terça-feira, 15 de setembro de 2009

Bocage e a poesia maldita do século XVIII




Gilfrancisco Santos
gilfrancisco.santos@ig.com.br
Jornalista, pesquisador e professor universitário

Vida irregular, se não tumultuosa, levou esse poeta satírico (muitos desses poemas são anedotas vulgares), que ironizou contemporâneos seus, o clero, a nobreza decadente. Principal representante do Arcadismo em Portugal, precursor do Romantismo, Bocage foi um poeta original, apesar das suas decepções amorosas que o tornaram boêmio. É quase sempre visto apenas como rebelde e depravado, o que sua obra lírica é suficiente para contestar: a lírica bocageana é comparada a de Camões, por isso, considerado um dos maiores sonetistas da língua portuguesa.

Amado e odiado, Bocage deixou uma vasta obra e experimentou várias formas poéticas, opondo-se à maioria dos seus contemporâneos, e seguiu um caminho que refletisse as inquietações de sua atribulada existência. Nas letras portuguesas, ele ocupa lugar de grande excelência, para correção da sua linguagem e pela perfeição de seus sonetos. A poesia desse século apresenta duas fases: a primeira encontra os Árcades, reagindo contra os excessos culturais do período anterior e aproximando-se outra vez do classicismo, inspirados em Horácio e Pindaro, como também em alguns franceses. As Arcádias eram uma espécie de academias descentralizadas, com interesses fúteis e registro, não admitia que houvesse dissidentes. O pré-romantismo dará um tom mais pessoal aos versos de Bocage. A poesia bocageana de mérito verdadeiramente singular, introduziu na literatura do século XVIII, a vibração apaixonada em versos entusiásticos e sonoros, como também nas imagens e na ressonância orquestral do ritmo. Bocage é um precursor dos românticos, pois sua poesia na época já mostrava certas tendências peculiares deste movimento: a fantasia apaixonada, a emoção ardente, o gosto pela metrificação sonora.

O poeta cerca-se de imagens mitológicas e clássicas, numa flagrante transposição de seus infortúnios, e começa a descombinar com os novos ares culturais de infância anglo-saxônicas, o gélido artificialismo arcádico. Numa etapa final de auto-análise, mais amadurecido, Bocage alcança seu máximo potencial lírico, abandonando às ficções mitológicas e às regras clássicas. E distancia das frias concepções arcadistas, procurando sempre novas expressões para transmitir no correr do tempo a purificação da sensibilidade de cada leitor. Manuel Maria Barbosa du Bocage, nasceu em Setúbal-Portugal, em 15 de setembro de 1765, num lar burguês organizado e próspero, com anos de fidalguia, sendo filho do bacharel em cânones José Luis Soares Barbosa, que trocara a magistratura pela advocacia e D. Mariana Joaquim Xavier Lestof du Bocage, filha do francês Gillet Le Dous du Bocage que atingiu na Marinha Portuguesa o posto de vice-almirante, casando-se com a holandesa Clara Francisca Lestof. Ao lado de seu irmão mais velho Gil, e de suas quatro irmãs, Bocage teve uma educação esmeradíssima, ainda em criança já dominava o latim, francês, italiano e o espanhol. Órfão da mãe aos dez anos de idade, aos dezesseis assenta praça do Registro de Infantaria do Exército setubalense, e dois anos depois não se sabe por que causa impulsiva, leva o jovem Manuel a trocar a cidade natal por Lisboa.

Ali se matricula como aluno da Academia Real da Marinha e em 1783 ingressa na Marinha de Guerra, provando os prazeres da capital. O jovem passa todo seu tempo numa boêmia desenfreada, nas reuniões e nos cafés e em pouco tempo passou a ser estimado e admirado por parte da intelectualidade boêmia Lisboeta. O ambiente em que Bocage vivia era oportunamente propício a este viver, e enamorava-se de Gertrudes que vivia a ser sua musa inspiradora. Três anos mais tarde, parte em viagem para a Índia como guarda-marinha que obteve por mercê régia a nomeação. A nau Nossa Senhora da Vila, Santo Antônio e Maria Madalena, deixa o Porto em abril, vinha com uma escala pelo São Paulo, Francisco da Cunha e Menezes, nomeado naquele ano ao cargo de governador e capitão-geral da Índia. No Rio, Bocage é muito bem recebido pelo Governador Luiz Vasconcelos, protetor das artes e das letras. Do Brasil seguiu para Goa, onde passa algum tempo e exprimi uma infinita tristeza e solidão, por estar num mundo completamente alheio. Pois a indiferença dos orientais o fez chocado, tão diferente dos patrícios.

Na Índia, Bocage vive momentos de intenso prazer sexual com as mulheres, pois gozava da simpatia do governador e vivia nas relações do desembargador José Ferreira Barroco, poeta com quem disputou algumas rimas. Não satisfeito com suas mulheres, Bocage se envolve com a amante do governador local, seguindo em seguida para Damão, onde deserta pela segunda vez, encerrando-se definitivamente sua carreira militar. Viajando para a China rumo a Macau foi vítima de um tufão é levado para Cantão e depois para Macau, onde foi bem recebido pelo governador, que lhe facilitou a sua volta para Portugal, chegando em 1790. E em Lisboa, encontra sua musa casada com seu irmão Gil, e passa a uma vida dissoluta. Por botequins e tavernas em companhia muitas vezes de gente equívoca, radicou-se na fama do perfil magro, ossudo e a sua inexaurível ciscalhada cômica. O seu rosto pálido, escanelado, de grandes olhos azuis fosforescentes, a sua testa alta, rematada por cabelos em desalinho, o seu corpo franzino e nervoso, fez com que conquistasse o povo nas praças e ruas de Lisboa. Com sua celebridade de homem extraordinário, graças a sua alegria e inspiração de repentista, a libertinagem seduzia-o com toda à força do seu talento amoroso.

Poucos escritores se vincularam na atenção do público, pelos acidentes da existência e pelo gênio como Bocage. O seu nome persiste na memória popular, como nenhum outro poeta, a não ser Camões, desfruta uma notoriedade tão radicada na alma do povo. No fim da vida, as coisas pioram a cada dia, não há dinheiro nem para pagar o aluguel do casebre onde mora com a irmã. Seu amigo José Pedro Silva, proprietário do Botequim das Parras é que o ajuda, recolhendo seus versos que os vende uma média de 50 a 100 por dia, arrecadando dinheiro para a sua sobrevivência. A fama do lírico foi enorme no seu tempo, mas não tão grande como a do satírico, ninguém ignorava seu nome, e os leitores cultos o colocavam entre o primeiro dos poetas da época. A sua glória não escapava aos estrangeiros que por Lisboa se encontravam. Mas o repúdio das doidices praticadas na juventude, o fez um amargo e saudável, ímpeto de remorso, confessando o arrependimento que restava na alma. Foi o lirismo que afirmou Bocage na posteridade, levado por sua imaginação ardorosa e segura do instituto poético, e muito dos seus sonetos, revivem o estro humano e profundo de Camões. Quer pelo volume de sua obra ou pela qualidade intrínseca dela. Bocage conquistou a primazia entre os melhores sonetistas do século XVIII, é indiscutivelmente um dos primeiros da língua portuguesa, onde seu gênio lírico esplende na pujança da sua pompa.

Muito cedo, Bocage provoca a inveja e a desconfiança, gerada pelo seu grande talento e por nutrir idéias libertarias. Em 1790 é convocado para fazer parte da Academia de Belas-Letras ou Nova Arcádia, em que por iniciativa de Domingos Caldas Barbosa, Joaquim Severino Feraz de Campos e Francisco Joaquim Bingre. Na academia, Bocage usa o pseudônimo de Elmano Sadino (anagrama do primeiro nome, Manuel e Sadino, derivado do Rio Sado, que banha sua terra natal). Figurando na Arcádia dos salões do conde de Pombeiro, em breve satiriza essas quartas-feiras de Lereno (Domingos Caldas Barbosa), o presidente delas e depois os outros confrades mais notáveis. Depois atacara em especial José Agostinho de Macedo, que sem certa razão lhe censura o tom egolastico do prólogo a tradução dos Jardins de Delille.

Em 1797 é preso e processado pelas irreverências antimonárquicas e anticatólicas da sua musa improvisadora e popular, sobretudo na libertina Carta da Marília. Depois de vários meses de clausura no Limoeiro e nas masmorras inquisitórias, obtém através de súplicas e retratações, uma transferência para o Mosteiro de São Bento em fevereiro de 1798. Sem vaga, vai para o Hospício das Necessidades, onde fica sob a responsabilidade do padre Joaquim de Foios, donde sai conformista, regrado e precocemente gasto um ano depois, graças à benevolência do príncipe regente D. João.

Levado por seu temperamento rebelde e sarcástico, de vida irregular e tumultuosa, destacou-se entre seus conterrâneos, embora sofrendo com eles as pechas do arcadismo, esteve preso nos cárceres da Inquisição para correção de vida. Homem bastante culto, ao sair da prisão para sobreviver com a irmã, traduz latim e francês. Existem dois Bocage, um cujo vulgo fixou através de anedotas, algumas verdadeiras e outras não, mas todas infestadas na obscuridade grosseira, que vai a ponto de lhe atribuírem como piadas de Bocage, as mais diversas anedotas fesceninas. A mediocridade da vida cotidiana do seu tempo e em grande parte responsável por sua existência desordenada. Por isso foi um inadaptado, vítima da desclassificação social que pesava a condição de poeta. O outro a que a tradição literária nos legou. O primeiro teve uma trajetória secundária e intensa a qualquer configuração, pois a ele é atribuído todo o dito mais picante da época. E em torno do seu nome é que surge a figura mística de um tipo gracejador universal. Bocage chegou a ser considerado estrela de primeira grandeza, ao lado de Gregório de Mattos e Guerra, devido ao seu temperamento agressivo e impulsivo, resultado numa feliz improvisação. Mas a sátira ocupa lugar menos relevante em sua obra, quer seja de cunho pessoal ou não.

Em vida Bocage publicou: Idílio Marítimos, recitado na Academia das Belas-Artes de Lisboa em 1791, e as Rimas III volumes, 1791, 99 e 1804. Posteriormente, com o título de Obras Poéticas, saíram mais dois volumes, 1812-1813 e verdadeiras Inéditas Obras Poéticas, um único volume, 1814. O VI volume de Rimas, aparece em 1842. Onze anos depois, Inocêncio Francisco da Silva, reunia os seis volumes e acrescenta-lhes inéditos, considerada a edição definitiva de sua poesia. Bocage, cultivou a poesia satírica e lírica, vazadas em epístolas e sonetos. O vate português é o maior poeta do século XVIII, êmulo de Camões na vida e na obra. Depois de morto, sua obra foi logo esquecida e se hoje não encontra no devido plano é porque o poeta tinha uma língua afiada o que fez ganhar inúmeros inimigos, e o despeito humano e a calúnia se encarregou do resto. O tema carregado de mais dramaticidades na trajetória de Bocage é a poesia da confissão e da emoção. Levada pelo sentimento de desamparo por falta de afetos e certezas religiosas na juventude, substitui em face da natureza e do mundo.

Passando aos temas sobre a solidão existencial e profunda do gênero humano. Desta fase, continua em sua poesia a sondagem do mistério da morte. Em sua vida surgem novas desgraças como a doença, amores infelizes e tormentos de sensibilidade, recolhendo-se ao leito à espera do fim, que chega na manhã de 21 de dezembro de 1805, aos quarenta anos de idade, vítima de um aneurisma, depois de uma vida com mais de vinte anos de bebedeira e libertinagem, morre na miséria e arrependido. Embora não fosse barroco, sua poética pré-romântica é marcada por violentas oposições, ao mesmo tempo em que foi um irreverente que engrossou o coro antimonárquico, Bocage bajulou os poderosos, cantou êxtases místicos e eróticos e celebrou as delícias dos prazeres carnais ao mesmo tempo em que temeu o fogo do inferno. Embora o nome de Bocage esteja para algumas pessoas, ligado às suas poesias obscenas, ele era considerado por Olavo Bilac “o maior metrificador da língua portuguesa”. Era um lírico com total domínio das técnicas de versificação: mestre do decassílabo, com um perfeito sentido de ritmo e cadência, vocabulário rico, ótima musicalidade, poderosa imaginação.

Dois poemas de Bocage

Soneto

Nascemos para amar; a humanidade
Vai tarde ou cedo aos laços da ternura:
Tu és doce atrativo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão n’alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na idéia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

Ode Anacreôntica

Em torno de áurea colmeia
Amor adejava um dia;
E a mãozinha introduzindo,
Húmidos favos colhia:
Abelha, mais forte que eu,
Porque de amor não tem medo,
Eis do guloso menino
Castiga o furto num dedo.
Chupando o terno dedinho
Entra Cupido a chorar;
E ao colo da mãe voando
Do insecto se vai queixar.
Vênus carinhosa e bela
Diz, aninhando-o ao peito:
“Desculpa o que te fizeram,
Recordando o que tens feito.
O tênue ferrão da abelha
Dói menos que os teus farpões:
O que ela fez no dedo
Fazes tu nos corações.”

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