Mauro Rosso
rosso.mauro@gmail.com
Escritor, professor e pesquisador de literatura brasileira
“Ano Machado de Assis”, estabelecido oficialmente – embora saibamos o quanto seu nome e grandiosidade se encontrarem acima e além de efemérides e circunstâncias de momento. No ano do centenário de morte, convém uma longa (e importante) viagem no tempo e reportar ao Machado de seu primeiro livro publicado e anunciadorprenunciador de tudo que viria depois.
“(...) na obra de Machado de Assis, toda conclusão do leitor é um risco, porque nela o sentimento do mistério se traduz por um desencanto aparentemente desapaixonado, mas que abre a porta dos sentidos alternativos e transforma toda noção em ambigüidades” (Antonio Candido)
Queda que as mulheres têm para os tolos veio a lume no ano de 1861, originalmente publicada na revista A Marmota Fluminense, em cinco números sucessivos: 19, 23, 26, 30 de abril e 03 de maio, e no mesmo ano em livro, um opúsculo de 43 páginas, formato 16 x 12 cm, pela Typographia de Paula Brito. Ao longo do tempo, sucederam-se a edição de 1936, pela Editorial W.M.Jackson Inc, na Coleção Machado de Assis, vol. 22, e a edição de 1943 (fac-similada) pela Academia Brasileira de Letras, na coletânea Ensaios I. Tanto nos folhetins como nos volumes editados aparece sob a indicação de “tradução de Machado de Assis”, sem informar no entanto o nome do autor original.
Estudiosos e pesquisadores de Machado de Assis sustentam, todavia, tratar-se de um trabalho original [1], disfarçado em tradução por ‘timidez’ do autor, mas o ensaísta (e machadófilo) francês Jean-Michel Massa defendeu, recentemente, ser uma tradução do panfleto publicado anonimamente pela editora F. Renard de Liège, em 1859, com o título “De l`amour des femmes pour les sots”, atribuído posteriormente ao belga Victor Henaux — ainda que estranho seja o fato de apenas citar a obra, sem maiores detalhes, em seu livro Machado de Assis traducteur [2] , tratando dessa e de outras 47 supostas traduções de Machado [diz-se “supostas”, grafado, nem tudo em Machado é plenamente confirmado, principalmente em se tratando de traduções].
O disfarce concebido por Machado, segundo os que asseguram ser uma criação e não tradução – por ‘timidez’ do autor — seria mais um dos inúmeros subterfúgios machadianos: de um lado, por ser Queda... sua primeiríssima obra publicada, em 1861 [mas é bom notar que de sua autoria o poema “Sonetos”, dedicado a uma misteriosa "Ilma. Sra. D.P.J.A." , identificada muito tempo depois como a sra Dona Petronilha, aparecera no Periódico dos Pobres, de 3 de outubro de 1854, com a assinatura J. M. M. Assis.; em 6 de janeiro de 1855 A Marmota Fluminense, de Francisco Paula Brito, estampara “A palmeira” e em 12 de janeiro “Ela”, até então consideradas as peças pioneiras (denota-se como em Machado nem tudo é definitivo e corriqueiro, as coisas mudam e oferecem volta e meia novas versões)]; de outro lado, pelo fato de ser ele anda ‘um ilustre desconhecido’ e sobretudo por ser um texto de gênero absolutamente indefinido — não é romance, não é conto, não novela, não crônica, não poesia, não teatro : aproxima-se mais do ensaio (filosófico) .Machado, ‘a la Machado’, teria optado por aparecer como tradutor. Inclusive porque sempre foi (e é) difícil encontrar, comprovar e certificar-se de muitas das traduções feitas por ele – são quase mistério, um permanente desafio a críticos, pesquisadores e estudiosos.
Convém assinalar que nesse mesmo ano de 1859, A Marmota publicou, também em folhetins, dois textos literários muito peculiares no que tange a Machado. De 10 maio a 30 agosto, o conto “Bagatela”, com uma nota inicial informando “O sr. Machado de Assis cujo nome e de cujas produções literárias já os nossos leitores têm conhecimento, pelo que de sua pena se tem publicado, mimoseou-nos com a seguinte tradução,que muito lhe agradecemos, cujo trabalho não é,como o título diz, uma Bagatela”. No entanto, o mesmo Jean-Michel Massa, diferentemente do que sustenta para Queda..., sugere no caso não tratar–se de tradução porquanto reúne elementos suficientes para ser uma criação original, e não uma versão – no melhor estilo da sutileza machadiana. Massa, desconfiado, realizou intensa pesquisa, consultando primeiramente “os melhores especialistas do conto fantástico (M.M. Castex, Vax, Stragliati, M. Versians)” e nenhum deles tinha a menor referência sobre esse texto; depois, buscando localizar na Biblioteca Nacional de Paris o conto entre as principais obras nada menos que 19 obras publicadas entre 1842 e 1859 e em 3 coletâneas de contos fantásticos —da mesma forma nada encontrando. Em última instância, Massa supõe que o conto possa ter sido publicado numa revista literária francesa de pouca importância e algo obscura, da qual não restam exemplares ou registros bibliográficos [J-M. Massa, Dispersos de Machado de Assis, INL, Rio de Janeiro, 1965].
Em contrapartida, a caracterizar de modo insofismável o quanto de ambíguo, dúbio e especulativo pode ser muito do que se refere a Machado, apareceu em A Marmota, de 17 maio a 4 novembro, a novela intitulada “Madalena”, apresentado como “romance original de M.de A.” [sic] — assinatura interpretada como sendo “Machado de Assis’. “Madalena” inclui-se no rol daqueles textos “atribuídos a Machado” (quer por José Galante de Souza, quer por Raymundo Magalhães Junior), sem oferecer a necessária certeza , ao contrário levanta dúvidas porquanto a assinatura poderia ser de (Manuel Duarte)Moreira de Azevedo, colaborador de A Marmota e do Jornal das Famílias, escritor que em 1860 publicaria um romance com este título, de acordo com o Dicionário Bibliográfico Brasileiro (1900), de Sacramento Blake — e o texto publicado em A Marmota de 1859 tem forma narrativa, estilo e linguagem semelhantes aos de Moreira de Azevedo em outros escritos seus.
Em se tratando de Machado, sabemos tudo ser possível — o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o escrito pelo não-escrito. Nada como esses exemplos para alimentarem especulações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda... — a rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de Machado — mas de várias outras obras, entre pseudônimos e anonimatos, dúvidas e mistérios, sutilezas e enigmas, disfarces e subterfúgios.
Mestre dessas ‘artes’, Machado utilizou-as à exaustão, como meios e instrumentos de disfarce, a par dos pseudônimos — foram quase 40 assinaturas em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma assinatura diferente para cada capítulo) e em crônicas. O anonimato iniciado em 1861 com Queda..., em seguida praticado em um texto publicado em quatro folhetins, de 14 maio a 18 junho, em A Semana Ilustrada, intitulado “Conversas com as mulheres”, atingiu seu auge na série “Bons Dias!”, conjunto seqüencial de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias de abril 1888 a agosto 1889 — porque somente descoberto e revelado na década de 1950, por J. Galante de Souza, vale dizer cerca de 70 anos depois (!).
Mistério e enigmas, aliás, não faltam na obra e na carreira literária de Machado. Em Machado, pressente-se sempre que há alguma coisa mais oculta, sem se saber exatamente o quê — e nada, absolutamente nada, o explica satisfatoriamente. Sente-se que existe sempre algo a descobrir no enigma do criador de uma obra de ficção tão importante quanto a dos grandes mestres dos séculos XIX e XX, como Balzac, Stendhal, Flaubert, Proust.
Por outro lado, os que admitem ser efetivamente tradução — como Mario de Alencar (ligadíssimo a Machado), em 1909, e recentemente Ubiratan Machado [3], ainda assim mantêm suas dúvidas, de resto extensivas a essa dificuldade na localização de traduções efetivamente realizadas por Machado e, importante saber, ao fato de Machado simplesmente suprimir seu nome como tradutor em alguns trabalhos: Mario de Alencar, no texto de Apresentação da edição de peças teatrais de Machado [4] registra:
“também não foi possível descobrir das traduções que ele fez senão ‘O suplício de uma mulher’, em cópia manuscrita doada com outros papeis à Academia Brasileira. As traduções teriam lugar nesta coleção, como trabalhos que deviam ser compostos com o esmero literário peculiar a toda obra escrita por Machado de Assis. Não coligi todavia ‘O suplício de uma mulher’, atendendo à circunstância de estar riscado na cópia referida o nome do tradutor, o que pareceu indicar a sua intenção de não dar a obra à publicidade em livro,ou talvez a sua opinião de não a ter literalmente acabado”.
Daí, quem garante Queda que as mulheres têm para os tolos ser mesmo uma tradução feita por Machado, ou mais um de seus subterfúgios? E cá entre nós e para nós, a versão considerada por mais de um século é muito mais, digamos, ’charmosa’, muito mais — não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado. Pois não é essa, a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado? Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’ — e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante. Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ — presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos: binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou — sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz [5], “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”. Machado de Assis é o grande autor do romance psicológico brasileiro do século XIX e do início do século XX.
Desde o início de sua criação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, mormente depois do romance Iaiá Garcia, em que o poder de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma expressiva, o conceito freudiano do desejo inconsciente. Machado foi muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade: criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas mas sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado que muitas vezes aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
A essencial temática de Machado de Assis consistia em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções,expressões e reações no comportamento humano . Tinha em vista um prisma polêmico: superar as simplificações mecanicistas praticada pelos epígonos do Naturalismo no final do século XIX, propondo radical e consistente denúncia contra mistificações e imposturas. Possuía uma maneira própria de ver, representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas, tramáticas e de linguagem criando e intertextualizando — que de resto não se ajusta às definições comuns dos gêneros literários, como no caso a ‘indefinição’ genética de Queda que as mulheres têm para os tolos.
A literatura de Machado – nos moldes de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz — traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algumas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressureição, em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita.
Nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis — nem Joaquim Manuel de Macedo (de A Moreninha e em inúmeros contos), José de Alencar (notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além das novelas A viuvinha, Cinco minutos, A pata da gazela, Sonhos d`ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio (com Luzia Homem), nem Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo, Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”).
Machado escrevia sobre mulheres e para mulheres: parece mesmo que tinha certa preferência em escrever para publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias, de 1864 a 1876, e a partir de 1879 em A Estação. Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos — como “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência”, “Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum — podendo mesmo serem catalogado como ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme.
Suas mulheres ficcionais — orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas — “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”. E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances, Machado trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua temática essencial. Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada : em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à família, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e principalmente, o marido. Daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ).
Pretenderia Machado de Assis o matriarcado? Assim especulam muitos dos estudiosos de sua obra, para os quais ele era mesmo ‘feminista’ — e a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Sobretudo por seu explícito, e corajoso, reconhecimento das necessidades emocionais, econômicas e sexuais da mulher — exposto em romances e contos. Importante notar, como que a reciclagem de um processo desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressureição, em 1872), em seu último romance, sua obra conclusiva — Memorial de Aires — a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual impulsionada pelo desejo — como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada — como Fidelia e Carmo. Não mais as machadianas sedutoras, ambiciosas, dissimuladas, ‘oblíquas’ — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
Obssessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “coisas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira — reclusa e dominada, doméstica e servil — era ‘anulada’ por sua própria condição feminina: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899). Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” — traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo — que se constitui num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Entre os vários e relevantes elementos por meio dos quais Queda que as mulheres têm para os tolos prenuncia, integra-se e intertextualiza-se com diversas obras machadiana,entre eles a ironia, o sarcasmo, a sutileza, a finura psicológica, o vocativo ao leitor, vale destacar o que se pode denominar de ‘diplomacia amorosa’ — expressa pela tríade tolo — mulher — homem de espírito que permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado.
A trindade habita intensamente, como protagonista, a maioria dos contos do ciclo 1858 (data do inaugural “Três tesouros perdidos”) — 1871 (época do excepcional “Mariana”), mormente nos contos “Confissões de uma viúva moça”,“Fernando e Fernanda”, “A felicidade pelo casamento” , “O anjo Rafael”, “A mulher de preto”, “Linha reta e linha curva”,“Miss Dolar”, “Ernesto de Tal”, “O machete”, “Aires e Vergueiro”, “Antes que cases”, e em todos os contos do período 1872-79. A tríade está nos romances Ressureição, A mão e a luva e Helena, anuncia-se algo transformada na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas (quando surge consistentemente o cético, oriundo do homem de espírito transformado), reaparece em Quincas Borba, e, sob enfática perspectiva ,em Dom Casmurro, por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires (o cético atingindo seu cume no Conselheiro Aires) — e na última obra, a seara da redenção total da mulher machadiana (protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.
Os tolos são, via de regra, frívolos, estróinas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções e relacionamento sociais e por acreditarem numa vida além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais — mas se verá que ao longo do tempo e dos contos [e aqui convém lembrar o quanto os contos se constituíram de terreno e instrumento de experimentação, como meio fundamental do processo de evolução ficcional de Machado até a ‘inflexão’ do final da década de 1870/início de 1880, cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos de Machado[6], numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer, assumir uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis-à-vis com a desilusão com as possibilidades da vida moral e transmutar-se no cético [7].
A transformação do homem de espírito se dá no cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana. Não obstante o ‘aviso’ dado em Queda..., alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução — embora o narrador insinue ser um meio ingênuo — para depois trilhar caminhos mais audaciosos, o casamento por interesse ou conveniência (como forma de ascensão social — tema presente nos três primeiros romances e na maioria dos contos no decênio 1860-70) passando a ser não apenas um empecilho à concretização desse amor romântico — o casamento como elemento da razão, o amor como expressão do sentimento — as a mola propulsora da destruição, o problema deixando de ser visto dentro dos termos de relações de classes e passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal da própria condição humana. Não por acaso em 1871 — um ano extrema e significativamente marcante na história brasileira do século XIX e na própria historiografia literária: o pano de fundo histórico-literário se altera, o Romantismo hegemônico no II Reinado está em vias de extinção, anuncia-se o Naturalismo, o cenário político-social aponta para outros horizontes, o próprio Império dá sinais de fragmentação e derrocada, ivencia-se um período de forte turbulência, ebulição e complexidade, avizinham-se a Abolição e a República — Machado começa a apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e mulheres) tendo de viver sujeitos a valores sociais que lhes são impostos e dos quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente desenvolvido nas obras posteriores ; processo que o autor arrador protagoniza no homem de espírito-personagem, que passa do alheamento e distanciamento,da desesperança e da desilusão às gradativas adaptação e interação com a realidade, daí assumindo postura reflexiva e consciente, por fim transformando-se no cético — schopenhaueriano (de Schopenhauer), mas também e principalmente shandiano e menipéico [8] da obra machadiana pós-1880. Ceticismo que ,sabemos, é o fundamento da ficção machadiana [9], o desenvolvimento progressivo e cronológico da perspectiva cética delineando os caminhos (e atalhos) da própria evolução literária de Machado.
Se o macro-universo do entorno se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo: Machado pressente os novos tempos, convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos do grande salto que virá no final dessa década, altera seu enfoque, sua temática, sua linguagem, seu estilo, sua estética literária — a começar pelos novos perfis dados a dois dos vértices do triângulo. Apenas dois, porque o tolo continuará com sua frivolidade e estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica. De um lado, o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher — recusando terminante e objetivamente aquelas que fingem e ostentam--caminha da contemplação para o ceticismo; de outro, a senhorinha ingênua, namoradeira, festeira, ‘casamenteira’(por interesse ou conveniência) cede lugar, primeiro à mulher matrimonial (por sentimento ou segurança), voltada para a vida íntima, para “a paz doméstica”, tornando-se depois — pelo rompimento gradativo dessa paz e a fragilidade dessa vida doméstica — vulnerável à “vida exterior”, “estratégica”, dual, determinada, paradoxal, adúltera, culminante na ‘obliquidade’ e dissimulação da incerta Capitu.
A ‘nova’ mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo (com quem se casou) e passa a se inclinar para o homem de espírito (de quem é amante). Machado, como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos, interfere no processo: o que o homem de espírito não logrou — modificar a natureza das mulheres — nem o narrador obteve — até porque nesse momento/processo o narrador onisciente e onipotente abre mão de suas ‘prerrogativas’ — o autor, aqui na qualidade do denominado “autor intruso” (que se intromete na relação do narrador com os personagens), o faz, porém, como sempre em toda sua obra ficcional, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher — quer a antiga quer a atual — e deixa-lhe a responsabilidade do julgamento conclusivo. A ele cabe dizer afinal o que pensam/querem as mulheres. Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês: Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado, conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi, quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos, quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado. Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais, visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto — ambigüidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda... e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.
Por outro lado, ao se examinar alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis [10], denota-se que em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor na carreira de um escritor. Machado em sua ação tradutória não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo — o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” — colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução — na verdade, um processo criador — que, entre outros aspectos, incorporava em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” — segundo a qual "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica.": vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’, ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém — reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada. Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, Machado desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’, como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas, foi ele também um precursor.
Tenha sido tradução ou não — em ambos os casos, manifesto eloqüente de criatividade de Machado — queda que as mulheres têm para os tolos ultrapassa os limites de seu próprio significado histórico, como obra debutante e reveladora para, estabelecendo elos e decorrências na atividade tradutória, na criação ficcional, na inspiração teatral, abrindo e fechando ciclos temáticos, oferecendo todas as possibilidades de análise, interpretação e reflexão, contextualizar-se na fértil e enorme seara da genialidade de Machado de Assis como uma das expressões mais proeminentes de verdadeira transcendência literária.
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[1] no prefácio escrito para a edição da ABL, de 1943 , Afrânio Peixoto menciona , com inteira aprovação, a tese de Lúcia Miguel-Pereira segundo quem a Queda...já mostrava, em esboço, a “Teoria do medalhão”, um dos contos mais característicos da última fase de Machado, daí tratar-se mesmo de um escrito original, e não uma tradução
[2] Massa teria tido acesso, segundo ele, à 4ª. edição da obra de Henaux, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris. Jean-Michel Massa, Machado de Assis traducteur ; s.ed.*, Coimbra, 1966: o exemplar arquivado no Real Gabinete Português de Leitura,no Rio de Janeiro — uma “Separata do vol. IV das Atas do V Colóquio Internacional de estudos Luso-Brasileiros” -- registra “composto e impresso na Gráfica Coimbra”
[3] Ubiratan Machado, Machado de Assis, uma revisão ; ed. In-Folio, Rio de Janeiro ,1998.
[4] Machado de Assis, Teatro, org. Mario de Alencar, B.L.Garnier Editor, Rio de Janeiro, 1909
[5] Roberto Schwarz,“Mesa redonda”, in Bosi, Alfredo et alli, Machado de Assis ; ed.Ática, São Paulo, 1982
[6] a divisão da obra de Machado em duas fases ,apontada pela maioria dos críticos e estudiosos com base em critérios diversos – do chamado ‘pessimismo filosófico’ às técnicas literárias presentes nos escritos pós-1880 (em especial,segundo Enylton de Sá Rego a característica “unreliability” do narrador -- reúne avaliações concordes e discordes, parecendo apropriada a uns, como p. ex. Helen Caldwell em seu livro The Brazilian Othello of Machado de Assis [1960,p.161], e inadequada a outros, que acentuam – com o que concordo inteiramente -- a continuidade da obra (ficcional e não-ficcional)de Machado, como Silviano Santiago[2000,p.27] ao sustentar “(...) já ser o tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado,... à medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas”, como Alfred MacAdam no livro Modern Latin American Narratives : The Drams of Reason [1977,pp. 1-28] e nos artigos “Machado de Assis : an Introduction to Latin American Satire” [in Revista Hispânica Moderna,37:180-7;1972-73] e “Rereading Ressureição” [in Luso-Brazilian Review,9:47-57,1973],até mesmo Maria Luisa Nunes em The Craft of na Absolute Winner [1983,p.64] que embora faça distinção da obra machadiana em “early works” e “later novels” sustenta “não haver dicotomia radical entre os primeiros romances e os cinco últimos”.
[7] a bem da verdade, registre-se que não havia como escapar,nos tempos do Império, da ‘ideologia’ moral-social que fazia o amor prisioneiro do casamento,o qual possibilitava a constituição da família: amar era casar , era adquirir título de propriedade – e para passar do amor ao casamento homens e mulheres tinham de se entregar a jogos sociais,cujas formas e modos se davam por posições opostas dentro da sociedade . o homem,por definição livre, submetia-se a ‘perda de liberdade’ , prendia-se à opção ‘racional’ do casamento; a mulher, prisioneira e submissa, via no amor (sentimento) um meio de libertar-se, para isso utilizando a característica primordial da mulher machadiana : a dissimulação. O tolo aceitava e praticava esses jogos, ao homem de espírito era impossível por sua formação e natureza.
[8] mister enfatizar que as drásticas mudanças temática, estilística e de linguagem realizadas por Machado no final da década de 1870/início da década de 1880 -- concretizando o grande salto literário de sua obra e criando uma linguagem ficcional e não-ficcional diferenciada, mescla do humor e da seriedade, do sarcasmo e da crítica social e política, do riso e do tédio, “da pena da galhofa e da tinta da melancolia” -- teve como instrumentos e ferramentais a forma shandiana e o shandismo [cf. Wbster`s International Dictionary , "shandean", "aquele que tem o espírito de Tristan Shandy"; "shandysm", "a filosofia de Tristan Shandy"- em referência à obra A vida e as opiniões de Tristam Shandy, um cavalheiro, de Laurence Sterne ] , para se utilizar da expressão magistralmente criada por Sergio Paulo Rouanet, inerente tanto ao romance e a contos como a crônicas. a expressão, hoje comum e consensual no meio da machadologia (e da machadofilia), define uma forma literária, que vindo de Sterne, de Xavier de Maistre, Almeida Garret e Denis Diderot,adquire em Machado sua substância mais consistente,simbiótica e conclusiva, inclusive dando a essa forma literária seus contornos e conteúdo definitivos. à forma shandiana estão associadas – não de modo genérico e onipresente , porquanto válido em algumas obras e autores, em outros não – a sátira menipéia(cuja origem está em Marco Terêncio Varrão ,116 a 27 a.C., com Saturae Menippeae: : o adjetivo menipéia provém de Menipo de Gadara, filósofo da escola dos cínicos, que viveu no século III a.C. e escreveu muito, mas nada nos chegou ) e a tradição luciânica( de Luciano de Samósata, um poeta da sátira menipéia, de espírito trocista) ), originadas de uma tradição grega, dos diálogos socráticos, que mesclam temas especificamente filosóficos com assuntos de retórica e dialética, eivados de hilaridade, comicidade e ironia: na duplicidade sério-cômico,abriga o popular, o erudito, o burlesco, tornando-se p. ex. um dos elementos basilares da carnavalização conceituada por Mikhail Bakhtin . Na obra machadiana a partir da década de 1880 denota-se a presença marcante de manifestações da sátira menipéia, como a paródia, o subterfúgio, a profanação, o disfarce e, em especial, a ‘desconstrução’ de formas literárias – presentes preponderantemente nos cinco romances finais .. a par de as características capitais associadas à tradição da sátira menipéia – extrema dificuldade de classificação genérica; caráter parodístico ; ponto de vista irônico e cético – serem justamente aquelas mais presentes em Queda..., assim como na denominada segunda fase romanesca , o livro inicial abriga questões em torno das quais gravitam importantes discussões sobre a obra machadiana e estabelece outro feixe de elos com a ficção posterior de Machado , em especial com o quinteto romanesco : a) a que gênero literário pertencem (Queda... e os romances Memórias póstumas de Brás Cubas,Quincas Borba, Dom Casmurro,Esaú e Jacó e Memorial de Aires)? b) como classificar de um lado, Queda..., na literatura do romantismo da década de 1860, de outro os cinco romances nas tendências dominantes na ficção brasileira e ocidental do final do século XIX ? c) como enquadrar os textos de Machado, ao parodiarem (no caso de Queda..., supostamente traduzindo) escritores e obras de literaturas estrangeiras, numa ‘tradição’ literária nacional brasileira? d) qual o significado do ceticismo/pessimismo filosófico de Machado, latente em Queda... e absolutamente hegemônico nos romances finais ?
[9] na última crônica escrita em 1897(em 28.02), na série “A Semana” para a Gazeta de Notícias, Machado expressa enfaticamente uma distinção entre ceticismo e pessimismo : “(...) não achareis linha cética nestas minhas conversações dominicais.Se destes com alguma que se possa dizer pessimista,adverte que nada há mais oposto ao ceticismo. Achar que uma coisa é ruim,não é duvidar dela, mas afirmá-la.O verdadeiro cético não crê, como o dr. Pangloss, que os narizes se fizeram para os óculos,nem, como eu, que os óculos é que se fizeram para os narizes ; o cético verdadeiro descrê de uns e de outros (...)”.[1937,v.26,pp.439-40]
[10] Jean-Michel Massa [in Machado de Assis traducteur] relaciona 48 textos traduzidos por Machado entre 1856 e 1894: estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e logo depois com o texto “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine,em 1857,seguiram-se 16 peças de teatro (a primeira, “La chasse au lion”, de Vattier et De Najac ), 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto , 1 fábula e até 1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (ambos a partir de versões francesas) — p. ex. o Canto XX do “Inferno”, da Divina Comédia , de Dante , monólogo de Hamlet “To be or not to be”, de William Shakespeare , Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, parte de Oliver Twist. , de Charles Dickens, “Suplício de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile de Girardin , “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine, “O corvo”, de Edgar Allan Poe.
rosso.mauro@gmail.com
Escritor, professor e pesquisador de literatura brasileira
“Ano Machado de Assis”, estabelecido oficialmente – embora saibamos o quanto seu nome e grandiosidade se encontrarem acima e além de efemérides e circunstâncias de momento. No ano do centenário de morte, convém uma longa (e importante) viagem no tempo e reportar ao Machado de seu primeiro livro publicado e anunciadorprenunciador de tudo que viria depois.
“(...) na obra de Machado de Assis, toda conclusão do leitor é um risco, porque nela o sentimento do mistério se traduz por um desencanto aparentemente desapaixonado, mas que abre a porta dos sentidos alternativos e transforma toda noção em ambigüidades” (Antonio Candido)
Queda que as mulheres têm para os tolos veio a lume no ano de 1861, originalmente publicada na revista A Marmota Fluminense, em cinco números sucessivos: 19, 23, 26, 30 de abril e 03 de maio, e no mesmo ano em livro, um opúsculo de 43 páginas, formato 16 x 12 cm, pela Typographia de Paula Brito. Ao longo do tempo, sucederam-se a edição de 1936, pela Editorial W.M.Jackson Inc, na Coleção Machado de Assis, vol. 22, e a edição de 1943 (fac-similada) pela Academia Brasileira de Letras, na coletânea Ensaios I. Tanto nos folhetins como nos volumes editados aparece sob a indicação de “tradução de Machado de Assis”, sem informar no entanto o nome do autor original.
Estudiosos e pesquisadores de Machado de Assis sustentam, todavia, tratar-se de um trabalho original [1], disfarçado em tradução por ‘timidez’ do autor, mas o ensaísta (e machadófilo) francês Jean-Michel Massa defendeu, recentemente, ser uma tradução do panfleto publicado anonimamente pela editora F. Renard de Liège, em 1859, com o título “De l`amour des femmes pour les sots”, atribuído posteriormente ao belga Victor Henaux — ainda que estranho seja o fato de apenas citar a obra, sem maiores detalhes, em seu livro Machado de Assis traducteur [2] , tratando dessa e de outras 47 supostas traduções de Machado [diz-se “supostas”, grafado, nem tudo em Machado é plenamente confirmado, principalmente em se tratando de traduções].
O disfarce concebido por Machado, segundo os que asseguram ser uma criação e não tradução – por ‘timidez’ do autor — seria mais um dos inúmeros subterfúgios machadianos: de um lado, por ser Queda... sua primeiríssima obra publicada, em 1861 [mas é bom notar que de sua autoria o poema “Sonetos”, dedicado a uma misteriosa "Ilma. Sra. D.P.J.A." , identificada muito tempo depois como a sra Dona Petronilha, aparecera no Periódico dos Pobres, de 3 de outubro de 1854, com a assinatura J. M. M. Assis.; em 6 de janeiro de 1855 A Marmota Fluminense, de Francisco Paula Brito, estampara “A palmeira” e em 12 de janeiro “Ela”, até então consideradas as peças pioneiras (denota-se como em Machado nem tudo é definitivo e corriqueiro, as coisas mudam e oferecem volta e meia novas versões)]; de outro lado, pelo fato de ser ele anda ‘um ilustre desconhecido’ e sobretudo por ser um texto de gênero absolutamente indefinido — não é romance, não é conto, não novela, não crônica, não poesia, não teatro : aproxima-se mais do ensaio (filosófico) .Machado, ‘a la Machado’, teria optado por aparecer como tradutor. Inclusive porque sempre foi (e é) difícil encontrar, comprovar e certificar-se de muitas das traduções feitas por ele – são quase mistério, um permanente desafio a críticos, pesquisadores e estudiosos.
Convém assinalar que nesse mesmo ano de 1859, A Marmota publicou, também em folhetins, dois textos literários muito peculiares no que tange a Machado. De 10 maio a 30 agosto, o conto “Bagatela”, com uma nota inicial informando “O sr. Machado de Assis cujo nome e de cujas produções literárias já os nossos leitores têm conhecimento, pelo que de sua pena se tem publicado, mimoseou-nos com a seguinte tradução,que muito lhe agradecemos, cujo trabalho não é,como o título diz, uma Bagatela”. No entanto, o mesmo Jean-Michel Massa, diferentemente do que sustenta para Queda..., sugere no caso não tratar–se de tradução porquanto reúne elementos suficientes para ser uma criação original, e não uma versão – no melhor estilo da sutileza machadiana. Massa, desconfiado, realizou intensa pesquisa, consultando primeiramente “os melhores especialistas do conto fantástico (M.M. Castex, Vax, Stragliati, M. Versians)” e nenhum deles tinha a menor referência sobre esse texto; depois, buscando localizar na Biblioteca Nacional de Paris o conto entre as principais obras nada menos que 19 obras publicadas entre 1842 e 1859 e em 3 coletâneas de contos fantásticos —da mesma forma nada encontrando. Em última instância, Massa supõe que o conto possa ter sido publicado numa revista literária francesa de pouca importância e algo obscura, da qual não restam exemplares ou registros bibliográficos [J-M. Massa, Dispersos de Machado de Assis, INL, Rio de Janeiro, 1965].
Em contrapartida, a caracterizar de modo insofismável o quanto de ambíguo, dúbio e especulativo pode ser muito do que se refere a Machado, apareceu em A Marmota, de 17 maio a 4 novembro, a novela intitulada “Madalena”, apresentado como “romance original de M.de A.” [sic] — assinatura interpretada como sendo “Machado de Assis’. “Madalena” inclui-se no rol daqueles textos “atribuídos a Machado” (quer por José Galante de Souza, quer por Raymundo Magalhães Junior), sem oferecer a necessária certeza , ao contrário levanta dúvidas porquanto a assinatura poderia ser de (Manuel Duarte)Moreira de Azevedo, colaborador de A Marmota e do Jornal das Famílias, escritor que em 1860 publicaria um romance com este título, de acordo com o Dicionário Bibliográfico Brasileiro (1900), de Sacramento Blake — e o texto publicado em A Marmota de 1859 tem forma narrativa, estilo e linguagem semelhantes aos de Moreira de Azevedo em outros escritos seus.
Em se tratando de Machado, sabemos tudo ser possível — o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o escrito pelo não-escrito. Nada como esses exemplos para alimentarem especulações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda... — a rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de Machado — mas de várias outras obras, entre pseudônimos e anonimatos, dúvidas e mistérios, sutilezas e enigmas, disfarces e subterfúgios.
Mestre dessas ‘artes’, Machado utilizou-as à exaustão, como meios e instrumentos de disfarce, a par dos pseudônimos — foram quase 40 assinaturas em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma assinatura diferente para cada capítulo) e em crônicas. O anonimato iniciado em 1861 com Queda..., em seguida praticado em um texto publicado em quatro folhetins, de 14 maio a 18 junho, em A Semana Ilustrada, intitulado “Conversas com as mulheres”, atingiu seu auge na série “Bons Dias!”, conjunto seqüencial de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias de abril 1888 a agosto 1889 — porque somente descoberto e revelado na década de 1950, por J. Galante de Souza, vale dizer cerca de 70 anos depois (!).
Mistério e enigmas, aliás, não faltam na obra e na carreira literária de Machado. Em Machado, pressente-se sempre que há alguma coisa mais oculta, sem se saber exatamente o quê — e nada, absolutamente nada, o explica satisfatoriamente. Sente-se que existe sempre algo a descobrir no enigma do criador de uma obra de ficção tão importante quanto a dos grandes mestres dos séculos XIX e XX, como Balzac, Stendhal, Flaubert, Proust.
Por outro lado, os que admitem ser efetivamente tradução — como Mario de Alencar (ligadíssimo a Machado), em 1909, e recentemente Ubiratan Machado [3], ainda assim mantêm suas dúvidas, de resto extensivas a essa dificuldade na localização de traduções efetivamente realizadas por Machado e, importante saber, ao fato de Machado simplesmente suprimir seu nome como tradutor em alguns trabalhos: Mario de Alencar, no texto de Apresentação da edição de peças teatrais de Machado [4] registra:
“também não foi possível descobrir das traduções que ele fez senão ‘O suplício de uma mulher’, em cópia manuscrita doada com outros papeis à Academia Brasileira. As traduções teriam lugar nesta coleção, como trabalhos que deviam ser compostos com o esmero literário peculiar a toda obra escrita por Machado de Assis. Não coligi todavia ‘O suplício de uma mulher’, atendendo à circunstância de estar riscado na cópia referida o nome do tradutor, o que pareceu indicar a sua intenção de não dar a obra à publicidade em livro,ou talvez a sua opinião de não a ter literalmente acabado”.
Daí, quem garante Queda que as mulheres têm para os tolos ser mesmo uma tradução feita por Machado, ou mais um de seus subterfúgios? E cá entre nós e para nós, a versão considerada por mais de um século é muito mais, digamos, ’charmosa’, muito mais — não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado. Pois não é essa, a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado? Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’ — e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante. Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ — presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos: binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou — sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz [5], “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”. Machado de Assis é o grande autor do romance psicológico brasileiro do século XIX e do início do século XX.
Desde o início de sua criação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, mormente depois do romance Iaiá Garcia, em que o poder de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma expressiva, o conceito freudiano do desejo inconsciente. Machado foi muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade: criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas mas sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado que muitas vezes aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
A essencial temática de Machado de Assis consistia em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções,expressões e reações no comportamento humano . Tinha em vista um prisma polêmico: superar as simplificações mecanicistas praticada pelos epígonos do Naturalismo no final do século XIX, propondo radical e consistente denúncia contra mistificações e imposturas. Possuía uma maneira própria de ver, representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas, tramáticas e de linguagem criando e intertextualizando — que de resto não se ajusta às definições comuns dos gêneros literários, como no caso a ‘indefinição’ genética de Queda que as mulheres têm para os tolos.
A literatura de Machado – nos moldes de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz — traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algumas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressureição, em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita.
Nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis — nem Joaquim Manuel de Macedo (de A Moreninha e em inúmeros contos), José de Alencar (notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além das novelas A viuvinha, Cinco minutos, A pata da gazela, Sonhos d`ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio (com Luzia Homem), nem Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo, Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”).
Machado escrevia sobre mulheres e para mulheres: parece mesmo que tinha certa preferência em escrever para publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias, de 1864 a 1876, e a partir de 1879 em A Estação. Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos — como “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência”, “Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum — podendo mesmo serem catalogado como ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme.
Suas mulheres ficcionais — orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas — “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”. E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances, Machado trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua temática essencial. Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada : em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à família, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e principalmente, o marido. Daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ).
Pretenderia Machado de Assis o matriarcado? Assim especulam muitos dos estudiosos de sua obra, para os quais ele era mesmo ‘feminista’ — e a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Sobretudo por seu explícito, e corajoso, reconhecimento das necessidades emocionais, econômicas e sexuais da mulher — exposto em romances e contos. Importante notar, como que a reciclagem de um processo desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressureição, em 1872), em seu último romance, sua obra conclusiva — Memorial de Aires — a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual impulsionada pelo desejo — como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada — como Fidelia e Carmo. Não mais as machadianas sedutoras, ambiciosas, dissimuladas, ‘oblíquas’ — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
Obssessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “coisas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira — reclusa e dominada, doméstica e servil — era ‘anulada’ por sua própria condição feminina: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899). Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora. Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” — traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo — que se constitui num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Entre os vários e relevantes elementos por meio dos quais Queda que as mulheres têm para os tolos prenuncia, integra-se e intertextualiza-se com diversas obras machadiana,entre eles a ironia, o sarcasmo, a sutileza, a finura psicológica, o vocativo ao leitor, vale destacar o que se pode denominar de ‘diplomacia amorosa’ — expressa pela tríade tolo — mulher — homem de espírito que permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado.
A trindade habita intensamente, como protagonista, a maioria dos contos do ciclo 1858 (data do inaugural “Três tesouros perdidos”) — 1871 (época do excepcional “Mariana”), mormente nos contos “Confissões de uma viúva moça”,“Fernando e Fernanda”, “A felicidade pelo casamento” , “O anjo Rafael”, “A mulher de preto”, “Linha reta e linha curva”,“Miss Dolar”, “Ernesto de Tal”, “O machete”, “Aires e Vergueiro”, “Antes que cases”, e em todos os contos do período 1872-79. A tríade está nos romances Ressureição, A mão e a luva e Helena, anuncia-se algo transformada na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas (quando surge consistentemente o cético, oriundo do homem de espírito transformado), reaparece em Quincas Borba, e, sob enfática perspectiva ,em Dom Casmurro, por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires (o cético atingindo seu cume no Conselheiro Aires) — e na última obra, a seara da redenção total da mulher machadiana (protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.
Os tolos são, via de regra, frívolos, estróinas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções e relacionamento sociais e por acreditarem numa vida além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais — mas se verá que ao longo do tempo e dos contos [e aqui convém lembrar o quanto os contos se constituíram de terreno e instrumento de experimentação, como meio fundamental do processo de evolução ficcional de Machado até a ‘inflexão’ do final da década de 1870/início de 1880, cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos de Machado[6], numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer, assumir uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis-à-vis com a desilusão com as possibilidades da vida moral e transmutar-se no cético [7].
A transformação do homem de espírito se dá no cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana. Não obstante o ‘aviso’ dado em Queda..., alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução — embora o narrador insinue ser um meio ingênuo — para depois trilhar caminhos mais audaciosos, o casamento por interesse ou conveniência (como forma de ascensão social — tema presente nos três primeiros romances e na maioria dos contos no decênio 1860-70) passando a ser não apenas um empecilho à concretização desse amor romântico — o casamento como elemento da razão, o amor como expressão do sentimento — as a mola propulsora da destruição, o problema deixando de ser visto dentro dos termos de relações de classes e passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal da própria condição humana. Não por acaso em 1871 — um ano extrema e significativamente marcante na história brasileira do século XIX e na própria historiografia literária: o pano de fundo histórico-literário se altera, o Romantismo hegemônico no II Reinado está em vias de extinção, anuncia-se o Naturalismo, o cenário político-social aponta para outros horizontes, o próprio Império dá sinais de fragmentação e derrocada, ivencia-se um período de forte turbulência, ebulição e complexidade, avizinham-se a Abolição e a República — Machado começa a apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e mulheres) tendo de viver sujeitos a valores sociais que lhes são impostos e dos quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente desenvolvido nas obras posteriores ; processo que o autor arrador protagoniza no homem de espírito-personagem, que passa do alheamento e distanciamento,da desesperança e da desilusão às gradativas adaptação e interação com a realidade, daí assumindo postura reflexiva e consciente, por fim transformando-se no cético — schopenhaueriano (de Schopenhauer), mas também e principalmente shandiano e menipéico [8] da obra machadiana pós-1880. Ceticismo que ,sabemos, é o fundamento da ficção machadiana [9], o desenvolvimento progressivo e cronológico da perspectiva cética delineando os caminhos (e atalhos) da própria evolução literária de Machado.
Se o macro-universo do entorno se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo: Machado pressente os novos tempos, convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos do grande salto que virá no final dessa década, altera seu enfoque, sua temática, sua linguagem, seu estilo, sua estética literária — a começar pelos novos perfis dados a dois dos vértices do triângulo. Apenas dois, porque o tolo continuará com sua frivolidade e estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica. De um lado, o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher — recusando terminante e objetivamente aquelas que fingem e ostentam--caminha da contemplação para o ceticismo; de outro, a senhorinha ingênua, namoradeira, festeira, ‘casamenteira’(por interesse ou conveniência) cede lugar, primeiro à mulher matrimonial (por sentimento ou segurança), voltada para a vida íntima, para “a paz doméstica”, tornando-se depois — pelo rompimento gradativo dessa paz e a fragilidade dessa vida doméstica — vulnerável à “vida exterior”, “estratégica”, dual, determinada, paradoxal, adúltera, culminante na ‘obliquidade’ e dissimulação da incerta Capitu.
A ‘nova’ mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo (com quem se casou) e passa a se inclinar para o homem de espírito (de quem é amante). Machado, como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos, interfere no processo: o que o homem de espírito não logrou — modificar a natureza das mulheres — nem o narrador obteve — até porque nesse momento/processo o narrador onisciente e onipotente abre mão de suas ‘prerrogativas’ — o autor, aqui na qualidade do denominado “autor intruso” (que se intromete na relação do narrador com os personagens), o faz, porém, como sempre em toda sua obra ficcional, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher — quer a antiga quer a atual — e deixa-lhe a responsabilidade do julgamento conclusivo. A ele cabe dizer afinal o que pensam/querem as mulheres. Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês: Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado, conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista como nova fonte de teorização para a tradução”, a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi, quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos, quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado. Um elo a ligar ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais, visto por outros aspectos e ângulos: vai a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto — ambigüidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda... e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.
Por outro lado, ao se examinar alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis [10], denota-se que em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor na carreira de um escritor. Machado em sua ação tradutória não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo — o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” — colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução — na verdade, um processo criador — que, entre outros aspectos, incorporava em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” — segundo a qual "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica.": vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’, ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém — reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada. Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, Machado desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’, como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas, foi ele também um precursor.
Tenha sido tradução ou não — em ambos os casos, manifesto eloqüente de criatividade de Machado — queda que as mulheres têm para os tolos ultrapassa os limites de seu próprio significado histórico, como obra debutante e reveladora para, estabelecendo elos e decorrências na atividade tradutória, na criação ficcional, na inspiração teatral, abrindo e fechando ciclos temáticos, oferecendo todas as possibilidades de análise, interpretação e reflexão, contextualizar-se na fértil e enorme seara da genialidade de Machado de Assis como uma das expressões mais proeminentes de verdadeira transcendência literária.
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[1] no prefácio escrito para a edição da ABL, de 1943 , Afrânio Peixoto menciona , com inteira aprovação, a tese de Lúcia Miguel-Pereira segundo quem a Queda...já mostrava, em esboço, a “Teoria do medalhão”, um dos contos mais característicos da última fase de Machado, daí tratar-se mesmo de um escrito original, e não uma tradução
[2] Massa teria tido acesso, segundo ele, à 4ª. edição da obra de Henaux, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris. Jean-Michel Massa, Machado de Assis traducteur ; s.ed.*, Coimbra, 1966: o exemplar arquivado no Real Gabinete Português de Leitura,no Rio de Janeiro — uma “Separata do vol. IV das Atas do V Colóquio Internacional de estudos Luso-Brasileiros” -- registra “composto e impresso na Gráfica Coimbra”
[3] Ubiratan Machado, Machado de Assis, uma revisão ; ed. In-Folio, Rio de Janeiro ,1998.
[4] Machado de Assis, Teatro, org. Mario de Alencar, B.L.Garnier Editor, Rio de Janeiro, 1909
[5] Roberto Schwarz,“Mesa redonda”, in Bosi, Alfredo et alli, Machado de Assis ; ed.Ática, São Paulo, 1982
[6] a divisão da obra de Machado em duas fases ,apontada pela maioria dos críticos e estudiosos com base em critérios diversos – do chamado ‘pessimismo filosófico’ às técnicas literárias presentes nos escritos pós-1880 (em especial,segundo Enylton de Sá Rego a característica “unreliability” do narrador -- reúne avaliações concordes e discordes, parecendo apropriada a uns, como p. ex. Helen Caldwell em seu livro The Brazilian Othello of Machado de Assis [1960,p.161], e inadequada a outros, que acentuam – com o que concordo inteiramente -- a continuidade da obra (ficcional e não-ficcional)de Machado, como Silviano Santiago[2000,p.27] ao sustentar “(...) já ser o tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado,... à medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas”, como Alfred MacAdam no livro Modern Latin American Narratives : The Drams of Reason [1977,pp. 1-28] e nos artigos “Machado de Assis : an Introduction to Latin American Satire” [in Revista Hispânica Moderna,37:180-7;1972-73] e “Rereading Ressureição” [in Luso-Brazilian Review,9:47-57,1973],até mesmo Maria Luisa Nunes em The Craft of na Absolute Winner [1983,p.64] que embora faça distinção da obra machadiana em “early works” e “later novels” sustenta “não haver dicotomia radical entre os primeiros romances e os cinco últimos”.
[7] a bem da verdade, registre-se que não havia como escapar,nos tempos do Império, da ‘ideologia’ moral-social que fazia o amor prisioneiro do casamento,o qual possibilitava a constituição da família: amar era casar , era adquirir título de propriedade – e para passar do amor ao casamento homens e mulheres tinham de se entregar a jogos sociais,cujas formas e modos se davam por posições opostas dentro da sociedade . o homem,por definição livre, submetia-se a ‘perda de liberdade’ , prendia-se à opção ‘racional’ do casamento; a mulher, prisioneira e submissa, via no amor (sentimento) um meio de libertar-se, para isso utilizando a característica primordial da mulher machadiana : a dissimulação. O tolo aceitava e praticava esses jogos, ao homem de espírito era impossível por sua formação e natureza.
[8] mister enfatizar que as drásticas mudanças temática, estilística e de linguagem realizadas por Machado no final da década de 1870/início da década de 1880 -- concretizando o grande salto literário de sua obra e criando uma linguagem ficcional e não-ficcional diferenciada, mescla do humor e da seriedade, do sarcasmo e da crítica social e política, do riso e do tédio, “da pena da galhofa e da tinta da melancolia” -- teve como instrumentos e ferramentais a forma shandiana e o shandismo [cf. Wbster`s International Dictionary , "shandean", "aquele que tem o espírito de Tristan Shandy"; "shandysm", "a filosofia de Tristan Shandy"- em referência à obra A vida e as opiniões de Tristam Shandy, um cavalheiro, de Laurence Sterne ] , para se utilizar da expressão magistralmente criada por Sergio Paulo Rouanet, inerente tanto ao romance e a contos como a crônicas. a expressão, hoje comum e consensual no meio da machadologia (e da machadofilia), define uma forma literária, que vindo de Sterne, de Xavier de Maistre, Almeida Garret e Denis Diderot,adquire em Machado sua substância mais consistente,simbiótica e conclusiva, inclusive dando a essa forma literária seus contornos e conteúdo definitivos. à forma shandiana estão associadas – não de modo genérico e onipresente , porquanto válido em algumas obras e autores, em outros não – a sátira menipéia(cuja origem está em Marco Terêncio Varrão ,116 a 27 a.C., com Saturae Menippeae: : o adjetivo menipéia provém de Menipo de Gadara, filósofo da escola dos cínicos, que viveu no século III a.C. e escreveu muito, mas nada nos chegou ) e a tradição luciânica( de Luciano de Samósata, um poeta da sátira menipéia, de espírito trocista) ), originadas de uma tradição grega, dos diálogos socráticos, que mesclam temas especificamente filosóficos com assuntos de retórica e dialética, eivados de hilaridade, comicidade e ironia: na duplicidade sério-cômico,abriga o popular, o erudito, o burlesco, tornando-se p. ex. um dos elementos basilares da carnavalização conceituada por Mikhail Bakhtin . Na obra machadiana a partir da década de 1880 denota-se a presença marcante de manifestações da sátira menipéia, como a paródia, o subterfúgio, a profanação, o disfarce e, em especial, a ‘desconstrução’ de formas literárias – presentes preponderantemente nos cinco romances finais .. a par de as características capitais associadas à tradição da sátira menipéia – extrema dificuldade de classificação genérica; caráter parodístico ; ponto de vista irônico e cético – serem justamente aquelas mais presentes em Queda..., assim como na denominada segunda fase romanesca , o livro inicial abriga questões em torno das quais gravitam importantes discussões sobre a obra machadiana e estabelece outro feixe de elos com a ficção posterior de Machado , em especial com o quinteto romanesco : a) a que gênero literário pertencem (Queda... e os romances Memórias póstumas de Brás Cubas,Quincas Borba, Dom Casmurro,Esaú e Jacó e Memorial de Aires)? b) como classificar de um lado, Queda..., na literatura do romantismo da década de 1860, de outro os cinco romances nas tendências dominantes na ficção brasileira e ocidental do final do século XIX ? c) como enquadrar os textos de Machado, ao parodiarem (no caso de Queda..., supostamente traduzindo) escritores e obras de literaturas estrangeiras, numa ‘tradição’ literária nacional brasileira? d) qual o significado do ceticismo/pessimismo filosófico de Machado, latente em Queda... e absolutamente hegemônico nos romances finais ?
[9] na última crônica escrita em 1897(em 28.02), na série “A Semana” para a Gazeta de Notícias, Machado expressa enfaticamente uma distinção entre ceticismo e pessimismo : “(...) não achareis linha cética nestas minhas conversações dominicais.Se destes com alguma que se possa dizer pessimista,adverte que nada há mais oposto ao ceticismo. Achar que uma coisa é ruim,não é duvidar dela, mas afirmá-la.O verdadeiro cético não crê, como o dr. Pangloss, que os narizes se fizeram para os óculos,nem, como eu, que os óculos é que se fizeram para os narizes ; o cético verdadeiro descrê de uns e de outros (...)”.[1937,v.26,pp.439-40]
[10] Jean-Michel Massa [in Machado de Assis traducteur] relaciona 48 textos traduzidos por Machado entre 1856 e 1894: estreando com o poema “On the receipt of my mother’s picture” [“Minha mãe”], publicado como “uma imitação de William Cowper”, e logo depois com o texto “A literatura durante a Restauração”, de Lamartine,em 1857,seguiram-se 16 peças de teatro (a primeira, “La chasse au lion”, de Vattier et De Najac ), 24 poemas, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto , 1 fábula e até 1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol. — de autores, entre outros, como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (ambos a partir de versões francesas) — p. ex. o Canto XX do “Inferno”, da Divina Comédia , de Dante , monólogo de Hamlet “To be or not to be”, de William Shakespeare , Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, parte de Oliver Twist. , de Charles Dickens, “Suplício de uma mulher”, de Alexandre Dumas Filho e Emile de Girardin , “Prólogo do Intermezzo”, de Heinrich Heine, “O corvo”, de Edgar Allan Poe.
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