João Tomaz Parreira
jtparreira@hotmail.com
Jornalista, especialista em Literatura, Artes Plásticas e Teologia.
Nos modernos estudos sobre estilística não se rejeitam os contributos da narrativa bíblica, não obstante ser conhecida de todos a frase secular «o estilo é o homem». O estilo dos evangelistas Lucas ou João, ou dos apóstolos Paulo e Pedro, ou do lider do povo hebreu e escritor do Génesis, é dos respectivos autores e tal circunstância de género humano não invalidou o uso das suas mãos e mentes para a escrita sob a direcção do Espírito Santo, a fim de escreverem as Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus, sendo esta, como alguém disse, «o conhecimento acerca de Deus que procede de Deus». (1)
Opiniões sobre a história da literatura dizem que esta «consiste em diferenciar, valorizar, concatenar e seriar os estilos particulares». O estilo é também arte. E a narrativa do Génesis sobre o sacrifício de Isaque, requerido por Jeová a Abraão, é particular e paradigmática. A autoria do Pentateuco é pacífica em todos os meios do Cristianismo, católicos, ortodoxos, evangélicos, e do judaísmo, estando apenas por razões óbvias em debate a passagem sobre a morte e o sepultamento do autor, Moisés.
Um dos teóricos de referência do pensamento literário do século XX, um crítico exigente e controverso, como Harold Bloom, autor do conhecido O Cânone Ocidental, diz que o maior representante da evidência da marca canónica é o primeiro autor da Bíblia hebraica, a figura chamada Javeísta ou J. pelos estudiosos bíblicos do séc. XIX, digamos como uma espécie de pseudónimo. (2) Quando nesse século, em que se moldaram ideologias e materialismos vários, despontou a crítica mais agressiva e científica da Bíblia, no entanto esses estudiosos não desdisseram o que é tido como verdade imortal acerca da autoria individual dos autores sagrados, isto é, que também o Pentateuco foi escrito por Moisés, sendo assim este o autor Javeísta ou J. dos relatos primeiros e cardiais do Velho Testamento.
O ESTILO DA NARRATIVA DO DRAMA
O capítulo 22 do Génesis deixa evidente, quer ao leitor apenas cultural, aquele que lê apenas por intelectualismo religioso, quer ao leitor crente, o que lê a Bíblia como a Palavra de Deus para obter conhecimento de Deus, que está perante um drama de profunda decisão.
Não trata de uma crise de Fé, porém de uma total entrega à vontade divina que vai sublimar essa mesma Fé.
Expõe mais a profundidade da alma de Abraão do que as circunstâncias exteriores. Um pedido de Deus é sempre à medida de Deus, é sobrenatural, e só começa a ser entendido pela mente humana quando o próprio Deus resolve o dilema do incompreensível.
No lançamento recente de um livro cristão O Duplo Chamamento, o autor escreve em resumo sobre o que foram na realidade todos os chamamentos divinos de homens ou grupos específicos no Velho Testamento: «Atrás de todo o chamamento de Deus registrado na Bíblia há sempre uma vontade de Deus específica. Deus chama para que as pessoas participem de Sua obra. Toda e qualquer vontade de Deus específica é apenas uma fase do plano eterno de Deus para uma pessoa específica [ou um grupo específico] num tempo e espaço específicos».
Abraão, com certeza, só estava a entender o profundo pedido de Deus nas áreas da obediência e do agradar à Sua vontade.
A visão do velho patriarca não ia mais longe do que os montes da terra de Moriá, sendo porém certo que num desses montes se encontraria com a expectativa ansiosa, com a angústia de ceder uma parte da sua alma e do seu sangue - o filho único, a quem amava. Embora estivesse ciente de que a vontade divina ia ao ponto de alegrar o seu coração de pai, fazendo tornar à vida o sacrificado.
O estilo da narrativa mosaica ou javéista, ao contrário de obras comparativas como a Odisseia, de Homero, exterioriza quase nada o meio ambiente, o espaço e tempo embora dê ao leitor uma ideia de ambos, os lugares, o trajecto da viagem, etc. Contém antes na revelação do pensamento divino, um estilo interiorista, um estilo que sugere nas entrelinhas, escondendo algo que mais tarde é revelado em apoteose.
No que diz respeito aos elementos que compõem uma narrativa, o sujeito ou a personagem, a nosso ver existe uma ausência, justamente a do principal protagonista, que está escondido: o cordeiro, que é formalmente a intriga do texto.
Nesta passagem bíblica, o grande ausente é também a grande personagem, o cordeiro que falta ou o cordeiro que Deus proverá para si.
Isaque, profeticamente, salienta esse pormenor que faz parte do diálogo entre si e seu pai: Temos o fogo, temos a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?
O cenário apresenta-se-nos sem nenhuma descrição a não ser a da sua acidentalidade, o autor sagrado transcreve o discurso do próprio Jeová que refere «terra de Moriá» e «montes». Todos sabemos que as montanhas no Velho Testamento foram sempre o lugar intermediário para o encontro de Deus com o homem, desde Moriá ao Sinai.
A forma verbal usada pelo autor sagrado na narrativa traduz a intemporalidade do texto, ainda que esteja no presente do indicativo. É a progressão do argumento que transcorre, pelo menos, durante três dias, e da tensão do próprio último dia, o do holocausto, que lhe dá a dimensão de perpetuidade porque está sempre no domínio do simbólico, protagonizado no entanto por pessoas de carne e osso, historica e biblicamente reais, não apenas personagens.
O desenvolvimento estrutural da narrativa, que se inicia com uma proposição de Fé, e um clima de suspense em que imaginamos a luta interior, a comoção incalculável de um pai a quem se pede o filho, tudo concorre no sentido literário de um drama psicológico, por assim dizer, de tragédia intimista, do idealismo dos protagonistas, especialmente o da vítima Isaque, usando aqui os marcadores triviais da ciência literária.
A forma interior da narrativa, é literária porquanto conduz o leitor num crescendo de ansiedade, de expectativa.
Na totalidade do enredo, descobre-se uma situação epopeica, na qual vamos percebendo o nascimento de uma epopeia histórico-teológica. Não existe contudo pluralidade na acção. Esta é restritiva e confinada a uma mensagem de teor eterno, por isso absoluta.
Contrariamente à teoria do romance que identifica e exprime um mundo fechado, a narrativa do sacríficio de Isaque parte do que parece ser um mundo interdito, de uma acção da comunidade patriarcal na sua relação com o Deus pessoal de Abraão, para a universalidade da mensagem bíblica da necessidade de um substituto para a remissão dos pecados da humanidade.
A temática central da narrativa, sendo a requisição do holocausto anterior à Lei de Moisés e ao povo hebreu, só por si já possui uma força épica e fortemente literária, estando já no domínio do «surrealismo», isto é, da simbologia, e num outro patamar mais elevado, o da Transcendência, porquanto é o próprio Deus, que proíbe sacrifícios humanos, quem pede a Abraão que lhe ofereça o seu filho único Isaque. Porque, como se sabe, está aqui a prefiguração de Deus Pai ofertando o Seu Filho Unigénito, Jesus Cristo, para Salvação dos homens.
Por esta superior razão, não existe pois na epopeia deste episódio de Abraão e Isaque, nenhum sinal característico das formas romanceadas épicas da Literatura Universal, realizadas entre o sublime e a loucura, repletas de maravilhoso idealizado e de obscuridade irracional. E, no entanto, é uma história magistral, com um enredo poderoso, ideal e belamente dramático.
A ARTE PICTÓRICA DA NARRATIVA
A própria arte pictórica não se alheou da narrativa e confere a este tema do Génesis 22 uma forte dramaticidade quase onírica, designadamente na pintura do holandês Rembrandt.
Outros pintores do período renascentista estudaram o tema e reflectiram sobre ele através de uma estética de contextualização com o seu tempo, Andrea del Sarto, Alessandro Alori, Lucas van Leyden, e o mais conhecido, Caravaggio. Rembrandt, ao contrário de todos, pegou na experiência da Bíblia e contextualizou-se com a sua própria Fé. Chamaram-lhe, por isso, «o bíblico Rembrandt».
Os dois «Sacrifícios de Abraão», de 1635 e 1636, e os vários desenhos sobre o mesmo tema, são obras-primas desse relato bíblico, e Rembrandt soube dar-lhes a cor sombria do dramatismo. Mas a densidade literária, por assim dizer, está no facto do grande pintor holandês ter pintado o momento da transformação da tragédia em acto de glorificação da Fé do Patriarca. Pressente-se a Voz divina a mandar suspender o gesto de Abraão - momento este personificado com um anjo que segura a mão do velho pai. Pressente-se a tensão dos quadros, como a da idealização da narrativa, no momento em que o cutelo ou faca cai das mãos de Abraão.
Fundamentalmente por esta e outras visualizações do Velho Testamento, alguém escreveu que Rembrandt foi «um humano que pintou a Paisagem da Fé.»
Por fim, a leitura do texto de Génesis 22 partilhada com a visualizada contextual dos quadros atrás referidos, introduz o leitor no universo maravilhoso, transcendente da Bíblia Sagrada e numa das mais belas e comoventes narrações do Velho Testamento.
1. Bernard Ramm, in La Revelacion Especial
2. Harold Bloom, in O Cânone Ocidental, págs. 16, 17
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