Graduado em Letras pela UFC
Especializado em Investigação Literária pela UFC
Mestre em Literatura Brasileira pela UFCQuando lançou Felicidade clandestina (1971), Clarice Lispector (1920-1977) já era uma escritora consagrada. Com vários romances, livros de contos e crônicas escritas para jornais, ela decide dar destino a um material já conhecido de seu público.
Os 25 contos ali enfeixados haviam saído em A legião estrangeira (1964) ou como crônicas para o Jornal do Brasil, onde Clarice manteve uma coluna semanal, de 1967 a 73, completando-se com As águas do mundo, um trecho do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Nenhum texto inédito, mas era como se fosse. O livro de 64 ofuscara-se pela publicação de A paixão segundo G. H., romance impactante, considerado uma de suas obras-primas, também de 64. Já as crônicas para jornal perdiam-se no tempo, levadas pelo imediatismo da edição do dia seguinte. Logo, o suporte do livro, ao retomar os textos, deu-lhes uma nova vida e uma permanência tão longeva quanto qualquer outra publicação da escritora, com seus temas mais caros e suas técnicas de composição tão peculiares.
Um das temáticas recorrentes é a infância, com suas experiências marcantes fixando-se na memória. Um exemplo: o texto que dá título à obra lança o leitor no universo do desejo inocente de uma menina por um livro. Uma vez de posse do objeto desejado, ela experimenta uma "felicidade clandestina" que a acompanhará por toda a vida, pegando-a de surpresa, provocando sensações inesperadas, como as "pequenas epifanias" de que falou Caio Fernando Abreu. Felicidade difícil e momentânea, porém forte.
Aliás, a infância protagoniza vários contos: um menino que se desestabiliza com a visão do dente de ouro e com o amor maternal de uma prima (Miopia progressiva); a garota que, num triste carnaval marcado doença da mãe, mesmo depois de ter sua fantasia de flor destruída, ainda é reconhecida como "uma rosa" e não como simples menina (Restos do carnaval); a ruivinha que se depara com um cão basset também "ruivo" e vê nesse encontro algo similar à descoberta da suprema afinidade entre os seres (Tentação); ou a menina que roubava rosas e pitangas por achar que estas "pediam" para serem roubadas em vez de permanecerem nos galhos e apodrecerem ("Cem anos de perdão"), entre algumas outras. Alguns destes textos são baseados em reminiscências da própria autora, conforme depoimentos de familiares colhidos por suas biógrafas. Trata-se então do vivido que é ficcionalizado, como se Clarice quisesse passar sua vida a limpo.
Também recorrentes são os animais, que aparecem como contraponto às personagens (pessoas), às vezes devolvendo-lhes uma humanização já esquecida. Assim, há galinhas, macacos ou insetos como a barata, que, vale lembrar, constitui a matriz deflagradora da experiência de mergulho em si mesma, da narradora-protagonista de A paixão segundo G. H.
Embora alguns textos apresentem ação, respeitando a etimologia do termo "conto", no sentido de relatar um fato acontecido, outros se fazem na exploração de uma atmosfera, um sentimento ou uma reflexão, contrariando o ato de "contar uma história". Em O ovo e a galinha, totalmente despojado de enredo, tomam-se os dois elementos do título como metáforas da existência, ao mesmo tempo em que representam os objetos e os seres tragados pela voracidade do olhar em busca de compreendê-los.
Neste sentido, é muito freqüente a associação da obra clariceana com a filosofia existencialista, representada sobretudo por Jean-Paul Sartre, autor do romance A náusea e do ensaio filosófico O ser e o nada. Os questionamentos existenciais, suas angústias e vicissitudes, estão associados à sondagem da vida interior das personagens e à própria elaboração literária, constituindo-se como metalinguagem consciente de seu lugar de procura, que mais pergunta do que responde, ancorando-se no cotidiano, como acontece em "Menino a bico de pena".
E é no cotidiano que se localiza a tão falada epifania clariceana, que nas palavras de Affonso Romano de Sant'Anna seria "o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação", apresentando-se como "iluminação súbita" na consciência das personagens, descortinando sua verdadeira condição. Fugazes e imediatas, essas epifanias, na verdade, nunca são "pequenas", pois guardam a tensão viva da clandestinidade dos afetos soterrados pelas máscaras sociais de cada um.
2 comentários:
O texto é muito esclarecedor, fazendo um breve mas profundo incurso no mundo clariceano. Falar de suas epifanias não é fácil, ou melhor, entendê-las é que não é fácil, mas o Miguel soube fazer isso com maestria.
Miguel, como sempre, competente!
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