(Tarsila do Amaral)
Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.brJornalista, Pesquisador Musical e Produtor Cultural
A obra-prima modernista de Mário de Andrade (09/10/1893 – 25/02/1945) “Macunaíma” completou 80 anos em julho de 2008 e o Brasil celebrou em outubro os 115 anos do nascimento do escritor. Os 800 exemplares da primeira edição e suas 288 páginas marcaram a literatura brasileira de forma definitiva. Apesar da frase “Ai, que preguiça!” simbolizar o estado de espírito do “herói sem nenhum caráter”, o certo é que nos 80 anos de presença na vida cultural brasileira “Macunaíma” permanece desafiando o tempo e provocando reações as mais diversas. Amado por uns e questionado por outros, o livro é uma autêntica imersão nas coisas do Brasil e, sem dúvida, é um dos marcos da língua portuguesa no século XX.
Até o Carnaval do Rio de Janeiro abriu alas para o personagem de Mário de Andrade, em 1975, quando a Escola de Samba Portela cantou na avenida o samba-de-enredo “Macunaíma”, de David Corrêa e Norival Reis: “Vou me embora, vou me embora / eu aqui volto mais não / vou morar no infinito / vou virar constelação / Portela apresenta, do folclore tradições, / milagres do sertão a mata virgem / assombrada com mil tentações / Macunaíma, índio branco catimbeiro, / negro sonso, feiticeiro, / mata a cobra e dá um nó...”.
Para marcar o cinqüentenário da obra de Mário de Andrade, em 1978, Telê Porto Ancona Lopez lançou uma edição crítica de “Macunaíma” (LTC) apresentando o texto da rapsódia ilustrado por oito guaches de Pedro Nava (05/07/1903 – 13/05/1984), feitos em 1929, e buscando desvendar o processo literário do escritor, além de refletir sobre as múltiplas leituras que o livro suscitou. Esta edição comemorativa também trazia outras ilustrações realizadas em épocas diferentes: um desenho a nanquim e lápis de cor de Cícero Dias, um desenho a lápis de cor cinza sobre papel e uma pintura de Tarsila do Amaral, duas águas-fortes de Carybé, um desenho a tinta sobre papel de António de Alcântara Machado (Totó), um desenho de Del Pino, uma ilustração de Euclides L. Santos e uma gravura de Santa Rosa para a capa da segunda edição, publicada em janeiro de 1937, pela José Olympio Editora, com mil exemplares. A força de “Macunaíma” continua sedutora, oito décadas depois, e ainda inspira leituras diversificadas.
Autêntico ícone modernista brasileiro, “Macunaíma” inspirou também o saudoso artista plástico mineiro Arlindo Daibert (12/8/1952 – 28/8/1993) e ganhou adaptações no cinema e no teatro no Brasil. Em 1969, a obra foi filmada pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade, utilizando, sempre que possível, as palavras do livro. Eduardo Escorel assinou a montagem, Carlos Alberto Prates Correia foi o assistente de direção e no elenco despontavam Grande Otelo, Dina Sfat, Paulo José, Milton Gonçalves, Jardel Filho, entre outros. E, em 1978, o encenador Antunes Filho dirigiu uma premiada adaptação teatral do Grupo Pau Brasil e de Jacques Thiériot, tendo como cenário a floresta amazônica em meio a sons de água e barulhos de pássaros, de ramagens e de animais. Essa rede mágica sonora ambientava toda a ação das personagens.
Em 2008, a cantora Iara Rennó lança o CD “Macunaíma Ópera Tupi” -"Macunaó.perai.matupi" (Petrobras – MinC), trazendo músicas de sua autoria a partir de letras extraídas de trechos da obra de Mário de Andrade. A cantora afirma que as formas da música popular folclórica do Brasil se misturam com a música contemporânea que ela ouviu. A partir daí, diz Iara, surgiu este disco, conservando e corrompendo a tradição, colando e recriando, bem ao gosto do poeta e ao sabor da obra, “na fala impura”.
O disco conta com diferentes produções em cada música, articulando artistas como Siba, Kassin, Moreno Veloso, Benjamin Taubkin, Beto Villares, Alexandre Basa, Maurício Takara, Daniel Ganjaman, Quincas Moreira e Buguinha Dub. E ainda traz como convidados Tom Zé, a banda Fuloresta, Arrigo Barnabé, Dante Ozetti, Funk Buia, Barbatuques, Tetê Espíndola, Toca Ogã, Da Lua, Bocato e Anelis Assumpção. Segundo Iara, o CD será distribuido em escolas públicas de ginásio e segundo grau em todos os estados do Brasil, como complemento de estudo da obra “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”. O projeto “Macunaó.perai.matupi” ou “Macunaima Ópera Tupi” nasceu a partir de um estudo de “Macunaíma”, quando Iara cursava literatura na faculdade de letras da USP.
Pedro Nava criou os oito guaches a partir de “Macunaíma” para devolver uma provocação do amigo Mário de Andrade, que tinha enviado o livro com a dedicatória: “A / Pedro Nava, / pouco trabalhador, / pouco trabalhador, / o / Mario de Andrade / São Paulo 14 / VIII /28”. Ao aproveitar as páginas em branco da primeira edição, Nava desenhou sua visão de Macunaíma e devolveu-a a Mário estabelecendo um diálogo criativo intenso e vigoroso. Na verdade, muitos anos antes de se tornar o maior memorialista brasileiro, Pedro Nava transitava no desenho com desenvoltura e personalidade instigante. Estes oito guaches são a prova incontestável.
A arte de Arlindo Daibert (também juizforano como Pedro Nava), quase 15 anos após a morte do artista plástico mineiro, é outro testemunho vivo da ousadia e da inventividade de quem sempre encarnou a criação como um desafio e um estímulo, além de um compromisso com a produção do saber. O legado de Arlindo Daibert deixa explícita a inquietação, a precisão e a afiada percepção de um artista em permanente processo de reflexão sobre a linguagem do desenho. O livro “Macunaíma de Andrade” (Editora UFJF), com trabalhos de Daibert, editado em 2000, representou um verdadeiro mergulho na essência de “Macunaíma” e uma autêntica rapsódia, com direito a novas apropriações e à exploração de muitas outras vertentes.
Assim, a editora prestou não só um tributo à memória de um dos mais significativos artistas brasileiros da segunda metade do século XX como reafirmou a intenção de manter ao alcance do público uma obra impregnada de inquietação do primeiro ao último traço, da primeira à última linha. A interpretação visual de Arlindo Daibert merece ser exposta permanentemente para que mais e mais pessoas vislumbrem toda sua criatividade e, a partir daí, ampliem o debate sobre o papel de Mário de Andrade na renovação da literatura brasileira e como fonte inspiradora e questionadora.
Arlindo Daibert criou 58 imagens em técnica mista, lançando mão do desenho, pintura e colagem, e outros 10 esboços, reafirmando o diálogo com a rapsódia de Mário de Andrade e acentuando a forte influência da matriz geradora marioandradina. A cada nova leitura, seja nas artes plásticas, seja na música, ou cênica, ou ainda cinematográfica, “Macunaíma” permanece oito décadas após seu lançamento como uma matriz expressiva e sedutora. Na apresentação do livro de Daibert, Telê Porto Ancona Lopes diz tudo: “Nessa navegação que se apropria do texto com alta exigência no artefazer, ‘Macunaíma’ se transforma, de fato, em ‘Macunaíma de Andrade Daibert’, soma de universos”. E é exatamente a possibilidade de permitir esse entrecruzamento de universos que faz da obra-prima de Mário de Andrade uma fonte permanente de inspiração, mesmo passados oito décadas da primeira edição.
A relação essencialmente inventiva expressa pelo artista plástico nos desenhos, pinturas e colagens de sua reflexão sobre “Macunaíma”, reafirma o compromisso inventivo de Arlindo Daibert. Toda a força criativa desta interpretação aberta da obra de Mário de Andrade pode ser percebida e acompanhada no Diário de Bordo, que revela como o artista juizforano iniciou um estudo detalhado da obra de Mário de Andrade e passou a se enveredar nas artimanhas de “Macunaíma”, entre 1981 e 1982, para elaborar uma de suas mais intensas séries. Como muito bem ressaltou o jornalista e crítico de arte mineiro Walter Sebastião, ao escrever sobre “Imagens do Grande Sertão - Arlindo Daibert” (Editora UFMG – Editora UFJF), lançado em 1998, a incrível rede de significados elaborada por Daibert exprime a síntese de toda a sua inteligência no manuseio de signos/símbolos e toda a sua habilidade artesanal. Tanto ao se enveredar pela rapsódia de Mário de Andrade quanto pelos caminhos do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, Daibert assumiu riscos, enfrentou o desafio de peito aberto e criou uma obra maior, onde a reflexão marca presença em cada momento, com a interpretação do artista plástico abrindo perspectivas novas sobre o original de escritos tão díspares e tão contundentes.
Um artista capaz de deixar fluir uma forte crença na responsabilidade cultural de sua arte, Daibert sempre se recusou ser um mero “produtor de imagens” e defendia como compromisso do artista a produção do saber. Assim, Arlindo não levou em conta o contexto pessoal do escritor Mário de Andrade e não fez uma releitura técnica de “Macunaíma”. Afinal, não se trata de uma ilustração para a obra marioandradina. Na verdade, Arlindo ousou criar sem limitações, tendo como ponto de partida o estímulo literário.
No livro “Macanaíma de Andrade”, o saudoso artista plástico mineiro conseguiu, mais uma vez, romper limites e refletir sobre a linguagem do desenho. O desafio da criação nunca intimidou Arlindo Daibert, pelo contrário, sempre serviu como estímulo. Ao criar as imagens de “Macunaíma de Andrade”, Arlindo Daibert explorou toda a diversidade de situações presente na obra-prima de Mário de Andrade, deixando muito claro que, ao realizar seu trabalho, seja em desenho seja em pintura, ou ainda em colagem, o fundamental era exercitar uma linguagem de encarar o mundo. E ressaltava que não se podia confundir um método de raciocínio com apenas uma produção de imagens. A característica da linguagem gráfica de Arlindo Daibert não poderia deixar de ser a criação da imagem, mas sempre como conseqüência e não como fim de seu projeto. E o artista plástico explicitava este ponto de vista: “O meu projeto não é criar imagens, o meu projeto é refletir sobre as coisas através das imagens”. Isso criou uma dinâmica capaz de não prender a criação de Daibert a nenhuma fórmula gráfica, a nenhum estilo gráfico.
O artista plástico ainda confidenciou: “Eu tenho um estilo de raciocínio e não um estilo gráfico. Os meus estilos gráficos se adaptam às problemáticas que eu estiver refletindo em cada momento”. Este era o grande trunfo de Arlindo Daibert como um artista afiado e afinado como seu tempo. Avesso a concessões e a limitações, Daibert fazia da ousadia de dar um passo à frente o estímulo para continuar caminhando até o infinito. Essa percepção mágica diferenciava Arlindo e está viva e presente em sua arte.
Amigo de Arlindo Daibert e guardião de suas três mais importantes séries reunidas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – “Macunaíma de Andrade”, “Imagens do Grande Sertão” e “Alice” –, o colecionador Gilberto Chateaubriand ressaltou a genialidade do artista plástico mineiro: “Arlindo, no seu período de vida, foi talvez o mais completo desenhista que nós tivemos, porque ele aliava não só a habilidade e a técnica do traço, mas também a cultura e a pesquisa. Basta conferir os desenhos surrealistas do início da carreira, como também os de fundo mais histórico e narrativo, e até os que traziam um contingente autobiográfico”. Em seu pouco tempo de vida, Arlindo deixou uma obra expressiva e consistente tanto qualitativamente quanto quantitativamente. É justamente aí, segundo Chateaubriand, que se observa sua genialidade, porque era um criador frenético e sempre decidido.
Ao receber da família de Daibert a série “Imagens do Grande Sertão”, após a morte do artista plástico mineiro, complementando o acervo em sua coleção de arte contemporânea, Chateaubriand revelou: “É com muita emoção e muita saudade que recebi esta obra, porque uma das últimas visitas, senão a última visita, que recebi de Arlindo foi justamente para me dizer que fazia absoluta questão que a série sobre o livro ‘Grande Sertão: Veredas’, finalmente, compusesse a trilogia com os trabalhos que eu já tinha dele. E que eu destinasse sempre os trabalhos para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, onde ele sempre mereceu uma acolhida generosa”.
O poeta e pesquisador Júlio Castanõn Guimarães, no livro “Caderno de Escritos” (Editora 7Letras), afirmou que o artista, tendo iniciado brilhante carreira no início dos anos 70, impôs-se logo pelo virtuosismo de seu desenho. “Nos cerca de 20 e poucos anos em que desenvolveu sua atividade, incorporou a esse traço inicial uma série de outras peculiaridades, em que se destacava a permanente discussão da própria criação artística”. A importância de Arlindo Daibert como artista plástico, segundo Júlio Castanõn, já foi devidamente - embora não suficiente - ressaltada, não só pela sua curta trajetória, mas também pelo reconhecimento dos principais críticos de arte do país.
Sua intensa e múltipla produção era acompanhada de (e refletia) uma permanente preocupação com questões que ultrapassam os limites da técnica, ressaltou Castanõn: “A reflexão, a indagação, a especulação sem dúvida foram determinantes em seu percurso. Dos bicos-de-pena iniciais, ligados a uma tendência ao fantástico, até os objetos de fria e violenta elaboração conceitual, o caminho não envolveu apenas um arrojo de pesquisa, mas também um embate com a noção mesma de produção artística”.
“Um franco atirador que jamais erra o alvo”. Assim, o jornalista, crítico de arte, ex-secretário estadual de Cultura em Minas Gerais e atual prefeito da histórica Ouro Preto, Angelo Oswaldo, definiu o artista Arlindo Daibert, lembrando que ele enfatizava a individualidade como condição imprescindível numa época de padronização e massificação da própria subjetividade. “Incentivador de projetos à sua volta, na qualidade de professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e curador de exposições, alimentava o crescimento de valores novos, ao mesmo tempo em que reabastecia para o desafio da criação”.
Amigo e conhecedor de sua obra, Angelo Oswaldo considera Arlindo Daibert um dos mais importantes artistas da contemporaneidade brasileira. “A morte dele interrompeu uma trajetória que nos levaria definitivamente a uma das obras mais significativas do século XX”. E ressalta, ainda, que o artista foi responsável por ter colocado Juiz de Fora como um centro de referência de vanguarda no cenário artístico nacional.
A interação entre a literatura e visualidade, ponto essencial da proposta artística de Arlindo Daibert, é apontada por Angelo Oswaldo como uma contribuição ímpar: “Há um processo de integração entre a literatura e a visualidade - que ele soube resolver muito bem - em que a força da linguagem se transforma na grande energia autônoma da expressão visual. Ele conseguia extrair a poética da literatura e dar suporte à sua expressão visual, sem violentar a autonomia da imagem”. Segundo Angelo Oswaldo, a obra visual de Daibert deve um tributo à literatura, mas é também autônoma, pois cria sua linguagem própria a partir de símbolos literários. “Dentro das artes plásticas brasileiras, talvez seja a obra mais intelectualizada, porque Arlindo trouxe para o campo da criação plástico visual toda a sua rica cultura nas áreas de literatura, lingüística e filosofia”.
Daibert abordava de maneira singular, como desenhista, pintor, criador de objetos e instalações, obras de autores como Mário de Andrade, Murilo Mendes, Guimarães Rosa e Lewis Carroll, entre outros. Além do legado artístico, em termos de acervo, Arlindo deixou um trabalho muito importante para a cultura de Minas Gerais e do Brasil, contribuindo, de modo especial, para a revalorização da presença do poeta Murilo Mendes (1901-1975) no país e para a instalação em Juiz de Fora do Centro de Estudos Murilo Mendes, atual Museu de Arte Murilo Mendes, instituição da Universidade Federal de Juiz de Fora, que abriga a obra e a pinacoteca do poeta juizforano.
[1] DAIBERT, Arlindo. Cadernos de escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. p.25-26. (Organização de Júlio Castañon Guimarães.)}[2] SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2.ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.