quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Recordações bacanas de um poeta polifônico

Antonio Naud Júnior
antonio_junior2@yahoo.com
Poeta e jornalista

“Oh, sim, eu estou cansado
Mas não pra dizer
Que eu estou indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto (quem sabe)”

(“Vapor Barato”, Macalé-Salomão, 1970)

Conheci Waly Salomão em 1985 ou 86, em plena madrugada de carnaval soteropolitano. Embriagado e energizado de adolescente euforia, eu beijava bocas suculentas sob o braço estirado de Castro Alves. Waly se aproximou acompanhado da irreverente Dedé Veloso, a ex-musa de Caetano, e me disse: “Certo, baby, dispa as vestes d´alma, avacalhe o provincianismo com o pólen da sua beleza”, gargalhando estalante. Anotei a frase no diário, intrigado com aquela figura mediúnica, de cara larga. Dias depois, numa festinha pós-momesca, tão típicas de uma Salvador pop-cultural, fomos apresentados pelo amigo Pedrão, filho de Gilberto Gil. “Eis um encontro de poetas”, disse ele. Tímido, não soube o que conversar com Waly e gaguejei quando me perguntou sobre os meus poetas favoritos. Se não me falha a memória, falei dos beats o pouco que sabia. Cheio de idéias, falante e espiritualmente avassalador, ele confessou devorar livros desde menino, em Jequié, “como traças”. Eu ainda não conhecia a sua original e ousada produção poética.

Voltei a encontrá-lo no finalzinho dos anos 80, num quarto do Grande Hotel da Barra, ao visitar o poeta Antonio Cícero, irmão da cantora cult Marina Lima. Foi uma noite de farra, louca, típica dos anos sem juízo, se um dia cheguei a tê-lo. Um clube masculino de vícios e excentricidades. Waly relatou um encontro nosso na famosa boate Noites Cariocas, apresentados pelo diretor global Jorge Fernando. Não lembrei, devia estar pra lá de Marrakesch, entretanto recordei que na mesma época, aos 17 anos, num verão de corações loucos, ganhei em Copacabana o concurso de beleza Garoto Zona Sul, desfilando pelado e julgado por Lady Francisco, Elke Maravilha e uma bichona juiz de futebol. Acelerado, falei também do prazer intelectual ao conversar com o escritor argentino Manuel Puig. “Conheci-o na Cinemateca do MAM, depois da sessão de um dramalhão mexicano com Maria Félix, e babei ao saber que escrevera "A Traição de Rita Hayworth”. Waly caiu na gargalhada com minhas inusitadas experiências. Antes da partida, alertou-me: “Um animal fareja os nossos sonos”.

Uma década depois, já homem feito, convidado pela Embaixada Brasileira em Lisboa para a pré-estréia portuguesa de “Terra Estrangeira”, de Walter Salles, encantou-me Gal Costa cantando “Vapor Barato”. A música de 1970, composta por Waly Salomão e Jards Macalé, faz parte do melhor disco da cantora baiana: “Fa-Tal”. Lembro dos tempos em que ainda menino, numa Itacaré mal iluminada, na beira do cais, ouvia um hippie gaúcho cantá-la. Reafirmei a minha ignorância sobre Waly, passando a lê-lo e a pesquisar a sua trajetória esfuziante e original. Ele é uma das personalidades mais transgressoras e fascinantes da cultura brasileira, amigo íntimo do genial Torquato Neto, lançou com ele a antológica revista “Navilouca” nos anos do desbunde, e rabiscou os poemas do que seria seu livro de estréia, “Me Segura qu´eu Vou Dar um Troço” (1971), numa cela do Carandiru, no Pavilhão 2, condenado por uso de maconha. Herdeiro do transe e do tom demiúrgico de um Glauber Rocha, tornou-se personagem-chave do Tropicalismo e parceiro musical de Gil, Macalé, Caetano, Cícero, Adriana Calcanhotto e Itamar Assumpção, autor de sucessos como “Mal Secreto” e “A Voz de uma Pessoa Vitoriosa” (1978).

Presença inovadora e inspiradora, caracterizado pela vitalidade, produziu o disco e o show “Antimonotonia” (1997), de Cássia Eller, e foi também performer, artista plástico, editor, videomaker. Filho de um sírio com uma sertaneja, o baiano Waly Salomão era conhecido por sua inteligência arrebatadora, doçura, energia destrutiva e humor anárquico. Na semana de sua posse na Secretaria Nacional do Livro, em Brasília, chocou mais uma vez muita gente boba com suas idéias lúcidas: “A maioria das pessoas analfabetas com quem converso tem faro, intuições, inteligência, e já percebo que pessoas de classe média que passam pela universidade são freqüentemente tacanhas, sedimentadas em esquemas já prévios, não aprenderam o mínimo, que é pensar por si. Copiam esquemas importados e por isso são tristes, sofrem de complexos de inferioridade cultural”. Pensava em desenvolver uma política de “fome do livro” como alavanca para a ascensão social.

Poeta perturbador, de originalidade hipnotizante, publicou o seu último livro em 2001, “O Mel do Melhor”, dedicado ao iconoclasta Hélio Oiticica. Em 1996, ganhou o Prêmio Jabuti com “Algaravias”. Haroldo de Campos o saudou como “inventivo poeta e letrista pop-erudito”. No cinema, interpretou o satírico poeta barroco do século 17, Gregório de Mattos, o seu preferido, num filme ruinzinho de Ana Carolina. Waly Salomão, que assinava Sailormoon nos anos 70, morreu aos 59 anos, lutando contra um câncer. Um ano antes o entrevistei via net. Ele respondeu as nove perguntas com poemas inéditos para cada uma delas. Fiquei pasmo. Mesmo pouco dedicado a saudade, tenho saudades desse poeta da contracultura, e confesso que como muita gente ainda guardo “meu casaco de general”.

Não Existe Paraíso

para Waly

Não acontecerá o milagre previsto
Nada vai mudar inesperadamente
Estou só na caverna: isto é uma aventura lírica.
Enquanto a memória contempla o trovador
partindo através de palavras bruxuleantes
Vejo-o, visível na escuridão,

Seria o caso de derramar lágrimas?
Por que razão olho o infinito enquanto
nada mais que uma dor atravessa a Bahia deserta?
Ele deixou versos, melodia,
riso e escracho.
Não devo me render a melancolia,
a falta também há de passar:
a saudade é afeição povoada de sofrimento.

Ah, sacanagem, o poeta de boca de largos sorrisos
regressa ao murmúrio onde se abriga
o abstrato eletrizante,
rumo aos jardins que não se acabam.
Adeus, baby. “Não existe paraíso”, responde,
perdido nos jardins pop-eruditos
com flutuantes árvores-parangolés.
Fartos de vidinhas literários,
é o caminho que todos nós, poetas,
tomaremos um dia.

Não há outro.

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