sábado, 21 de março de 2009
A divina comédia de Dante e Moacir: Ó o mêi!
Ricardo Guilherme
ricardo-guilherme@uol.com.br
Criador do Teatro Radical Brasileiro
MOACIR
Ei, psiu, seu Deus! Meu Deusim, ói pa mim. Eu sô fii do Martim, aquele arrenturero que rêi lá de Purtugal atrás dumas tora de pau, aquele daquelas nau chêa de puga, o portuga que rêi dá o grau nas cunhã e que se enrabichô pur uma cunhatã de primêra linhage que prepararra de Tupã a beberage. Repare bem pas minha fuça de tabajara. Eu sô Moaci, paroara, neto de Araquém, fii da Iracema. O Sinhô se alembra da mãe? Aquela do banhe nas lagoa de Porangaba e Mecejana que pariu um bruguelim numa cabana. Apois o bruguelim tá aqui: Moaci, da Iracema, um cearenso da gema. E se eu rim rê seu imbrema, remano que nem pêxe na piracema, é purque seu Dante foi lá na Terra me dizê que o Sinhô tinha umas coisa pa me dizê.
DEUS
Eu rô te dizê de A a Z o que é da minha conta, do meu rosaro e dos meu buzo. Lá rai. O que é do meu abuso é esse teu entra-e-sai. Só purque tu ficô sem mãe e aí teu pai, o Martim, te amostrô muntas légua e légua sem fim. E assim, tu mora andano, sempe arribano, hôme de Deus.
MOACIR
Deus dos Hôme, num me jogue péda, num me bote arreparo. Eu num paro, eu num paro, mas o sinhô tombém desarreda, Nisso o Sinhô num se faça de santo. O Sinhô tombém tá im tudo quanto é canto.
DEUS
Tu qué bem dizê que é saltimbanco purque me arremeda!
MOACIR
Positivo, tiro e queda.
DEUS
Hôme de Deus, tu quano arreda, arreda, e eu arredo mas num desarredo. Posso tá aqui e tá lá, no mermo tempo, im todo lugá, e tu num tem esse dom. Tu num pode sê eu. Tu num é eu. Tu é um errante judeu. Úh! Tu nem é Deus. Iei! Tu é hôme.
MOACIR
Deus dos Hôme, num me embrome. Ai, ai, ai, ai, ai. Se eu sô fii de Deus - ora, merda - o fii tudo herda o que é do pai.
DEUS
Hôme de Deus, tu tá embananano as carta do barai ô intão tá com implicança. Purque as tua herança é a terra.
MOACIR
Deus dos Hôme, aí é adonde o Sinhô erra purque im toda terra tem os coronel e os colono, como aqui no céu, adonde o Sinhô é que é o dono. Eu tô reno que no céu é cuma lá na terra do sol: nós rai po sol e só quara, quara, feito babaquara. Ô Deus, num era pa pelo meno o Sinhô, aqui no céu, fazê a reforma agrara?
DEUS
Hôme de Deus, pára, pára. O céu cum a terra não se compara. Aqui num se paga aluguel e tem sempe o de-comê pa mode se enchê o farnel.
MOACIR
Eu sei, Deus dos Hôme, que ninguém passa fome na sua cozinha, mas insine pos hôme um mêi de tombém tê essas meizinha.
DEUS
Hôme de Deus, eu rá matei tua fome, tanto, tanto. Mas nem todo dia é dia santo. Eu ra te dei tanto insino. Rai cuidá do teu distino.
MOACIR
Deus dos Hôme, o meu distino é o mermo distino da arribaçã que veve pulano de gai im gai, no mêi dos pé de pau. Eu sô pé-rapado, capiau, cabrinha acanaiado que nem o cão da itaoca. Eu sô cuma se eu fosse fii do bode Ioiô com a galinha choca.
DEUS
Cearenso, o que eu penso é que tu é que nem um pinto calçudo que veve ciscano e o teu ciscá nunca se acaba.
MOACIR
É por causo que eu, Sinhô Deus, nasci no campo da Porangaba, mas um dia, adispois de minha mãe ra finada, meu pai me socô numa jangada e me puxô pa ôtas quebrada.
DEUS
Mas, hôme de Deus, tu num é fii de chocadêra. Tu teve mãe e a tua mãe num era estradêra. Se ela um dia do sertão descambô foi pur amô. Foi pur amô que tua mãe traiu o Pajé, teu avô, traiu a pajelança. Tua mãe deu a teu pai o cauim que era do Xamã. E no que ele bebeu, ela traiu de Tupã a confiança. .Pur amô, tua mãe traiu Caubi, teu tio, e partiu da tribo os fio. Ela esvaiu o sangue da sua própria herança quano quebrô com o Guerrêro Branco aquela lança..
MOACIR
Meu Deus, Nosso Sinhô, o Sinhô sempe gabô dizeno que o amô amansa qualqué diferença. Pu amô num tem cô, num tem raça. num tem crença. Isso eu sei derna que era piqueno. O amô é feito capim que brota em qualqué terreno. E eu num tô reno adonde o Sinhô qué chegá com esse seu blábláblá.
DEUS
Apois eu tô reno que é a tua ficha que num cai. Agora sai dessa, sai. Por que é que, quano tua mãe embarrigô, tu dento dela encruô e nasceu Moaci, fii da dô? E se tu, Moaci, num queria nascê ali, pur que foi intão que tu rêi e só rêi adispois de munto ai, ai, ai? Foi só pá puxá a teu pai, o viajante. Por isso é tu qué veve sempe distante, nas lonjura, fugino do lugá do teu avô adonde teu pai cavô pa tua mãe a seputura.
MOACIR
Deus dos Hôme, criadô, criatura, por favô, pára com isso. Se num fosse minha mãe eu num tinha essas mistura e eu num era mestiço. E o Sinhô, sinhô Deus - pula amô de Deus, Deus - num renegue seus cumprumisso. Encangá e apartá num é de Deus tombém os ofiço? Intão, dêxe de bestêra! Deus, eu te cunheço, laranjêra. Tu encanga mas tombém quano tu corta, é afiada a tua pexêra purque o teu corte é de morte e a morte num é brincadêra. Foi tu que me dêxo sem mãe, solto na buraquêra. Foi tu, Deus, que esse destino de judeu me deu. Foi tu, Deus.
DEUS
Hôme de Deus, eu te botei no teu mêi, no Cearazim, adonde tu foi curumim.
MOACIR
Meu Deusim, daquelas maloca os zé-povim é tudo-tudim cuma o Seu Dante que faz uma travissia no rumo do céu, escapano do inferno e do purgatóro. Nós sai atrás de adjutóro. Intão, se o cearenso sapeca o sarrafo a viajá pelas arêa do chão, das vez é pur gosto, é pur um frivião, mas a mó das vez é pur pricisão.
DEUS
Hôme de Deus, adonde mora o teu porém é lá no teu chão. Lá é que é o mêi. E foi pa isso que eu te chamei: pa te dizê que a mirage daquela beberage que tua mãe fazia e oferecia pos guerrêro de Tupã sonhá é pa tu botá no teu lugá. Bem no mêi. Intão, num me aperrêi. Sai do meu mêi e rai pa lá. No pau-de-sebo tu raí agora escorregá. E é um e é dois e é três e é mêi e é já.
MOACIR
Ó o mêi, que eu rô pa terra rê as serra e os monte que ainda azula no horizonte. Eu rô rê os rai de sol e as raia das praia adonde canta a jandaia nas palma da carnaúba. Ó o mêi, que o pau-de-sebo me derruba. De arriê. Lá rai, lá rai, lá rai! Ó o mei, ó. Taqui o mêi, no mêi desses arredó. O mundo é grande mas o Ceará é maió. A gente se embrenha mas - oxente - parece que o lugá rai e rem tombém dento da gente e faz cum que a gente se encangue. Ó o mêi, ó o sangue! Eh, Ceará! O mêi é o má, é o mel, é o mói, o mêi é só o mii, o mêi é a mãe. Iracemãe, se arreganhe e me semêi que eu vortei pa passá de novo pelo seu mêi. Ei, ei. ei, ei! Ó o mei!
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