segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Um caso de possessão: a pós-modernização de Mallarmé

Sérgio Medeiros
panambi@matrix.com.br
Escritor e professor de literatura na UFSC

Pretendo comentar brevemente o sublime irônico de Mallarmé, um poeta da segunda metade do século XIX, utilizando a versão para o português, assinada por Augusto de Campos, do seu célebre poema “O Azul”. No original, a palavra “azul” é repetida quatro vezes no verso final; na tradução brasileira, a palavra é repetida seis vezes, tendo o tradutor optado por essa solução ao omitir a frase que abre o verso, “Je suis hanté”, após a qual o vocábulo “azul”, acompanhado de ponto de exclamação, se repete quatro vezes em francês.

Permitam-me traçar rápidos comentários sobre a importância desse poema, antes de considerar a tradução de Augusto de Campos. Paul Bénichou, no seu estudo Selon Mallarmé, afirma que o tema do poema é a situação do poeta entre o Real ignóbil (o abjeto, eu diria) e o Ideal inacessível (o Sublime). O azul, o alto, é o ideal, mas ele é considerado, no poema, da perspectiva do fracasso e da tortura. O azul, no plano simbólico, remete à noção, típica da imaginação romântica e moderna, de um Deus indiferente ao homem, de um Deus situado numa distância inacessível para a alma que clama por ele, sempre em vão. “L’Azul, avec sa majuscule, n’est pas seulement le bleu du ciel que nous voyons; il est cet ideal lointain qui obsède les hommes”, afirma Bénichou. Beleza, azul, céu, ideal são nomes e atributos da Divindade, mas de uma Divindade especialmente distante e indiferente ao destino humano. Por isso, numa reviravolta ao mesmo tempo irônica e cruel, da qual todo o pessimismo moderno é herdeiro, esse outro indiferente se tornará o Inimigo, a Divindade é o Inimigo do poeta. Se o Universo é informe e indiferente, como ainda advogar pela permanência do Belo, do harmonioso e do homogêneo na arte? O poeta declarará guerra ao azul, guerra ao ideal, e, num ato que beira a demência, segundo Bénichou, repetirá, encarando o vazio que é Deus, quatro vezes a terrível palavra “azul”. O poema de Mallarmé mostraria, assim, “une sorte de dément en revolte vaine contre l’universe”. Na tradução brasileira, o poema afirma: “O poeta incapaz que maldiz a poesia/ No estéril areal de um deserto de Dores.”

Nesse poema, o azul é a obscuridade (“—O Céu é morto.—“) e o sujeito é um mero pote de maquiagem deixado ao pé de um muro, muro de hospício ou de cemitério. Diz a tradução: “(...), desde que meu cérebro vazio,/ Como um pote de creme inerme ao pé de um muro,(...)”. Essa imagem, a do homem-no-pote, a do crânio cheio de creme para maquiar a face, parece ecoar em outras imagens que a arte do século XX produziu, como o jarro liso e sem cor de Wallace Stevens, por exemplo, vaso que faz o mato crescer ao redor de si, no poema intitulado “Anedota do jarro”, ou a grande bola falante do romance O Inominável, de Samuel Beckett, um personagem deformado que assim se descreve a si mesmo: “Enfiado, como um ramo, num pote profundo, cujos bordos me chegam à boca, à beira de uma rua pouco freqüentada nas proximidades dos matadouros, estou tranqüilo, finalmente.”

Enquanto o homem-no-pote de Beckett parece tranqüilo, o de Mallarmé, no poema que estou comentando, vive sua crise mais aguda, ou catastrófica, no verso final, enlouquecendo enquanto repete a palavra mais odiada, o azul. O poeta “proclame sa propre démence, et la prouve en répétant indéfiniment le nom de son ennemi”, segundo Bénichou. O número 4 é aqui, de novo segundo o memso estudioso, sinal de repetição infinita, isto é, sinal de anomalia mental. “La rhétorique commune admet, depuis da Bible, la triple répétition comme figure reçue”, argumenta Bénichou.

O sujeito mallarmaico é, segundo Pierre V. Zima, aquele que, tendo saído dos grandes “metarrelatos” (a fé cristã, por exemplo), agora só pode contar consigo mesmo, ou com seus recursos pessoais. A separação entre sujeito e objeto se consuma e o mundo perde sua unidade. O sujeito, não sendo mais autônomo, não poderá jamais dominar o acaso. Só lhe resta, como já disse, implorar em vão pela Divindade, para sempre indiferente ou inacessível. E, depois, declarar guerra a essa mesma Divindade, num ato de desencanto extremo. A Divindade é o inumano. A escritura de Mallarmé anunciaria o divórcio entre o belo e o sublime, na tentativa de levar a negatividade da sua arte até o inumano, uma das dimensões do sublime moderno, justamente.

Mas o sublime, por ser inumano, é ameaçador, ameaça o sujeito e finalmente o destrói. O sujeito ainda quer sobreviver ao contato com o ilimitado, com o informe, e declara seu maior inimigo o sublime. Nesse sentido, Mallarmé não é o poeta do sublime, mas do belo negativo, da subtração contínua. Por isso seu poema termina com um grito, “un cri déchirant qui réagit à l’irruption du sublime dans le beau et témoigne de la démence à laquelle risque de se livrer le sujet en tâchant de représenter le sublime irreprésentable”, afirma Zima. O deserto estende-se diante do poeta, que só apreende o vazio.

Ao comentar um poema posterior de Mallarmé, “Um lance de dados”, Alain Badiou dirá que, nesse poema-testamento, a função do poeta “é fazer a escolha e a não-escolha equivalerem-se. Então suporta até o fim a nudez do local. E sobrevém a verdade, totalmente anônima, sobre o lugar desertado”. Então, nesse espaço nu (a última página do poema visual) surgirá, de repente, como sabemos, a Constelação, um curso transcendente que parece, momentaneamente, negar o nada, o vazio, o inumano de que se falou atrás. Eis o enigma do último Mallarmé, um enigma nunca decifrado e que não poderei discutir aqui, pois nosso tema não é a Constelação, mas o Azul que a esconde, que a anula, sendo ele mesmo, porém, obscuridade e não claridade. São as trevas, e não azul, que propiciam, parece-me, o aparecimento dessa nostálgica ou necessária Constelação.

Na famosa carta de 27 de maio de 1867, ao seu amigo Eugène Lefébure, Mallarmé afirmou que escrevia a sua obra por eliminação. A negação estética era a tendência poética do período, por assim dizer, e teve, daí por diante, grande impacto na arte da primeira metade do século XX. Ou melhor, na arte de todo o século XX. Mallarmé, o Dante da Era Moderna, como já foi chamado, declarou na referida carta: “A Destruição foi a minha Beatriz.”

Sou leitor de Mallarmé, poeta que releio continuamente, mas, por fidelidade à perspectiva histórica, ouso reformular a frase dele, adequando-a à realidade no nosso tempo: “A Multiplicação é a minha Beatriz.” A eliminação e a destruição não poderiam ser perpetuadas na nossa época. A Constelação retorna, ressurge, talvez na Terra e não no Céu, refletida num espelho atual, que a deforma certamente.

Acredito que, se tivesse de definir o meu tempo, o nosso tempo, a partir da tradução de Mallarmé feita por Augusto de Campos, diria (ou essa tradução diria por si mesma) que este é o tempo da multiplicação paródica e alucinada, às vezes mecânica e inútil, multiplicação vazia Não estamos mais sob o domínio da poética da subtração, da eliminação. A tradução de Augusto de Campos seria uma confirmação disso, ou não negaria pelo menos as minhas palavras.

A impossibilidade de representar um sublime irrepresentável, contudo, acabou levando Mallarmé também ao infinito terreno, à multiplicação na Terra. No final desse poema, “L’Azur”, o poeta reconhece que é impossível dizer o indizível: “Je suis hanté. L’azur! l’Azur! l’Azur! l’Azur!” Ele multiplica a sua voz, multiplica as sílabas do poema sobre o fracasso, a impotência do poeta em dizer o indizível. Talvez eu devesse citar aqui as palavras de alerta de Jacques Rancière: “Il est temps de cesser de lire Mallarmé à travers les témoignages des rêves de ses vingt-cinq ans, ou à travers le projet anéanti du Livre.” Ou seja, é preciso dar ao “fracasso” do belo em atingir o sublime uma interpretação que não reduza a questão a uma crise pessoal, íntima.

Na tradução desse poema sobre o sublime moderno e inumano, Augusto de Campos escreveu simplesmente, assumindo a multiplicação pós-moderna: “O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!” O vocábulo inimigo, o vocábulo danoso é repetido seis vezes, com uma facilidade notável. É o infinito terreno, ao alcance dos homens. Sublime abjeto e material, paródia do sublime espiritual ou transcendente.

Porém, isso não é Mallarmé, isso, o demente que precisa dizer seis vezes a mesma palavra para representar o infinito banal, alongando exageradamente a série, isso é a nossa época, que multiplica o mundo e a linguagem, recorrendo ao exagero barroco. Para Mallarmé, o infinito estava no número 4, bastava o seu poema repetir uma palavra quatro vezes para tudo cair no desespero, no deserto moderno (cf. Pierre Zima). O poeta impotente e mudo, ou quase mudo, ia assim além do 3, o número sagrado, a contagem bíblica, mas não lhe era necessário o 6, como é necessário para Augusto de Campos.

O pós-moderno, para mim, está resumido nessa versão brasileira e paulistana de Mallarmé, versão monótona e infinita, que Augusto de Campos, mais exagerado e dionisíaco do que geralmente se admite, transformou num sublime abjeto, paródico, mecânico, algo tonto, risível, uma série explícita: azul, azul, azul, azul, azul, azul... Algo mais monótono do que desesperado. Mallarmé não poderia dizer isso, nós podemos e ficamos balbuciando essas sílabas...

Recentemente, conversei com o estudioso argentino da poesia concreta brasileira, Gonzalo Aguilar, professor da Universidade de Buenos Aires, e um dos temas da conversa foi a tradução desse poema de Mallarmé. Para Aguilar, Augusto de Campos substitui, na sua tradução, a fala sobre a possessão pela possessão mesma, por isso repete seis vezes a palavra azul e não quatro, como Mallarmé fez. Isso teria ocorrido porque, para Augusto, a tradução é um ato de possessão, ou seja, o tradutor teria buscado produzir, na sua época, um texto tão original quanto aquele lhe serviu de fonte, a fim de melhor apropriar-se do texto e converter-se, perante o leitor, numa voz privilegiada, ou decerto tão autorizada quanto a voz do próprio Mallarmé. Na tradução como ato de possessão, o tradutor assume finalmente a autoria do texto. Por isso, nos livros de traduções dos irmãos Campos, só o nome dos tradutores vêm na capa, como verdadeiros autores daqueles textos impressos em português.

Outra observação interessante que me fez Aguilar refere-se à leitura do poema “O Azul” no mundo hispano-americano. Existe uma tradição de leitura, que remonta a Ruben Darío, autor de um estudo sobre Mallarmé. Segundo essa tradição, a repetição de palavras é interpretada como fórmula ritual ou sibilina. Não se trata de demência, segundo a leitura que propus acima, mas de uma tentativa de recuperar a força secreta das palavras, repetindo-as num novo salmo musical, após o fim da religião.

Talvez pudéssemos pensar numa religião demente, numa religião para dementes..., a mais imemorial de todas. Aquela que não deixa de amaldiçoar o Ideal, a Divindade. Seria essa a religião dos tradutores que declararam e ainda declaram guerra à tradução ideal, sublime, divina?

Concluo dizendo que considero “O Azul” uma das melhores traduções de Augusto de Campos. Talvez a que mais me agrade.
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Bibliografia

BADIOU, Alain. Manual de inestética, Estação Liberdade, São Paulo, 2002
BECKETT, Samuel. O Inominável, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002
BÉNICHOU, Paul. Selon Mallarmé, Gallimard, Paris, 1995
CAMPOS, Augusto de et al. Mallarmé, Perspectiva, São Paulo, 1991
RANCIÉRE, Jacques. Mallarmé: La politique de la sirene, Hachette, Paris, 1996
STEVENS, Wallace. Poemas, Companhia das Letras, 1987
ZIMA, Pierre V. La Négation esthétique, L’Harmattan, Paris, 2002

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