quarta-feira, 25 de março de 2009

Barba e cabelo


Moacyr Scliar
mscliar@uol.com.br
Médico e Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras

No Oriente Médio é um costume antigo e tradicional: as mulheres cobrem a cabeça com um lenço ou com um véu, um sinal de modéstia e de pudor. Para os homens a regra é deixar crescer a barba: um rosto barbeado equivale à uma desavergonhada e ofensiva nudez. Ah, sim, e a barba não pode ser aparada. Deve crescer conforme o desígnio divino, em direção à terra que é nosso destino final. Os pelos faciais do homem são um sinal de dignidade. Os cabelos da mulher, não. Ao contrário, são um símbolo de sedução.

E isto nos lembra a lenda da Medusa, aquela mulher cujo olhar paralisava os homens e que exibia uma cabeleira formada de serpentes.De onde teria surgido esta espantosa figura? Não é difícil imaginar. A serpente, réptil de ataque sorrateiro, é um antigo símbolo de pérfida sedução – não foi a serpente que tentou Adão e Eva no Paraíso? Mas, notem, foi à mulher que a serpente se dirigiu, não ao homem, como se houvesse, entre ambas, certa afinidade, certa cumplicidade. Não é admirar que, nas religiões monoteístas, a mulher tenha ficado com o estigma de pecadora em potencial. Estigma que tem um símbolo, os cabelos. Tal como vistos pelos moralistas de todos os tempos, os cabelos das mulheres são sutis tentáculos, prontos a prender os homens. São as serpentes da Medusa.

O mundo mudou. Aos poucos, as mulheres foram se libertando e seus cabelos dão testemunho disso. Agora, não apenas são mostrados, são também cuidados e embelezados, o que sustenta uma milionária indústria. E a imagem de sucesso masculino, no Ocidente, é a do executivo sorridente, com rosto bem escanhoado. As barbas, quando existem (por exemplo, no caso de professores e intelectuais) são bem cuidadas. Uma exceção ocorreu quando da revolução cubana, que a barba de Fidel até hoje lembra: aquela, sim, é uma barba bíblica, uma barba de profeta, papel que os líderes revolucionários de certa maneira sonharam desempenhar. Uma barba que lembra os revolucionários lutando em Sierra Maestra: não tinham tempo nem condições para cuidar da aparência, mas sonhavam com um mundo melhor.

Uma vez escrevi um conto chamado “O Cabeleireiro da Medusa”, descrevendo os sofrimentos de um pobre homem às voltas com o ninho de cobras que era a cabeleira da medonha figura. Tirando este fictício caso, a profissão é amena, agradável, e em alguns casos chega às fronteiras da arte – nomes famosos não faltam para comprová-lo e, nos filmes americanos mais antigos, o nome do responsável pelos penteados das atrizes sempre figura nos créditos.

Em relação aos homens é diferente. Para começar, falamos de barbeiro, não de cabeleireiro, mostrando a importância de estar bem barbeado. Aliás, no passado, os barbeiros eram figuras importantes, porque prestavam cuidados cirúrgicos (durante muito tempo a cirurgia, coisa manual, era vista com desprezo pelos clínicos). Barbeiro abria abscesso, fazia sangria, providenciava curativos. Mas, mesmo cuidando apenas da barba, e do cabelo, sempre foi uma figura típica e aí está a ópera “O barbeiro de Sevilha” para confirmá-lo. O barbeiro era, e freqüentemente o é, um profissional animado, loquaz, o que é compreensível: ali está ele, perto de seu cliente, que, imóvel, só pode falar (e escutar). O dentista não pode manter um diálogo; o barbeiro pode. Resultado: as barbearias são locais animados. Espera-se ali que todos, profissionais e clientes, batam papo.

Estudante de medicina, e fazendo um curso em São Paulo, fui uma vez a uma barbearia para cortar o cabelo. Sentei-me na cadeira, o homem perguntou se era para aparar a cabeleira (abundante, naqueles bons tempos), fiz que sim com a cabeça e ali permaneci imóvel, enquanto ele trabalhava. O homem me olhava e sorria, muito amável, coisa que eu não estava entendendo. Lá pelas tantas perguntou:

– Não fala?

Mirei-o, espantado. Ele repetiu:

– Não fala português?

Aí me dei conta: como muitas vezes acontece, no Rio ou no Nordeste, ele estava me achando com cara de americano. Claro que falo português, respondi. Ah, bom, ele disse. E daí por diante, sem qualquer esperança de receber em dólar, atacou selvagemente os meus cabelos, como se fossem as cobras da Medusa. Houve época em que os cabelos americanos impunham respeito. Bush deve ter saudades disso.

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