados Unidos com as Histórias do Tio Remus, transformadas por Walt Disney em 1946 no filme Song of the south/Canção do sul. Os Pretos Velhos de ambos os sexos são entidades freqüentes no culto da umbanda, mas também o candomblé assinala muitas das suas características (sabedoria, indulgência, dignidade) na velha deusa marinha Nanã (Nananborocô), e, igualmente no Oxalá velho ( Oxalufã ).

Outra contribuição considerável para a sedimentação desse arquétipo são os personagens da literatura. O principal é a Tia Nastácia da coleção infantil de Monteiro Lobato O sítio do Pica-Pau Amarelo-1921, adaptada mais de uma vez como seriado de TV, e também como filme cinematográfico. A minisérie televisiva baseada no livro chegou a ser censurada em África, em países como Angola e Moçambique, que a consideraram uma caricatura pejorativa da negra submissa.Os Pretos Velhos aparecem na nossa ficção como essencialmente conformistas, numa espécie de contraponto ao negro militante. Não surgem com muita freqüência no cinema brasileiro, onde jamais ultrapassaram o nível de coadjuvantes.

2. Mãe Preta

Arquétipo típicamente oriundo da sociedade escravocrata brasileira, onde era comum o filho do sinhô branco ser amamentado por uma escrava negra. Foi muito celebrada em poemas sentimentais, sendo costumeiramente apresentada como sofredora e conformada, o que a aproximaria dos Pretos Velhos.

A peça teatral Mãe (1860) de José de Alencar, aborda um desses seres abnegados, que prefere o suicídio a atrapalhar o bom matrimônio de seu filho de criação. São do mesmo tipo os sofrimentos atrozes da Mamãe Dolores de O direito de nascer - radionovela cubana de Felix Caignet escrita nos anos 40, e filmada no México em 1951 e 1966. No Brasil foi um sucesso tão estrondoso que foi reprisada no rádio em cadeia nacional, adaptada três vezes para televisão e uma para o cinema.

O subtexto é evidente: para serem bem aceitos pela sociedade dominante, esses filhos brancos devem renunciar a suas Mães-Pretas, que os prendem a um passado que deve ser esquecido. Quando não fazem isso, são elas mesmas que abdicam ao seu direito, para não prejudicá-los. Personagem com altíssima dose de melodramaticidade, a Mãe-Preta não é muito comum no cinema brasileiro moderno. É bem mais freqüente nas novelas de TV.

3. Mártir

Outro fruto da escravidão. O Mártir sempre surge na ficção brasileira que trata do período. Mesmo que na vida real o uso da tortura não fosse assim tão generalizado, existindo nas últimas décadas do Segundo Reinado uma legislação rigorosa que punia o patrão contumaz, foram os excessos que ficaram no imaginário popular, e algumas das suas vítimas foram mitificadas pela população, incorporando-se à mitologia local, como o Negrinho do Pastoreio, no Rio Grande do Sul, ou a Escrava Anastácia, no Rio de Janeiro.

O negrinho do pastoreio foi filmado em 1973 por Antonio Augusto da Silva Fagundes, com resultado insatisfatório. Mas a lenda está toda lá : por perder o gado do patrão, o negrinho é amarrado num formigueiro e devorado vivo, até que a presença da própria Nossa Senhora revela que era inocente.

O tema do video Anastácia, escrava e santa-1987 de Joatan Vilella Berbel é mais perturbador, porque bem mais recente. Por motivos que nem a sociologia pode explicar, a reprodução de uma conhecida gravura do holandês Rugendas, datada do século 18 - retratanto um escravo com a boca coberta por uma das terríveis máscaras de metal utilizadas para tortura - sofreu, a partir de 1980, uma surpreendente metamorfose no inconsciente coletivo do Rio de Janeiro. A fé popular simplesmente a transformou na representação de uma fictícia escrava milagreira, princesa africana (de olhos azuis), castigada até a morte por insubmissão. Apesar da oposição da Igreja Católica, o culto cresceu sem controle e hoje Anastácia é cultuada em todo país.

4. Negro de alma branca

Representa o negro que recebeu uma boa educação e através dela foi (ou quer ser ) integrado na sociedade dominante. Sob esse ponto de vista, Henrique Dias (morto em 1662)-militar que se destacou na guerra de libertação contra a invasão holandesa no século 17 e foi agraciado pelo rei de Portugal- é o seu exemplo histórico mais ilustre. Outro personagem histórico que pode ser enquadrado na mesma categoria é Francisca da Silva, ex-escrava, amante de alto funcionário da coroa portuguesa na região aurífera de Minas Gerais, no século 18, e que igualmente lutou por integrar-se na sociedade. Foi imortalizada no imaginário popular pela escola de samba do Salgueiro em 1962, canções pop, e principalmente, pelo longametragem Xica da Silva -1976, de Carlos Diegues, um grande sucesso de bilheteria. Bem mais dramática foi a trajetória do engenheiro André Rebouças (1838-1898). Gastou sua grande fortuna na Abolição, mas, monarquista, acompanhou a família imperial no exílio, quando da Proclamação da República. Depois de tentar infrutíferamente construir uma estrada de ferro na África do Sul, suicidou-se, deprimido, na ilha da Madeira, sem jamais retornar ao Brasil.

Outras vezes, o Negro de Alma Branca surge como um intelectual desenraizado, distante da sua origem humilde, e igualmente repelido (ou ironizado) pelos brancos. O protagonista do romance O mulato-1881, de Aloisio Azevedo, Raimundo, é repelido pela sociedade da província do Maranhão, embora intelectualmente superior a seus rivais brancos. Fora da ficção, dois poetas do século 19 também comprovam essa terrível possibilidade: Tobias Barreto e Cruz e Souza. (A vida infeliz desse último é tema de O poeta do desterro-1999, filme de Silvio Back). Ambos, apesar das suas mais que evidentes qualidades, são frequentemente referidos pejorativamente como “mulatos pernósticos“. Num filme importante e pouco conhecido, Também somos irmãos-1949, de José Carlos Burle, o advogado protagonista apresenta exemplarmente todas essas características.

Para muitos, entretanto, o típico Negro de Alma Branca seria Machado de Assis (1839-1908), coonsiderado o maior escritor brasileiro. Mulato criado entre mulatos e negros, usufruiu de merecida ascenção social na sociedade branca, mas sua obra extensa e refinada obra de ficção práticamente ignora personagens e problemas do mundo afro-brasileiro onde se formou. Exatamente como o jornalista Jorge, do filme Compasso de espera-1973, de Antunes Filho, não pertence a nenhum dos dois mundos, vivendo no limbo e na incerteza. Uma exceção é o pungente conto Pai e mãe (1908), adaptado livremente para o cinema pelo polêmico Sérgio Bianchi (Quanto vale ou é por quilo? – 2003).

Os filmes protagonizados por Pelé possuem traços semelhantes. Menino exemplar que se torna um grande atleta no biográfico O rei Pelé; negro liberto que dissuade os escravos de aderirem à luta armada pela sua libertação em A marcha; policial bem intencionado que protege meninos de rua de uma terrível quadrilha em Os trombadinhas - seus personagens didáticamente “positivos” estão sempre muito distantes da realidade cotidiana da maioria dos negros brasileiros.

Sua estranha ambiguidade faz com que o Negro de Alma Branca seja visto pelo negro militante como“traidor“, por ter escolhido o caminho da libertação individual. E seja igualmente rejeitado e ironizado pela sociedade branca. Tem um grande potencial dramático, ainda pouco aproveitado na ficção brasileira.

5. Nobre selvagem

Precede a própria colonização do Brasil. Origina-se da lenda dos Reis Magos, um dos quais (Baltazar) passou a partir do século 11 a ser representado como negro na iconografia católica, após a Europa travar conhecimento do reino africano cristão (copta) da Etiópia. No século 16, o dramaturgo espanhol Lope de Vega abordou o tema no drama El santo negro, cuja temática é a vida de um nobre etíope no exílio. É portanto outro arquétipo com ilustre passado. Na literatura nacional, destaca-se como exemplar no gênero o Macambira de O rei negro-1914, romance de Coelho Neto, cuja índole nobre é superior à do patrão e dos outros escravos.

O Nobre Selvagem possui muitas das qualidades atribuídas por Pierre Verger ao Oxalá jovem (Oxaguiã): dignidade, respeitabilidade, força de vontade. Não é conformista como Pai João, nem ambíguo como o Negro de Alma Branca. É um tipo bastante manipulado politicamente por intelectuais, brancos ou negros. O cinema brasileiro possui muitos personagens com essas características.

Tomemos, por exemplo, os dois filmes de Carlos Diegues sobre a epopéia dos quilombos . Em Ganga Zumba -1964, o herói, filho de um rei, durante a fuga do cativeiro para a liberdade, logo se desinteressa da antiga companheira ao conhecer Dandara, uma princesa negra, ou seja, uma “igual“. Em Quilombo-1985, Zumbi é escolhido líder pelo próprio Criador, que lhe envia do céu uma lança de fogo.Totalmente inversa é a atitude do protagonista de Chico rei-1985, de Walter Lima Junior, inspirado em uma lenda do século 18. Aqui, o soberano, aprisionado com sua tribo, compra a própria liberdade com seu trabalho nas minas de ouro, e depois a de todos os seus súditos, um a um, numa lição de solidariedade.

6. Negro revoltado

O Negro Revoltado é a variante belicosa do Nobre Selvagem. No Brasil, o grande exemplo é Zumbi, último governante do Quilombo dos Palmares, cujos domínios resistiram quase um século aos colonialistas portugueses, no século 17. Até hoje sua saga semi-lendária é ensinada nas escolas, e, nas últimas décadas substituiu o integrado Henrique Dias no imaginário dos estudantes, como um autêntico herói nacional/popular. É tema de canções, peças de teatro, seriados de TV e, evidentemente, de filmes.

Temos muitos exemplos do Negro Revoltado nos tradicionais filmes de época. A maioria diz respeito à fuga de plantações, geralmente após o assassinato do capataz malvado que martirizava um inocente. É o que acontece em Sinhá moça-1953 e A marcha-1972. Mas, como na Bíblia, a entrada na Terra Prometida não é para todos. Em Ganga Zumba, os variolosos e os “impuros“ são executados na entrada de Palmares. Apenas no já citado Quilombo um cineasta se arriscou a descrever a vida num desses locais insubmissos. Nos 50 anos descritos no filme, vemos, como pano de fundo, uma sociedade mercantil, pressionada por um adversário mais poderoso, tornar-se militarizada até o suicídio.O quilombo em todos esses filmes é uma utopia política, e o Negro Revoltado, por conseguinte, um utópico destinado ao fracasso.

O equivalente contemporâneo do quilombola é o militante politizado. O exemplo mais explícito surge na peça teatral Sortilégio-1957, de Abdias Nascimento (Teatro Experimental do Negro). Emanuel, advogado negro, por ciúmes mata a esposa branca e foge, perseguido pela polícia. Durante a fuga, vai se despojando do seu verniz civilizado, e adquirindo consciência de sua negritude. “Sou um negro liberto da bondade!“ - exclama no clímax da peça. Nos filmes brasileiros não existe nada tão explícito e tão contundente. Não há obra importante sobre a campanha da Abolição,que durou 60 anos, onde destacaram-se grandes oradores negros, como Luiz Gama e José do Patrocínio . Tudo surge num diapasão bem mais modesto. O Chico Diabo de A grande feira-1961 é um marginal revoltado, que tenta incendiar um depósito de gasolina da Shell, mas é preso pela multidão, e entregue à polícia. Já o Firmino de Barravento-1962, de Glauber Rocha, é mais consequente: volta da cidade grande, e deliberadamente entra em choque com os outros negros, pescadores subdesenvolvidos. No final, ele é pessoalmente derrotado, mas políticamente vitorioso, pois quebra as superstições que auxiliavam a exploração econômica. Em Compasso de espera encontramos, entre os coadjuvantes, um militante mais sofisticado, cosmopolita, influenciado por Marcus Garvey, e Kwame Nkrumah. Dos primórdios do Cinema Novo até os dias de hoje, há uma evolução muito nítida do Negro Revoltado.

7. Negão

Desde cedo têm sido atribuídos aos negros apetites sexuais pervertidos ou insaciáveis. Já no clássico As mil e uma noites , o califa surpreende a rainha numa orgia com escravos negros, razão pela qual manda executar toda nova esposa, após a noite de núpcias. Na língua portuguesa, desde o século 16 Os Lusíadas (canto 5, 47), de Luiz de Camões, já nos adverte do mesmo perigo.

A esse arquétipo denominamos Negão, que possui as características outorgadas no candomblé a Exú (sensualidade e violência), por sua vez sincretizado ao Diabo pelos padres católicos. É o estrupador sanguinário, terror dos pais de família, o vingador social. Apaixonado, pode ser terno. Repelido, transforma-se em fera. É um símbolo sexual ao inverso, e algumas vezes adquire características bissexuais, ou mesmo homossexuais – como o orixá Logun-Edé, que é seis meses homem, e seis meses mulher.

No romance Bom crioulo-1895, de Adolfo Caminha, o marinheiro Amaro cai de amores por um grumete branco, e, quando é abandonado, vinga-se, assassinando-o a facadas. O protagonista de A rainha diaba-1975, interessante filme de Antonio Carlos Fontoura, concentra em si todas as maldições burguesas: é, ao mesmo tempo, traficante de drogas, assassino, homossexual, e negro. Abandonado por todos, Diaba morre sufocado no próprio sangue. Já o de Madame Satã – 2003, é também tudo isso, mas briga para ser aceito pela sociedade, e passa metade de sua vida na prisão. O clássico porno-gay Island fever, com direção de Kristen Bjorn, apresenta exemplos típicos do Negão enquanto símbolo homossexual, com pênis de dimensões enormes e apetites equivalentes.

Na peça Anjo negro-1946, de Nelson Rodrigues, o terrível Ismael a todos amedronta com seu sensualismo e compleição física avantajada. Casado com uma branca que o odeia, e que mata todos os filhos mestiços ao nascer, ele aprisiona a filha branca (bastarda) e fura seus olhos, para que pense que todos são negros, e ele o único branco do universo. O Negão pode ainda ser o desejo ardente das adolescentes depravadas. Como em Bonitinha, mas ordinária, outra peça de Nelson Rodrigues, adaptada duas vezes para o cinema (1963 e 1980) - onde a protagonista quer ser (e é) currada por um bando deles. Ou no romance Terror e êxtase-1978, de José Carlos de Oliveira, onde a bela sereia da classe média cai de amores pelo seu sequestrador, um negro pobre e desdentado. Em A menina e o estuprador–1983, Conrado Sanchez, apresenta o personagem negro como culpado, manipulando o possível preconceito dos espectadores, até finalmente revelá-lo inocente. O cartaz desse filme - onde um negro nu tem nos braços uma linda adolescente loura (igualmente nua) - é um exemplo raro de apelo racial na propaganda brasileira.

8. Malandro

Embora representado com maior frequência como mulato do que como negro, o Malandro é um dos tipos melhor documentados dessa pesquisa.Codificado na umbanda como endiabrado Zé Pelintra, que usa a típica indumentária do gigolô tropical (terno branco, chapéu de palhinha), esse personagem reúne também características de quatro orixás do candomblé: a ambivalência e o abuso de confiança de Exú; a instabilidade e o erotismo de Xangô; a violência e a sinceridade de Ogum; a mutabilidade e a esperteza de Oxossi. Essa simbiose entre o Malandro e Zé Pelintra (Seu Zé) é mostrada com muita clareza pela cineasta Rose La Cretta no documentário Mestre Leopoldina/A fina flor da malandragem – 2004.

Na literatura, sua genealogia é tão antiga quanto ilustre: o Pedro Malasartes do folclore lusitano, e o ladrão liberto de O clérigo da Beira, de Gil Vicente (século 15). No Brasil, já aparecem bem definidos como mestiços o Chico Juca de Memórias de um sargento de milícias (1853) de Manuel Antonio de Almeida, o Firmino de O cortiço (1890) de Aluisio Azevedo, e o Ricardo Coração-dos-Outros de Triste fim de Policarpo Quaresma (1916) de Lima Barreto.

Na música popular, o Malandro é um tipo imortalizado desde os anos 30 pelo cantor Moreira da Silva, e também pelos sambas de Wilson Batista, Geraldo Pereira, Zé Kéti, Bezerra da Silva, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Riachão e outros.

O Malandro também desde cedo virou personagem do teatro de revista (Forrobodó-1912, de Luiz Peixoto e Chiquinha Gonzaga). No final dos anos 50, três importantes peças dramáticas foram escritas sobre ele: Pedro Mico de Antonio Callado, Gimba de Gianfrancesco Guarnieri e O Boca de Ouro de Nelson Rodrigues. Todas foram adaptadas para o cinema (a última duas vezes), guardando as qualidades e defeitos dos originais. Nas duas primeiras, o personagem, mesmo simpático, é muito idealizado e artificial, e os autores parecem mais preocupados em provar uma tese sócio-política do que realmente desenvolver uma dramaturgia fluente. A terceira, ao contrário das outras, não se passa numa favela. É, no entretanto, muito superior enquanto teatro, e o filme de 1962, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, está entre os melhores da década. Quando da encenação dessas peças, os personagens foram interpretados por um ator branco (Milton Moraes), escurecido pela maquiagem. Nas adaptações cinematográficas, apenas em Pedro Mico foi usado um ator negro (Pelé). Nas outras, mulatos claros ou mesmo brancos.

O Malandro clássico, tão bem interpretado por Grande Otelo em filmes como Amei um bicheiro-1952 e Três vagabundos-1953, com o passar dos anos foi sendo substituído por outros mais próximos da marginalidade. Os adolescentes de Bahia de todos os santos-1960 vivem de biscates, contrabando, exploração de mulheres, pequenos roubos, sem perspectivas. O Chico Diabo de A grande feira assalta joalherias, faz contrabando e comanda uma quadrilha de falsos pedintes. O herói de Vida nova por acaso (segundo episódio de Um é pouco, dois é bom-1970 de Odilon Lopez ) vive de bater carteiras em Porto Alegre. A barra é ainda mais pesada para os personagens de Parceiros da aventura-1980 de José Medeiros: tráfico de drogas e sequestro com extorsão- ambos mal sucedidos. Em Pixote-1980, Cristal (Toni Tornado) é traficante e corruptor de menores, mas tem melhor sorte: carro esporte, boas roupas e impunidade. Quase o mesmo podemos dizer do Bira de Rio Babilônia-1982, que, embora favelado, tem poder real e seu barraco é decorado com posters do super-herói americano de quadrinhos Homem-Aranha. Todos contribuíram para o amplo painel social de Cidade de Deus–2002, de Fernando Meirelles, onde, armados até os dentes, os Malandros (agora Bandidos) agora lutam entre si, e não mais com a polícia.

9.Favelado

A mais antiga descrição de uma favela e seus habitantes é a crônica de João do Rio A cidade do morro de Santo Antonio, publicada em 1908 no jornal Gazeta de Notícias. Ali já estão dispostas as principais qualidades e defeitos do tipo: honesto e trabalhador, sambista nas horas vagas, humilde e amedrontado frente à violências e autoridades, etc. Quase um século depois, o Favelado ainda conserva as mesmas características. Durante muito tempo foi errôneamente confundido, pela opinião pública e meios de comunicação, com um marginal do tipo Negão ou Malandro. Alguns intelectuais volta e meia se utilizam dele para exprimir sua revolta social. No entanto, por serem muito idealizadas, essas tentativas frequentemente soam falsas, como vimos em Gimba e Pedro Mico.

Embora nem todo Favelado seja negro, foi através dele que foram apresentados os primeiros negros “reais“ no cinema nacional e os mais verossímeis retratos do proletariado e do lumpen-proletariado. Favela dos meus amores (1935) de Humberto Mauro, alcançou grande sucesso popular. Um dos personagens principais é um compositor (branco) que morre tuberculoso nas vésperas do carnaval. Enquanto isso, seu companheiro mulato canta e toca violão. Uma canção afirma que a “favela é um sonho suspenso / onde a felicidade mora“. O filme foi considerado “um marco importantíssimo“ (Introdução ao cinema brasileiro, Alex Vianny, 1959), pelo pioneirismo de filmar os exteriores em locações na mais antiga favela do Rio.A sequência do enterro do sambista chegou a ser cortada pela censura, por mostrar muito pobre e muito preto, mas terminou liberada. Possívelmente um misto de neorealismo precoce (as cenas semidocumentais) e ingenuidade social, Favela dos meus amores parece ter reunido duas tendências estética e políticamente antagônicas. Infelizmente é outro filme desaparecido.

A visão paternalista e ingênua alcançou seu apogeu com Orfeu Negro-1959, filme francês de Marcel Camus, que ganhou um Oscar de filme estrangeiro e a Palma de Ouro de Cannes, batendo recordes de bilheteria pelo mundo afora. Levemente inspirado na peça teatral Orfeu da Conceição-1956 de Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim , seus personagens vivem na favela da Mangueira num mundo irreal de alegria. Tem problemas passionais, mas passam longe do problema social, sublimado pela mais absoluta felicidade.

Seguindo a linha realista, temos ótimos exemplos da vida numa favela nos dois primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos, Rio 40º (1956) e Rio Zona Norte (1957). Aluguel de barraco, viagem de trem suburbano, samba, sub-emprego e violência são algumas das peripécias vividas pelos negros desses filmes. O primeiro mostra o cotidiano de um grupo de crianças tentando ganhar a vida com dificuldade vendendo amendoim, e o drama particular de cada uma. Chegou a ser proibido, mas acabou liberado depois de intensa campanha da imprensa. O segundo aborda um compositor popular (negro) que morre ao cair de um trem, ao mesmo tempo em que uma composição sua vira sucesso num programa de rádio. Equivocado na ideologia, mas adequado na ambientação, Escola de samba alegria de viver-1962 (episódio de Carlos Diegues para Cinco vezes favela) mostra sambistas confrontados por militantes sindicalistas, num conflito ideológico inverossímil. Assalto ao trem pagador-1962 de Roberto Farias, excelente filme, já nos revela Favelados na mais completa marginalidade e revolta - assaltantes, assassinos, alcoolatras e delatores.

A ´partir dos anos 90, os filmes passam a revelar uma favela muito mais complexa. Superpopulada, agora tem entre seus moradores não apenas negros e miseráveis, mas também cidadãos da classe média baixa, marginalizados pela crise habitacional. Os becos estreitos lembram cada vez mais as casbahs da África do Norte, os guetos de ciganos e judeus da Europa Oriental antes da Segunda Guerra. Neles se desenrola uma terrível luta pelo poder entre o tráfico de drogas e o poder do estado, entre as igrejas pentecostais e os cultos afro-brasileiros, entre a cultura tradicional (samba) e a cultura proletária globalizada (hip-hop). É um caldeirão cultural injusto e monstruoso, cujo preço são as frequentes chacinas, a justiça pelas próprias mãos e outros meios extremos e anti-democráticos.Num ambiente caótico como esse, restam poucas alternativas. Assim, o amor entre o negro Orfeu e a mestiça Eurídice não tem nenhuma condição de florescer (Orfeu-1999 de Carlos Diegues). E a realidade é ainda muito pior que a ficção, como demonstram os videodocumentários Notícias de uma guerra particular-1999, de João Moreira Salles e Kátia Lund, ou Falcão – Meninos do tráfico –2006 de MV Bill e Celso Athayde.

10. Crioulo doido

Na Commedia dell’Arte, o Arlequim é um personagem endiabrado, que faz trapalhadas e confusões, parente do bobo da corte, que podia dizer impunemente aos reis e imperadores, de um modo gozado, as verdades interditas aos outros súditos. No picadeiro dos circos, transformou-se no palhaço colorido, de nariz vermelho e sapatos descomunais, o Excêntrico (em oposição ao palhaço branco, o Toni, aristocrático e de chapéu de cone, originário do Pierrô). Nos vaudevilles , essas funções histriônicas foram transferidas para os criados. Para que no Brasil esse arquétipo fosse desempenhado por negros, foi um pulo.

No candomblé e na umbanda já existia a tradição dos Erês, espíritos infantis e brincalhões festejados no dia de São Cosme e Damião (27 de setembro). O folclore brasileiro registra ainda o Saci Pererê - negrinho de uma perna só, que fuma cachimbo e é mestre em esconder objetos e outras estrepolias (foi tema do filme O saci - 1953, inspirado em livro de Monteiro Lobato, e surge também em O Pica-Pau Amarelo-1974 e Brasa adormecida-1986).

Nas artes brasileiras, os arquétipos aglutinadores dessas influências européias e africanas são o Crioulo Doido, e seu equivalente feminino, a Nêga Maluca (outrora uma fantasiamuito frequente no carnaval). A expressão Crioulo Doido data de 1966, quando o humorista Sérgio Porto fez um samba-paródia satirizando o regulamento do concurso das Escolas de Samba (que então exigia temas “patrióticos“) na figura de um negro compositor que embaralha toda a História do Brasil, na tentativa de enquadrar-se nessa exigência. A canção (Samba do crioulo doido) foi um grande sucesso popular, mas o arquétipo já existia muito antes. Os moleques Tobias (do romance A moreninha-1844 de Joaquim Manuel de Macedo) e Pedro (da peça teatral O demônio familiar-1857 de José de Alencar) são dois exemplos de como sua presença é antiga na nossa literatura.

O cinema brasileiro é pródigo nesse tipo, que reúne comicidade, simpatia, ingenuidade e infantilidade. Raramente, no entanto, é o personagem central. Em geral acompanha um branco, como uma espécie de contraponto, tradicional entre palhaços.. Daí as duplas do comediante Grande Otelo (negro) com Oscarito e depois Ankito (brancos); e a presença de Mussum (negro) no quarteto Os Trapalhões, ídolos da criançada. O Crioulo Doido, mesmo quando adulto, tem quase sempre características infantilizadas, sendo portanto inofensivo, o contrário do perigoso Negão. Grande Otelo, o maior cômico brasileiro, só ganhou um par feminino, a comediante Vera Regina, depois de mais de 30 filmes. Embora nos cassinos do Rio tivesse formado duplas famosas com Mara Abranches, Déo Maia e até a internacional Josephine Baker.

Uma variante bem menos inocente do “moleque endiabrado“ é o menor abandonado, o pivete de rua, o futuro marginal. Já existia em filmes desde Moleque Tião-1943; delineia-se melhor nos vendedores de amendoim de Rio 40º; mais dramáticamente, com o infeliz Norival de Rio Zona Norte, assassinado por seus companheiros de assalto; no pungente trio protagonista de Pixote; e culmina nas crianças assassinas de Cidade de Deus.

11. Mulata boazuda

Companheira do Malandro e sua equivalente do sexo feminino, a Mulata Boazuda reúne ao mesmo tempo características dos orixás Oxum (beleza, vaidade, sensualidade), Yemanjá (altivez, impetuosidade) e Yansã (ciúmes, promiscuidade, irritabilidade). Em suas formas mais agressivas pode adquirir as atitudes debochadas da Pomba Gira, entidade da umbanda, paramentada como um misto de cigana e prostituta.

Já no século 18 o poeta baiano Gregório de Matos saudava as proezas eróticas da Mulata, e já nos referimos anteriormente à Xica da Silva, negra ao que dizem nem muito bela, mas que conquistou um alto dignatário da coroa portuguesa em Vila Rica. Manuel Antonio de Almeida imortalizou a mulata Vidinha em Memórias de um sargento de milícias, e, em O cortiço temos a sedutora Rita Baiana. Mas foi mesmo no teatro de revista que o arquétipo da Mulata cristalizou-se por completo. Já em Maxixe-1906, de Bastos Tigre e Costa Junior, a cançoneta Vem cá, mulata alcançou um sucesso estrondoso. O mesmo aconteceu com a personagem Zeferina da burleta Forrobodó. E finalmente, em 1922, estreou nos palcos da praça Tiradentes a cantora Araci Cortes, símbolo sexual das classes populares, denominada “a mulata“. Era a consagração!

Araci era claríssima, quase branca. Os padrões raciais eram bem mais rigorosos antigamente. O romance A escrava Isaura-1875, de Bernardo Guimarães, trata de uma dessas cativas “que passam por brancas“, no tempo da escravidão. A carga melodramática é muito forte, e o livro foi adaptado duas vezes para o cinema (1929 e 1949) e duas para televisão ( 1976 e 2005 ), essas com grande sucesso, inclusive internacional.

O personagem sempre foi interpretado por atrizes brancas (Fada Santoro, Lucélia Santos). O mesmo aconteceu com as cabrochas de Gimba e O cortiço (Gracinda Freire e Betty Faria super maquiladas), com a empregada doméstica de Samba em Brasília-1958 (a loura Eliana Macedo) e com alguns personagens interpretados pela morena Sonia Braga (p.ex. Gabriela de Jorge Amado, na telenovela de 1975 e no filme de 1982). Isso foi um recuo em relação às belíssimas “mestiças de traços finos“, surgidas no final dos anos 50 como símbolos sexuais. As mais célebres foram Lurdes de Oliveira (Orfeu Negro) e Luiza Maranhão (Barravento). Apenas em 1976, quando Zezé Motta interpretou Xica da Silva, uma negra com cara de negra surgiu num papel sensual, quebrando para sempre esse tabú.

O sucesso sexual da Mulata Boazuda não é pequeno, basta analisarmos o cancioneiro popular, ou os romances populares de Jorge Amado. Com a única intenção de explorar isso, foi realizada nos anos 70 um conjunto de comédias picantes, interpretados pelas atrizes Julciléa Telles, Adele Fátima ou Aizita Nascimento. Examinemos seus títulos e argumentos: Como era boa a nossa empregada (doméstica boazuda perturba família classe média),Uma mulata para todos (honesta manicure é salva de ser leiloada num cabaré), A mulata que queria pecar (frase da propaganda: “Ela sabia que com aquele corpo podia conquistar todos os homens do mundo“), A gostosa da gafieira ( extrovertida mulata dorme com todo mundo, mas não gosta de ninguém), Histórias que nossas babás não contavam (Branca de Neve mulata em versão cômico-erótica).

Bem mais complexas são a Adelaide de Rio Zona Norte, a Maria de A grande feira, a Mira de Orfeu, a Aurélia de Garotas do ABC. As duas primeiras são mães solteiras, sem grandes perspectivas num ambiente marginal. A segunda possui grande agressividade, usando a navalha com maestria, mas põe a filha num colégio de freiras, e até faz planos para o futuro. A terceira, passsista de uma grande escola de samba, posa nua para revista masculina, mas, ao ver-se preterida por uma branca, prefere matar seu amante a perde-lo para outra mulher. A última, operária têxtil, não gosta de homens da própria raça. É amante de um neo-nazista, depois o troca por um japonês.

12. Musa

Tipo ainda pouco frequente na arte brasileira, embora elaborado desde o século 19. Não apela para o erotismo vulgar. Pelo contrário, é pudica e respeitável. Uma raridade nos meios afro-brasileiros, onde, até para um escritor negro como Lima Barreto, da mulher negra “todo conjunto da sociedade, sem excetuar seus iguais, admite que o destino natural é a prostituição ou a mancebia“ (Gonzaga de Sá-1919).

Os esboços da codificação desse personagem são remotos,e, como seria de esperar, da autoria de escritores ou poetasde côr. Do poeta militante Luiz Gama (1830-82) ou do poeta simbolista Cruz e Souza (1861-98), principalmente. No romance Clara dos Anjos
(1921), do já citado Lima Barreto, o personagem título, assim como sua mãe, dona Engrácia, são representantes menos idealizado da negra “de família”, práticamente ausente da nossa ficção cinematográfica. Seus exemplos principais estão na tímida Eurídice do Orfeu Negro-1958; na protagonista de Diamante bruto-1978 de Orlando Senna; nas esposas dos sambistas de Natal da Portela-1988 de Paulo Cézar Saraceni; na militante estudantil de O caminho dos sonhos–1998; no matriarcado de As filhas do vento – 2004 de Joel Zito Araujo. O surgimento de cineastas e roteiristas negros, como esse último, tende a favorecer esse personagem frente aos tipos mais pejorativos. ///

2 comentários:

Marcelo disse...

Oi Rodrigo.

Eu não tenho o outlook e não sei o e-mail do dahora, então tomei a liberdade de usar seu blog pra mandar um comentário sobre o programa do dia 13.
Eu concordo com tudo o que foi dito pelos 2 debatedores. Acho inegável o preconceito velado e é só olhar para as comunidades mais carentes e comprovar que a coisa começa a "escurecer". Mas no que toca a adoção das cotas para as universidades federais eu empaco numa coisa.
Como seria feita uma seleção entre os candidados de forma a não permitir que sequer um injustiça fosse feita entre entre esses milhares e milhares de cidadãos?
Mal comparando, eu penso que o maior argumento contra a a instituição da pena de morte seria exatamente a execução de um único inocente que fosse.
Então como determinar se a pessoa é merecedora de fazer parte de uma cota ou não? Acho isso complicado.

Abraço e parabéns pelo programa!

Miguel Leocádio Araújo disse...

O texto sobre arquétipos e caricaturas do negro no cinema nacional vai muito mais além de refletir sobre os negros no cinema; discute as clássicas representações dos negros e os lugares por eles ocupados no imaginário dos brasileiros, destacadamente dos artistas. É uma oportunidade de refletir sobre uma condição que tem sido eclipsada em nosso país, em nome de uma suposta democracia racial, que vai sendo desvelada cada vez mais. Parabéns ao autor.