sábado, 29 de novembro de 2008

E o que vem depois?

Rodrigo C. Vargas

O que se discute politicamente e principalmente na grande mídia é o que quase sempre não afeta os interesses dos que estão no poder. A criação do Estado de Israel por exemplo, nunca foi questionada abertamente no Brasil, pelo menos não que eu me lembre. É evidente que é inadmissível o que aconteceu aos judeus durante a Segunda Grande Guerra, mas a criação de um Estado em pleno território palestino é como se os Tupis (índios que povoavam o Ceará no século XVI) retomassem a Aldeota (bairro nobre da capital cearense) sem que nenhum morador da região tivesse o direito de discutir sua retirada. O que isso quer dizer? Para entender melhor é preciso voltar para 14 de maio de 1948. Naquele dia, o Museu Nacional de Tel-Aviv recebia uma cerimônia aguardada pelo povo hebreu há 1.878 anos – desde que a destruição do Segundo Templo pelos romanos, em 70 d.C., acabou com a soberania dos judeus em Jerusalém e deu início à segunda diáspora dos seguidores de Isaac – e que iria mudar a vida de milhares de pessoas. A terra prometida estava voltando às mãos dos judeus. Lida por Ben-Gurion e assinada pelos 24 dos 37 membros da assembléia presentes, a declaração de independência buscou no passado histórico e no presente político as justificativas morais e legais para sua fundação. O documento proclamava a Terra de Israel o local de nascimento do povo judeu e dizia que a declaração de Balfour e a partilha das Nações Unidas, além do sacrifício dos pioneiros sionistas e da tormenta sofrida com o Holocausto, davam aos judeus o direito inalienável de estabelecer seu estado no Oriente Médio. O resultado foi a retirada forçada de 760 mil Palestinos que do dia para a noite se transformaram em refugiados, naquilo que ficou marcado na história como Naqba ou Dia da Catástrofe em árabe. Hoje, se contarmos os descendentes o número chega aos 4,5 milhões de refugiados.

Esse é um dos assuntos mais polêmicos do conflito israelo-palestino. Israel se opõe a qualquer sugestão de que voltem às suas terras. No dia 08 de maio desse ano, várias centenas de palestinos das áreas ocupadas da Cisjordânia, na cidade de Bethlehem, saíram as ruas cantando "o direito de retornar é sagrado". Em seguida fizeram uma marcha ao redor de um caminhão carregando uma chave de metal de dez toneladas simbolizando as casas que as pessoas perderam em 1948. É um genocídio anunciado. Pra se ter uma idéia, o físico Albert Einstein, o historiador Arnold Toynbee, o psicólogo e sociólogo Erich Fromm, o líder político Mahatma Gandhi e o filósofo e matemático Bertrand Russell, alertaram para uma possível zona de conflito permanente:

Einstein: “Os meus conhecimentos profundos da natureza fundamental do judaísmo repelem a idéia de um Estado judeu, com fronteiras, um exército e uma unidade de potência temporária, não importa por mais modesta que seja. Receio os danos que o judaísmo sofrerá, especialmente do incremento de um nacionalismo mesquinho dentro de um Estado judeu”.

Toynbee: “Desde o estabelecimento do Estado de Israel, o colonialismo israelense é um dos casos mais negros da história geral do colonialismo na idade moderna e posto em relevo pela nossa própria época. Os colonialistas da Europa Oriental praticaram o colonialismo na forma extrema de desalojar e expulsar os árabes nativos, no mesmo momento em que os povos da Europa Ocidental renunciavam a sua dominação temporária sobre os povos não europeus. (...)A tragédia da história judaica recente é que, em vez de aprenderem com o sofrimento, os judeus iriam fazer a outrem, os árabes, o mesmo que lhes tinham feito outros, os nazistas”.

Fromm: “Acredito que, politicamente falando, só há uma solução para Israel, isto é, o reconhecimento unilateral do compromisso do Estado para com os árabes – não para ser utilizado como um ponto de negociação, mas para reconhecer o total compromisso moral do Estado israelense para com os antigos habitantes da Palestina. (...) E o direito da cidadania é de fato um direito a que os árabes em Israel têm mais legitimidade que os judeus”.

Gandhi: “Tenho pelos judeus muita simpatia. Mas a simpatia não me cega quando se trata de fazer justiça. O apelo por um lar nacional para os judeus não provoca em mim nenhum eco. A palestina pertence aos árabes, como a Inglaterra pertence aos ingleses e a França, aos franceses. É mau impor os judeus aos árabes. Se os judeus não têm outro lar senão a Palestina, apreciariam a idéia de serem obrigados a deixar as outras partes do mundo em que estão instalados? Ou desejariam então uma pátria dupla onde possam permanecer à vontade?”.

Russell: “Como se poderá discutir os direitos humanos no Oriente Médio sem ir diretamente ao ponto? A criação e a expansão de Israel ocasionaram uma trágica perda de direitos humanos a um número incrível de pessoas, que alcança os milhões. Qual é o significado dos direitos humanos, se não se inclui o direito de viver em paz em seu próprio país? Que direitos são gozados por essas centenas de milhares de refugiados que cercam Israel? Por quanto tempo mais deverão sofrer tal crueldade? Como pôde o mundo tolerar tal miséria, ocasionada por uma ruidosa agressão?”.

O povo judeu não sofreu apenas com as ações desumanas de Hitler, localizadas em uma época. Os hebreus foram perseguidos e caçados por séculos na Europa e em outras regiões. O Holocausto causou uma espécie de culpa assombrosa que fez com que parte daqueles povos originalmente perseguidores, aceitasse a criação do Estado de Israel como forma de amenizar o sofrimento carregado por esse povo por quase dois mil anos; transferindo apenas a carga de mãos. Isso me faz questionar a potência empregada na analise de atos desesperados por parte de palestinos, terroristas? Não é a participação de Obama nem a de nenhum outro homem que vai mudar o rumo dessa contradição. A única resposta que consigo ter no momento é que os palestinos são os novos judeus. E o resto? Todos já sabemos.

O DNA de Fortaleza

Adauto Leitão de Araújo Junior
adauto_br@yahoo.com.br
Historiador

O DNA de Fortaleza está na Barra do Ceará. E por muitas evidencias se pode afirmar de maneira segura que à margem do Rio Ceará é a nossa gênese Étnica e Histórica. Na Barra temos vestígios arqueológicos das primeiras edificações; além de símbolos: o santuário da padroeira Senhora da Assunção e a própria origem do termo Fortitudine. É uma condição exigente no século XXI tratar desse tema com uma postura equilibrada e madura à razão do bem maior da cidade - o Resgate da sua Memória. Não obstante, a falsa "disputa" do mérito territorial original entre os bairros da Barra versos Centro, que só cria desinformação nociva à sociedade; pois atende só a "preconceitos grupais".

Hoje, tanto o Marco Zero de Fortaleza da Barra do Ceará, ao Centro Histórico, à Aldeota Clássica, estendendo-se a pós-moderna Água Fria fazem parte do contexto de uma grande metrópole - já desenhada no séc. XVII por Pero Coelho e Martim Soares Moreno - e que na sua realidade atual precisa ser vista com amplitude.

A empresa pioneira do açoriano Pero Coelho de Souza plantou a semente do desenho territorial acima descrito. Maldosamente atribui-se que Coelho só fez uma "paliçada" e não "prosperou". De fato à margem direita do Rio Ceará no primeiro momento fez a paliça de abrigo da tropa, mas ordenou erigir o Forte de Santiago e a Vila de Nova Lisboa, inaugurados em 25 de julho de 1604, visto que não veio para morar debaixo de uma palha com a mulher Maria Tomázia e cinco filhos. Quanto a terrível seca nunca vista no Nordeste de que foi vitima em 1607, deixou lições que ainda aprendemos para conviver com esta chaga... Da época temos a riqueza da primeira cartografia do Ceará, do primeiro rio navegável e o Marco Zero de Fortaleza.

A Soares Moreno deve-se creditar o mérito - primer inter pares - dos atores históricos de criar o termo Fortaleza: da sua "Seara" (1619) - copiado pelos holandeses "Fortaleza do Siará Grande" (1637) ambas edificações da Barra do Ceará são expostas orgulhosamente em museus nacionais de Lisboa e Amsterdã. Na Barra chegou à imagem de Nossa Senhora da Assunção em 1621 a pedido de Moreno - a Padroeira - o Santuário é ad eternum da Barra. Álvaro de Azevedo incorporou a tradição lusa da Barra com título: "Fortaleza da Assunção" no Centro (1654). Dom Pedro I tentou impor o gentílico "de Nova Bragança" para Fortaleza (1823).

Hoje temos o símbolo "Fortitudine" que é único e democrático - do Povo. Honestamente políticos, intelectuais e a cidadania fortalezense devem uma mea culpa à Barra do Ceará e ali reconhecer 404 Anos de Fortaleza. A massa originaria e sempre presente à margem do rio Ceará mantém a História viva. O DNA de Fortaleza está na Barra do Ceará e para nosso orgulho na construção do Brasil, dentre outras principais capitais com mais de quatro séculos.

Um homem-morcego

J J Marreiro
jjmarreiro@yahoo.com.br
Cartunista

O Morcego que já cedeu sua presença soturna e sombria à mística das bruxas, às asas dos dragões e ao mito do vampiro encontrou nos quadrinhos a faceta pop que lhe faltava. Injustiçado pelas associações tenebrosas de até então, vestiu o manto da justiça e da vingança motivando Bruce Wayne em sua cruzada contra o crime em Gothan.

Ao longo dos anos o personagem de histórias em quadrinhos Batman ganhou várias versões e várias leituras, tantas ao ponto de se diluir o referencial a respeito de sua fidelidade à obra original. Hoje excelentes quadrinhos, games, animações e filmes foram feitos com o cruzado de capa. E sua história é recontada como são recontadas as histórias dos grandes mitos da humanidade como hércules ou aquiles.

Batman usa seu fato negro e a efígie do morgego para nublar, confundir e trazer medo aos criminosos: apenas os culpados têm o que temer. Homens misteriosos com suas roupas negras estão incrustados nas lendas de várias civilizações. Assumindo o papel de herói solitário ou de terrível vilão o homem de preto mitológico caminha sobre a civilização trazendo a força da mudança e assim ocorre com o personagem criado por Bob Kane e publicado em 1930, aqueles que tiveram seu caminho cruzado com o Batman seja nos quadrinhos, seja no cinema sempre terá o que contar.

Curiosidades:

A primeira versão cinematográfica de Batman foi em 1943 num seriado de 15 episódios da Columbia Pictures e outro seriado foi produzido em 1949. Esses seriados eram exibidos em seções de matinês e o público era diverso, apesar da grande presença de crianças. Nessas versões Batman usava todos e quaisquer recursos para sair das enrascadas do final do episódio, eventualmente matando os inimigos.

A Batcaverna foi criada para o seriado de 1943.

A primeira vez que o Batsinal iluminou os céus de Gotan City foi em 1949 no segundo seriado de Batman da Columbia Pictures.

Em 1966 Batman ganha um serie de TV e um longa metragem com o ator Adam West no papel principal. O tom da série era leve e bem humorado reproduzindo o tom estapafúrdio dos quadrinhos do herói do final dos anos 50 onde entra outras coisas apareceram o Bat Cachorro e o Bat Mirim (um duende que vestia uniforme parecido com o do herói).

Para abrir a passagem secreta para a Batcaverna, Bruce Wayne tinha que acertar os ponteiros do relógio da biblioteca para o horário em que seus pais foram mortos: 20h30min.

A armadura que Batman usa nos filmes foi desenvolvida porque Michael Keaton ator que interpretava o herói em 1989 era muito baixo e franzino.

A trama em que o Pingüim se candidata a Prefeito de Gothan City no segundo filme dirigido por Tim Burton foi retirada de um episódio do seriado dos anos 60.

Anexo: Batman: Dead End é um curta de 8 minutos que custou um pouco mais de 30 mil dólares, mas causou um eco incrível na indústria cinematográfica. Dirigido e produzido por Sandy Collora, foi lançado em julho de 2003 na Comic-Con, em San Diego, Estados Unidos. Mesmo tendo sua exibição proibida, alguns websites começaram a divulgar o filme que rapidamente se transformou na sensação do mundo virtual. Collora é bastante conhecido em Hollywood por produzir criaturas para filmes como Parque dos Dinossauros, Exterminador do Futuro, Predador e Edward Mãos-de-Tesoura. Dead End foi a sua primeira investida como diretor. O que vocês acham?




quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Feliz aniversário

Airton de Farias
airtondefarias@yahoo.com.br
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará

Há décadas existe na historiografia certa polêmica sobre o local, a data e a quem caberia a "fundação" de Fortaleza e do Ceará. De início, uma historiografia mais antiga considerou a atual Barra do Ceará como o local onde "nascera" a capital cearense, atribuindo o "feito" não a Pero Coelho e a seu forte de São Tiago, mas a Martim Soares Moreno e ao forte de São Sebastião – daí, inclusive, o livro Iracema, de José de Alencar, no qual os "amores" do "Guerreiro Branco" Martim e a Índia teriam dando "origem" aos cearense, numa visão romanceada.

Nos anos 1960, entretanto, essa concepção foi questionada pelo livro Matias Beck – Fundador de Fortaleza, de Raimundo Girão. O importante historiador cearense, baseado em argumentos lógicos e sólidas fontes, apontou que o núcleo colonizador de Martim Soares Moreno na Barra do Ceará não teve maiores conseqüências – o forte de São Sebastião fora conquistados pelos holandeses em 1637 e destruído pelos indígenas em 1644; para Girão, o núcleo original da cidade estaria, sim, no forte Schoonenborch, construído em 1649 por ordem do capitão flamengo Matias Beck – os holandeses então dominavam Pernambuco e estendiam seus domínios mais para o norte. Foi em torno do forte – reconquistado em1654 pelos portugueses e renomeado para Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, no local onde hoje se encontra a 10 Região Militar – que surgiria ESPONTANEAMENTE a atual capital cearense.

A tese de Girão provocou enorme polêmica, sendo ardorosamente combatida pelos conservadores e católicos, os quais não viram com bons olhos a tese da primazia holandesa, não pela nacionalidade em si, mas por um principio de civilização, pois, caso aceita esta nova visão histórica, se atribuiria a um evangélico, um calvinista, a “fundação do povo cearense”. O tema ainda sucinta tantos debates, que se comemora como data de aniversário da capital, não a da construção do forte, mas a da elevação do povoado à condição de vila, em 13 de abril de 1726, um episódio, portanto, “católico e português”.

Passamos ao largo dessas polêmicas sobre “descobridores”, “fundadores” e coisas afins! Na realidade, as tentativas de conquistas feitas por portugueses e holandeses entre 1603-54 não deixaram marcas importantes, não sendo possível falar de um marco zero para a cidade em datas anteriores. Além disso, lusos e flamengos não vieram ao Siará Grande para fundar uma cidade, mas para explorar a terra, o que foi feito, aliás, com a morte de milhares de nativos. Fortaleza surgiu espontaneamente, não sendo fruto da ação intencional de uma única pessoa. Preocupar-se com um dia exato para ser o “ponto zero” de um país, estado ou município não passa de uma ação burocrática e um mito de origem; como criação histórica de longa duração, os países, estados e cidades não são construídos propriamente num ato fundador e heróico, mas na sucessão do tempo e com esforço anônimo de várias gerações.

O Ceará como o conhecemos hoje é o produto da fusão de vários povos, sociedades e cultura, e do trabalho, do esforço, da dor e da alegria de milhares de pessoas ao longo dos séculos – assim, não podemos dizer que no século XVII o estado já lá estivesse, a esperar as naus dos europeus para ser “descoberto”. O Ceará para ser e existir precisava ainda de muito para acontecer: duras lutas, guerras, confrontos, aqui e ali uma traição, uma derrota, uma frustração, uma façanha, uma epopéia; necessitou-se de audácia, força, criatividade e bastante, bastante trabalho.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Tira

Denilson Gomes Albano

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Padre Mororó: Mártir rebelde da confederação do equador

Evaldo Lima
chicoevaldo@yahoo.com.br
graduado em História pela UECE e Direito pela UFC

Se deixe ficar por instantes na sombra desse baobá que virão fantasmas errantes, dos sonhos eternos falar... ( Ednardo – Passeio público)

A Igreja do Rosário estava lotada naquela manhã ensolarada de domingo para a macabra missa fúnebre de corpo presente. Dois rebeldes confederados assistiam à cerimônia de encomenda dos seus corpos que logo mais seriam crivados de balas. O ritual macabro possuía roteiro de um teatro de horrores: encomenda prévia da alma com os “eleitos” presentes, degradação das honras, formação do aparato militar e fuzilamento público para uma platéia sedenta de sangue. Mas, afinal, quais os sonhos dos rebeldes tropicais da confederação do equador?

Padre Mororó foi condenado à morte por crime de Lesa Majestade. Contra ele pesavam três crimes:

1) Ter proclamado a República em Quixeramobim;
2)Ter servido de secretário do Presidente da República no Ceará, Tenente Coronel Tristão Gonçalves de Alencar Araripe;
3) finalmente, de ter sido o redator do Diário do Governo do Ceará, órgão dos Republicanos.

A Confederação do Equador foi um movimento rebelde, liberal e republicano contra o absolutismo do Imperador Dom Pedro I. O mesmo príncipe que com o apóio das elites proclamou a Independência do Brasil do colonialismo português agora demonstrava sua face mais tirânica e cruel. Impôs uma Constituição despótica em 1824 e condenou à morte Mororó, Caneca, Carapinima, Miguelinho, João Ribeiro e tantos mais que ousaram sonhar pela liberdade. Mororó foi mais. Usou como canal de propagação das idéias confederadas um jornal, o primeiro do Ceará, o “Diário do Governo do Ceará”, certamente inspirado no Correio Brasiliense, primeiro jornal do Brasil, editado de Londres e enviado clandestinamente para o Brasil.

O nosso primeiro jornal não era editado em Londres e sim em Quixeramobim, mas também propagava luzes contra o jugo dos poderosos, as trevas do autoritarismo. Mororó pagou com a vida o preço dessa ousadia. Ao findar a missa, o Padre Gonçalo Ignácio de Loiola Albuquerque, ou melhor Padre Mororó, e o coronel João de Andrade Pessoa Anta caminharam sem pressa pela Rua dos Mercadores( Hoje Conde D’eu) , seguiram pelo trecho da hoje Rua Guilherme Rocha, dobrando na Rua Major Facundo e prosseguiram até o Campo da Pólvora. Não estavam sós. Populares e soldados acompanharam o cortejo. Alguns dependurados nos galhos das árvores. Quando um dos galhos quebrou, parte do populacho foi ao chão como frutas podres que despencam em meio a zombaria geral. Mororó até esboçou um sorriso, mas o enredo era trágico e não cômico. O povo que os rebeldes confederados queriam libertar pouco ou nada sabia sobre as causas daquele movimento. Diante do pelotão de fuzilamento, Padre Mororó recusa a venda e pede que não lhe ponham no peito a fita que indicava o local da mira, coloca a mão direita sobre o coração e corajosamente diz para o pelotão: “camaradas, o alvo é este. Tiro certeiro para que não me deixem sofrer muito”.

O sangue do padre banhou o Baobá, árvore gigante importada da África. Ali, ao pé da baobá, muitos outros tombaram porque ousaram sonhar com um Nordeste Independente do resto do Brasil, um país tropical livre e republicano contra o Absolutismo de Dom Pedro I. Hoje o local se chama Praça dos Mártires, ou Passeio Público, e os fantasmas rebeldes confederados nos cobram a memória do passado e os compromissos de luta do presente.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Reciclar é apenas a ponta do iceberg


Carlos Limaverde
limaverd@unifor.br
Arquiteto e Urbanista

Partamos do princípio de que tudo que acontece em nosso país, cidade e bairro acontece também conosco! Logo temos o direito de participar de todas as decisões.
Foi pensando assim que nasceu o Estatuto da Cidade, na Constituição de 1988 e posteriormente foi aprovada a lei de Nº 11.445 / 2007 onde todos os entes federativos deverão no âmbito de sua competência elaborar os planos Nacional, Estadual e /ou Regional e Municipal de Saneamento Básico. Hoje, por dia, 200.000 pessoas saem de seu lugar de origem atrás de oportunidades em áreas urbanas.
Sabemos que no começo dos anos 1900 nosso país detinha apenas 10% de sua população vivendo em cidades e após a 2ª Grande Guerra atingíamos 50%.

Sabemos que durante o Milagre Econômico vivido pelo nosso país, na época da Ditadura Militar já passávamos de 70%, e hoje já ultrapassamos os 80%. O que isso quer dizer: Estamos cada vez mais produzindo lixo, exigindo dos nossos recursos naturais mais produtos, e estamos cada vez mais produzindo e adicionando produtos tóxicos – mais de 100.00 tipos de produtos tóxico em uso – e levando tudo isto para o mercado consumidor, sem que as pessoas tomem conhecimento da origem, do processo de fabricação, de como estes produtos são distribuídos e de como eles seguem uma LÓGICA DO CONSUMO.

O Brasil gera por dia cerca de 240.000 toneladas de lixo e na outra ponta não reaproveita cerca de 60% através de reciclagem. Quando descartamos, quando jogamos fora, quando desperdiçamos, estamos dizendo: SOU CONSUMIDOR E NÃO SOU ESCLARECIDO!
Se formos para produtos industrializados caímos na esparrela da OBSOLECÊNCIA PLANEJADA! Se não cairmos nesta outra, caímos na OBSOLECÊNCIA APARENTE. Daí dizermos que o problema não reside apenas na RECICLAGEM, ele reside também na forma de extração da matéria prima que destrói árvores, mudam paisagens ao serem retirados minérios poluindo mananciais. Daí dizermos que quando da produção, escravizamos operários, enchemo-los de produtos tóxicos e de doenças , exploramos menores nos quatro cantos do mundo e não oferecemos aceso a saúde de qualidade ,etc.
Quando da distribuição destes produtos, a ordem é girá-los nas prateleiras, e lucrar... Hoje leio nos jornais:

· CRIAÇÃO DE PROGRAMAS MAIS EFICIENTES DE FIDELIDADE;
· COMPRA POR IMPULSÃO;
· OFERECIMENTO DE VANTAGENS DIFERENCIADORAS;
· SUFAR NAS VENDAS DO QUE AINDA ESTAR POR VIR...

O leitor já parou para pensar, que 99% dos produtos em 6 meses não devem estar mais nas prateleiras? Já pensou que o shopping foi invenção americana para seduzir e criar clima propício ao consumo? Que o “Self –Service” está lá para rápidamente você consumir além daquilo que seu organismo necessita, só pelo apelo do colorido das comidas? Que muitas vezes você paga pelo o produto, o que na verdade não retrata os custos? Enfim, que criaram os 3 ERRES – reduzir, reutilizar e reciclar como apelo de “marketing”? Enfim, que se reciclarmos 100% de tudo que consumimos ainda assim não estamos contribuindo 100% para a vida de nossa única terra? Pense nisto e sinta o que eu sinto - RECICLAR É APENAS A PONTA DO ICEBERG!!!

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Infância e desejo nas vidas secas


Fernanda Coutinho
fmacout@terra.com.br
Professora de Teoria da Literatura da UFC

Vidas secas, o quarto romance de Graciliano Ramos, narra, como se sabe, a trajetória de uma família pelos duros caminhos de um sertão árido. Aí o inverno é hóspede arisco, sem tempo certo para pousar, como que submetido à vontade de um deus caprichoso. Assim, Vidas secas se coloca sob o signo da expectação, e o olhar de ansiedade de seus personagens perscrutando obsessivamente o céu de um azul sem nuvens dá uma primeira dimensão de um viver pontuado em muito pela aspereza. Não é sempre que essas pessoas experimentam o reconforto de buscar o firmamento e encontrá-lo pontilhado de nimbos, nuvens escuras que, liquefeitas na água benfazeja, podem lavar-lhes as preocupações e fazer com que durmam num sonho de desejos satisfeitos.
Fabiano, sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e Baleia conjugam, porém, o anseio pela chuva com a satisfação de desejos que passam pelo crivo da pessoalidade. Esse aspecto reforça no texto o “sentido do humano” (Octavio de Faria), mais do que os reflexos negativos da interminável estiagem.

Na realidade, Fabiano sonha em ser um outro Fabiano: um vaqueiro de verdade, com um pedaço de terra seu e não “um vagabundo empurrado pela seca”. A Fabiano incomoda tanto a errância quanto a existência postiça: o considerar-se plantado em terra alheia. Daí a história de sua vida ser de preferência uma projeção para um tempo quimérico em que ele e sua família estejam a salvo desses percalços.

Sinha Vitória, é sabido, concentra seu ímpeto desejante em um objeto material: uma cama de lastro de couro, em vez da ossuda cama de varas de todas as noites. Baleia, imaginação à solta, sacia seu apetite com um osso cheio de tutano, colorindo seu delírio de morte com a visão de um mundo coberto de preás. Como se situariam, então, os filhos de Fabiano e sinha Vitória, na esfera do querer levando-se em conta que, habitualmente, o desejo da criança é mediado pela vontade dos pais? Os dois meninos são flagrados pelo leitor em brincadeiras simples com toscos bois de barro, objetos que sua imaginação tem o dom de redimensionar até ao limite do infinito. Contudo, a dimensão lúdica para essas crianças, por onde se infiltra o verdadeiro vetor do desejo, ultrapassa a convivência com os seres de faz-de-conta. Nelas a força da vontade patenteia-se na ânsia de penetrar o desconhecido.

Em “O Menino mais novo”, por exemplo, tem-se um registro da fenomenologia do olhar infantil, o qual, munido de lentes de aumento, tende a heroicizar determinadas pessoas de seu espaço de convivência: nesse caso, a criança lança mão da metamorfose e quer virar Fabiano, tentando emular com ele em suas façanhas de vaqueiro, e chegando mesmo a copiar certos cacoetes de seu modo de andar.

Em “O Menino mais velho”, transparece a criança imbuída do ofício de descobrir o mundo, exacerbando-se nela o espírito indagador. Essa particularidade é explicitada, através de seu desejo de reconhecimento como alguém sequioso de apreender a vida. “Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.”

Para a criança, o inferno revestia-se de uma aura de sortilégio, e assim demandaria um exercício de narratividade da parte de sinha Vitória, o que não chega a acontecer. Mais doloroso que isso, todavia, parece-lhe o fechamento ao diálogo, a mediação frustrada da mãe, que não o conduz nem mesmo ao saber, redundando ainda mais no desencantamento da palavra inferno. Se a princípio essa idéia provoca-lhe pensamentos idílicos suscitados pela sonoridade prazerosa do nome, (“Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.”), ao final, o nome tem um rendimento imagético negativo, liberando em seu pensamento um cortejo de elementos desencontrados que têm, porém, sua lógica definida pelo sentimento da insegurança: “O inferno deve estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.”

Graciliano tem para com a infância uma relação de proximidade, ao longo de quase toda a sua obra, porém, no conjunto de sua produção romanesca, Vidas secas é o livro em que o escritor faz uma abordagem pontual dessa idade, especialmente nos capítulos dedicados aos meninos. Esses trechos específicos empreendem, com maior agudeza, uma avaliação dessa idade como um tempo fluido, em que diferentes estágios se sucedem, cada um deles obediente a uma determinada conformação do imaginário. Por outro lado, fica patente no livro a correlação da força desejante, nutriente da vida, com a energia que brota da infância.

Setenta anos após sua publicação, Vidas secas redefine sua atualidade ao fazer os leitores pensarem o mundo como um lugar de desejo, um espaço inquietante, permeado por um inventário de porquês, desafiador e instigante como costuma ser o pensamento dos meninos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Orbitação

Carlos Emilio C. Lima
carlosemiliobarretocorrealima@yahoo.com.br
Escritor, Poeta, Editor, Ensaísta e Antidesigner.

Dizem que há uma estátua. Ela é redonda. Mata por sua força. Nos deixa exilados do sol, entramos noite adentro para sempre. Não vemos nunca mais o dia. Dizem que a ponta da asa de um anjo roçou a estátua no lugar onde Alfredo pousara a mão. Ela é duramente feita de ar sintético. Todos os olhos do mundo estão concentrados ali, ou o melhor, a visão de todos os olhos do mundo. Mas a visão para dentro, a visão sangrenta. Impossível entrar na bola. Nem com a diminuição do tamanho. E ela faz um zumbido que obstrui a leveza do sono, a finura imperceptível dos sons. Dos sons de um vôo em delícia até ti. E essa bola gira como um quadrado. Um quadrado de aspereza. Alfredo conhece, é o único, ele pousou a mão no pólo da bola. Ela vinha suspensa, perfeita, atrativa, no silêncio do ar de todas as palavras ela navegava até ele. Ele não se conteve, tocou-a. Só foi notar a transformação nele quando não mais contava com as forças vitais em atração.

E começou a sonhar com formigas voadoras de fogo. Falando pelas asas os esses ferventes de uma agonia. De uma dor gigantesca, de um cansaço antes de todo o seu abismo. Alfredo tinha seu abismo. Ele nascia inexoravelmente e sempre da sensação de prazer que sentia ao ver o gelo, o gelo em cubos. Abria a geladeira todas as noites para gozar, com a ponta da língua, com os pedaços simétricos de gelo. Mas aí ele ouvia o zumbido azul, faiscante de cristas muito agudas nascendo do formigamento gelado na superfície da língua. Era a entrada do abismo. Júlio sempre o encontrava desacordado exatamente depois da bola deixar a casa e sumir para Júlio. Júlio não poderia ouvir a bola que só Alfredo conseguia ver. A cozinha tornava-se branca. Tudo ficava em silêncio branco, gelado, o corpo vermelho de Alfredo soçobrado sobre o solo. Aí vinha o tropel. No momento em que Júlio tocava no corpo de Alfredo vinham os motores. Era terrível. O corpo do amigo se preparava, num quase secreto estremecer, para ser filtrado pelo tropel dos motores. Eram milhares, num enxame, sedentos de sua nudez.

Motores sísmicos sobre a carne, assaltando-a, privando-a do movimento de sangue nas veias, nos ductos, da irrigação da memória. O corpo estrebuchava num imenso gemido, gemido de raízes velhas, desfibradas, lento como um segundo - o corpo chorava porque vinha pelo encarnado das vozes internas, pelo ar encanado do medo, vinha parado navegando por dentro do mar dos ruídos dos motores sucessivos, inevitáveis, feitos de louça e éter, motores-espíritos vertiginosos. E a soma de todos eles era a bola intocável, invisível para Júlio. Dizem todos os sábios a que tivemos acesso que a bola, a tal estátua redonda, é feita de números, que o número oito pulsa no centro como um caracol. Recoberta de palavras numéricas ela esconde a cifra mais verde do amor em seu centro de sucos, de assovios, de gritos. Parece-se com a cabeça de um homem de gelo, gelo que não se desfaz ao sol.

Há evidentes histórias, mordiscações incipientes sobre o tema, trevas de todos os xis zunidores, tudo circula em torno da bola que naufraga ritmicamente Alfredo todas as noites, todos os dias. Júlio, quando ele recobra os sentidos, repete ao amigo sempre as mesmas palavras. Mas Alfredo reconhece que aquelas palavras de Júlio estão saindo de dentro da bola, que tudo que ele lhe diz são frases que escapam do cerne esférico do astro perseguidor. Mas o que Júlio diz, na foice de sua respiração agudíssima, num grito é. Alfredo, pare de contar os números da bola. Esqueça-os, eles não existem. Mas o amigo, ainda com o corpo esquecido, remoto, como se fosse apenas uma voz cintilante de medo adormecendo os membros de susto e tensão, repele o significado da frase, não escuta o que ele diz, sempre sempre se sente dentro da bola que Júlio também de lá iscou as palavras da busca, que o alfabeto é que desenha a própria geometria do cerne da bola. Do cerne de frio agudíssimo da bola, cerne de sangue e de dor abismal.

Embora os móveis do quarto para onde Júlio já levou Alfredo e o deitou sobre a cama não se pareçam de cobre, embora o piso não tenha a consistência da superfície de um sino, tudo soa muito alto, as formas inteiras retorcem-se como se de guizos de estrelas atordoantes, metálicos mecanismos da geometria da bola. A cadeira azul é um relâmpago, a estante de livros desordenados tem todo o peso espesso e asfixiante da escadaria velocíssimamente dolorosa que leva Alfredo ao centro da bola onde somente ele está navegando, no rastro espantoso dos motores-trovões, na base da nuca desse homem de gelo, imenso como o universo, inabordável como o rio mais antigo da Terra, que ainda existe, ainda existe, ele repete para Alfredo e se põe a cantar. Mas os versos também vêm de algum ponto entranhoso da bola, da caverna dos ecos, da caverna dos ecos da cobra. Os motores, saia de perto, os motores estão vindo novamente, sai de perto de mim, não me toque, deixe que eles passem. Eles têm o calor de uma constelação matemática de animais desconhecidos, desconexos cuja forma e aspecto e ser jamais atacará a direção da consciência.

Eles agora vão me possuir numa nuvem de zumbidos, música infinita, fonte que corta todos os sentidos na base, na nu(n)ca desse homem gigantesco. Porque há mais, e Júlio o sabe como o azul sabe as trevas onde mergulha esférico, num grito divino. É que Alfredo sente-se esse homem de gelo atravessando a tona afiada dos céus. Alfredo não possui mais o corpo que tem. Possui um outro, infinito, e dentro de si mesmo é uma outra pessoa composta pela trituração incessante, navegante, de todo o universo, com cidades espantosas no lugar do estômago, com cavalos mergulhando diretamente no mar, assim nesse giro que suas mãos fazem no ar, nessa vontade de toque, nessa sede de espumas no centro do mundo, no centro de si de todos os seres.

E Júlio vê as mãos desenrolando a fita, a fita-língua-cobra do fundo das águas do sexo em espiral que se esconde trêmula no ar e aciona os motores ao ácido movimento de aproximação. A esfera triangular vai ficando redonda de roldanas, em vagas, em trinados, em zunir, os dedos no tê da tábua da cama onde mais uma vez Alfredo se retorce. Dessa vez é a fixação dos dedos na tábua, que se sentem pregos revolvendo com seu aroma de tato aflitivo o côncavo carnoso da bola. Minhas mãos estão no centro, no ponto da dor lancinante de laços e fitas metálicas, revólveres no fim do mar, minhas mãos como revólveres, milhões de revólveres giratórios aos espelhos, frangalhos de aço, explodidos, liqüefeitos, fundidos em fogo onde minhas mãos aparecem e são esse fogo se espalhando no quarto, mariposa de chamas alimentando-se da cortina em volta de ti. Júlio então fica prisioneiro da orbitação de suas mãos em chamas e essas mãos desprendidas do corpo de Alfredo giram em torno da grande cabeça da tontura de Júlio. Ele grita para que o amigo interrompa a loucura das chamas mas suas têmporas estalam e delas saltam duas bolas de aço que tilintam no chão, rescendendo a navios, ao navio dos verbos de ferro, dos verbos rítmicos de tudo que é duro e intransponível.

Um aroma de mel de ferro dispersa-se no ar já mais gélido pois em fogo nos extremos, frio se casa com chamas que não permanecem imóveis. As duas dores cilíndricas de Júlio vão rolando pelo quarto, aos saltos, como se em busca de leito paralisante de plástico, ao passo que ele lê a tira de fogo que permanece em grande velocidade fixa diante de seus olhos pois ali estão, em estampidos de imagens gráficas, as letras da história de fogo e do frio de Alfredo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Charge

Clayton Rebouças
claytoncharges@gmail.com
Chargista

Um Jesus diferente daquele dos evangelhos

(Caravaggio)

José Correia da Silva
professorjosecorreia@yahoo.com.br
Graduado em Matemática pela UECE
Graduado em Física com HRE pela UEVA
Graduado em Teologia pelo Centro de Teologia Avançado de São Paulo

Os evangelhos apócrifos, inautênticos - textos que foram tolhidos pela Igreja e que desapareceram por mais de um milênio - alegam um Jesus dessemelhante daquele que apreciamos. “Quem não conheceu a si mesmo não conhece nada, mas quem se conheceu veio a conhecer simultaneamente a profundidade de todas as coisas”. Esta frase acima é conferira a Jesus Cristo. Mas não adianta procurá-la na Bíblia. Ela não está em qualquer lugar dos Evangelhos de Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos relatos da vida de Jesus que a Igreja considera autênticos. A alusão faz parte de um outro evangelho – o de Tomé. Também não perca seu tempo procurando por esse livro no Novo Testamento. Entretanto o texto existe. E é um documento anoso – segundo alguns pesquisadores, tão antigo quanto os que estão na Bíblia.

O Evangelho de Tomé, assim como outras dezenas – ou centenas – de textos semelhantes, foi escrito por alguns dos primeiros cristãos, entre os séculos 1 e 3 da nossa era. Ele foi cultuado por muito tempo. Até que, em 325, sob o comando do imperador romano Constantino, a Igreja se reuniu na cidade de Nicéia, na atual Turquia, e definiu que, entre os inúmeros relatos sobre a vinda de Cristo que existiam, só quatro eram "inspirados" pelo filho de Deus – os "evangelhos canônicos" ("evangelho" vem da palavra grega que significa "boa nova", usada para designar a notícia da chegada de Cristo, e "canônico" é aquele que entrou para o cânone, a lista dos textos escolhidos). Os outros eram "apócrifos" (de legitimidade duvidosa). Estes foram proibidos, seus seguidores passaram a ser considerados hereges e muitos foram excomungados, perseguidos, presos. A maioria dos apócrifos acabou destruída e os textos sumiram, alguns para sempre.

Mas nem todos. O Evangelho de Tomé, o de Filipe e o de Maria Madalena, por exemplo, escaparam por pouco do extermínio – graças a um egípcio inominado. Em algum momento do século 4, esse egípcio teve a apropriada idéia de esconder num jarro de barro cópias manuscritas na língua copta desses textos e de muitos outros ameaçados pela perseguição da Igreja. O jarro ficou 1 600 anos sob a areia do deserto. Acabou resgatado por um grupo de beduínos, em 1945, perto da cidade egípcia de Nag Hammadi. Só nos últimos anos os textos acabaram de ser traduzidos e chegaram ao conhecimento dos cristãos do mundo.

Um dos critérios para explicar por que só os evangelhos de Marcos, Lucas, Mateus e João entraram na Bíblia é a datação. Um consenso entre os especialistas situa os canônicos como tendo sido escritos entre 60 e 90. Já os apócrifos teriam sido produzidos a partir do século 2. Mas também sobre essa questão pairam dúvidas. Está lá no Evangelho de João. Cristo disse: "Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram". Alguns pesquisadores, como a americana Elaine Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, acham que o autor do texto, quando o escreveu, estava contrapondo ao Evangelho de Tomé. Se a questão dela está correta, o Evangelho de Tomé é mais remoto que o de João.

Segundo essa conjetura, o Evangelho de João seria um empenho para negar que a salvação pudesse ser atingida pela busca particular do autoconhecimento, tese central de Tomé. O Evangelho de João coloca então Tomé no papel do cético exagerado que é repreendido por Cristo. E conclui assinalando um caminho mais simples para a salvação: basta acreditar nela.

sábado, 8 de novembro de 2008

Da cegueira à clarividência ou breve ensaio sobre o ver


Paulo Amoreira
amoreira.paulo@gmail.com
Escritor e Artista Visual

“Meu olhar é nítido como um girassol.
(...)Pensar é estar doente dos olhos”
Alberto Caeiro

Em Le fabuleux destin d'Amélie Poulain, filme francês dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 2001, após ajudar um homem a reencontrar seus tesouros de infância, a sonhadora Amélie Poulain descobre que pode interferir na vida das pessoas de modo a reaproximá-las da pulsão de vida que tinham adormecido em si. Como uma espécie de guerrilheira do sonho, passa a agir de modo a criar momentos mágicos na vida das pessoas que conhece, ora surreais, ora poéticos. O segundo a ser envolvido na sua missão salvadora é um mendigo, o cego do metrô, que faz ecoar a voz de Edith Piaf com sua vitrola. Amélie o ajuda a atravessar a rua e o transforma em um flâneur impossível ao conduzi-lo em uma vertiginosa caminhada pela rua, narrando intimidades cotidianas do entorno que captura com o lirismo do seu olhar:

Lá vai a viúva do tocador de tambor da fanfarra. Desde que ele morreu, ela usa o uniforme dele; O cavalo do açougue perdeu uma orelha; A risada é do marido da florista. Ele tem rugas nos olhos; Na vitrine da padaria tem pirulitos; Está sentindo esse cheiro? O fruteiro cortou um melão; Hoje tem sorvete de amêndoa; Passamos pela salsicharia. 79 o presunto, 45 a carne salgada; Casa de queijos. 12,90 o picadon e 23,50 o cabécou do Poitou; No açougue, um bebê olha um cachorro que olha os frangos.(...)

O que Amélie compartilha com o cego da vitrola é mais do que sua capacidade de ver, ela compartilha um certo modo de olhar. O filme todo é uma espécie de elogio à clarividência, a capacidade de ver mais e melhor, com mais profundidade e magia o mundo, as pessoas, as relações, os próprios sentimentos. Talvez de forma sintomática, esse mergulho na clarividência sugira um tipo de alheamento comum aos sonhadores, o distanciamento de quem vê e sente (não de quem vê e pensa). Como disse o mestre Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, na epígrafe desse texto, para o clarividente ‘pensar é estar doente dos olhos’. No livro Ensaio Sobre a Cegueira (transposto com considerável fidelidade para as telas de cinema por Fernando Meireles), o escritor José Saramago se utiliza de meios opostos para dizer o mesmo que Jean-Pierre Jeunet diz em seu filme.

Preocupa ao autor português a incapacidade de ver do homem contemporâneo, ou, antes a cegueira imposta pelos excessos imagéticos de uma sociedade cada vez mais visual e menos visível. Não à toa, os personagens de sua história são destituídos de seus nomes (a capacidade de nomear é a capacidade de dar sentido às coisas, como aponta a semiótica), sendo sempre apresentados pelo seu papel social, como ‘o médico’, ‘o motorista de táxi’, ‘o ladrão’, entre outros, ao por características superficiais como ‘a mulher do médico’, ‘a moça de óculos escuros’ ou ‘o atendente da farmácia’. A epidemia de cegueira destitui nomes, capacidade de ver uns aos outros e ver o ambiente. Os personagens mergulham no abismo da anomia, até se reinventarem dentro de si mesmos, através das novas relações com os outros e com o mundo, em uma espécie de clarividência proporcionada pela cegueira, que lhes revela a inutilidade dos adornos e facilidades da civilização na sua atual condição, e uma indesviável necessidade de manterem-se juntos, em relações colaborativas.

É revelador que a cegueira que atinge os personagens seja uma ‘cegueira branca’, o mar de leite que os atinge como se ofuscados por uma luz intensa e permanente, ao contrário da escuridão característica do universo dos cegos usuais. A soma de todas as cores do espectro solar resulta na luz branca. Talvez o que Saramago esteja nos contando na sua parábola sobre a cegueira seja que se, subitamente, pudéssemos ver todas as coisas que existem, como de fato são, em sua natureza mais íntima, ficaríamos cegos até nos rendermos a inevitabilidade da interdependência e, conseqüentemente, a compreensão da fatalidade presente na atitude predatória que persiste na nossa sociedade. Só a partir desse ponto o ser humano teria chances de escapar da inexorável extinção.

Longe de ser uma parábola moral, a história de Saramago é uma parábola ética. Evgen Bavcar (pronuncia-se Eugen Bauchar), o fotógrafo e filósofo esloveno, professor de estética na Universidade de Paris, em seu texto “O Corpo – Espelho Partido da História”, aponta que a mitologia não raro atribuía aos cegos uma outra qualidade de visão, tridimensional, proporcionada pelo aguçamento de todos os outros sentidos - sem distrações - que despertava uma espécie de percepção extra-sensorial que permitia-lhes perceber a realidade do entorno de forma mais completa que àqueles que vêem normalmente. Esse tipo de visão, chamada por ele de “a visão do terceiro olho”, muitas vezes faziam com estes cegos ultrapassassem as limitações impostas pelo tempo e pelo espaço, sendo contemplados com dons proféticos e o título de oráculos:

O olhar tridimensional, o de Édipo ou de Tirésias, portanto a visão que caracteriza o terceiro olho, só pertence aos cegos e a todos aqueles que aceitam a cegueira como a única possibilidade, no sentido da verdade tridimensional do mundo.

Neste texto, Bavcar também apresenta outro entendimento da cegueira como deficiência, baseado na idéia de que deficiente é todo personagem histórico desprovido de aceitação social ou parcialmente destituído pela circunstância histórica onde está inserido. Deficiente é o incompleto, imperfeito, dessemelhante. Seguindo esse raciocínio, na nossa sociedade imagética, o cego – enquanto deficiente - não é somente quem não tem o sentido da visão, mas também aquele que não domina nem compartilha dos códigos que regulam as relações entre as pessoas e o meio em que vivem. Também quem não tem acesso a esses códigos. Também quem os utiliza, mas não os compreende, repetindo padrões impostos.

Quem se rebela diante do que lhe fere e oprime; quem percebe de forma tridimensional a realidade imediata, estabelecendo conexões entre o que viveu e vive, projetando seus devires; quem desperta seu ‘terceiro olho’ que lhe permite participar da extraordinária experiência da existência, fará, no seu corpo, o trajeto entre a cegueira e a clarividência. De onde vemos o que vemos? Se abrirmos mão dos nossos nomes e significações, poderíamos ter acesso a uma tela branca existencial onde pintaríamos novas possibilidades? Como reaprender a ver o mundo se estamos cercados de palavras de comando, estruturas de controle baseadas no consumo, certezas rasas ofertadas em cada esquina? Como nos vermos sem os estereótipos judaico-cristãos que nos enchem de autocomiseração e culpa, reconhecendo nossas limitações e imperfeições como parte do caminho entre o que somos e o que queremos ser?

Como podemos fazer ver ao outro quem somos ou o que sonhamos ou que desejamos sem com isso se impor ao outro, sem vê-lo nas suas singularidades e afinidades? A aventura do olhar é uma aventura do corpo e do espírito. Ver está para além do que é percebido. Faz parte da entrega necessária que cumpre o que somos no tempo que escolhemos para viver. Ver é saber. Sentir. Ser.

Referências Bibliográficas: SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. BAVCAR, Evgen. O Corpo, Espelho Partido da História. In: NOVAIS, Adalto (Org.) O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Os primeiros foram os últimos‏

Rodrigo C Vargas

O mundo festeja eufórico a vitória de Obama nos Estados Unidos. O que isso representa? É preciso deixar a poeira assentar, e buscar compreendê-la não como um fato isolado, mas como parte de um movimento. Não é fácil apontar o início, mas pode se dizer que o desmembramento da União Soviética, no fim dos anos 80, levou os Estados Unidos a perderem sua contra imagem - ou melhor - sua identidade. Foi a morte cerebral do capitalismo.

O ponto de partida politico do que vivemos hoje, pode ter sido em 1994, quando o líder da resistência contra o apartheid, Nelson Mandela, foi eleito presidente da África do Sul, na primeira eleição multirracial de sua história. Aqui no Brasil sentimos isso oito anos depois. Lula foi o primeiro líder de um partido de esquerda eleito presidente e, no cargo, o primeiro operário e o primeiro civil sem diploma universitário a exercê-lo como titular. A desconstrução do poder ganhou força. Em 2004 Angela Merkel era eleita chanceler alemã, se tornando a primeira mulher a ocupar o cargo na história do país. Dois anos depois aconteceu o mesmo no Chile, com Michelle Bachelet. Ainda no mesmo ano, a Bolívia elegeu Evo Morales, o primeiro presidente de origem indígena. Em 2008, uma sucessão de acontecimentos reforçou as mudanças de posicionamentos políticos no mundo. Em fevereiro, Raúl Castro, irmão de Fidel, foi eleito presidente de Cuba, prometendo mudanças, um Estado menor e mais tolerante. Em abril, o religioso Fernando Lugo foi eleito presidente do Paraguai, colocando fim à hegemonia de mais de seis décadas do Partido Colorado. Em setembro a chanceler Tzipi Livni foi eleita líder do Partido Kadima, se tornando a mais poderosa israelita desde Golda Meir. Livni foi a primeira voz no governo israelense a reconhecer que ataques da guerrilha palestina dirigidos a alvos militares não são “terrorismo” e reservar esse rótulo para ataques a civis. Por último, quarta-feira passada, Barack Obama foi eleito - fugindo de rótulos como afro-americano, terrorista, elitista e comunista - o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos.

Portanto, são muitos os fatos que demonstram claramente uma mudança de rotação ideológica das massas. Agora, é preciso ter os pés e a cabeça no lugar para entender que o sistema capitalista ectoplasmado sabe muito bem amortecer os ícones periféricos. Basta observar quais mudanças significativas tivemos até agora. O capitalismo é um organismo vivo (crer ou entender), um circulo vicioso e potente que puxa para o próprio núcleo - como um redemoinho - quem busca uma figura geométrica diferente. Será que com Obama tudo vai mudar?