sábado, 22 de janeiro de 2011

A viagem infernal

Revista Veja
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Navios mal supridos, aperto, enjôo, medo e mau humor. Assim a família real atravessou o Atlântico

Imaginem pessoas que deixaram para trás tudo o que têm na vida – posses, carreiras e até o próprio país. Imaginem uma viagem em navios apertados, com muito mais passageiros do que normalmente levam, com pouca água, péssima comida, náuseas quando ventava, surtos de doenças quando parava. Multipliquem tudo por 99, o número de dias que durou a penosa travessia desde Lisboa até São Sebastião do Rio de Janeiro, exceção feita à bem-vinda escala em Salvador. Isso dá uma idéia aproximada do alívio sentido pelos mais de 2 000 passageiros, quase todos de primeira viagem, que, amontoados em quatro navios, entraram no último dia 7 na baía guardada pelo paredão de pedra do Pão de Açúcar. Como não existe visitante que não se extasie com essa vista, o alívio se somou ao encanto e tudo se misturou ao estranhamento dos europeus ainda não acostumados à idéia de que, neste começo de março, estamos em pleno verão. O primeiro a sentir o que é o calor carioca, num dia de céu gloriosamente azul, foi o próprio príncipe João. Em companhia dos dois filhos homens, Pedro e Miguel, o regente desembarcou no dia 8 do Príncipe Real – e a esta altura já deve saber que carioca é como se chama tudo pertinente ao Rio, e não o nome dos índios que continuam a habitar na cidade. Sua mãe, a rainha Maria I, que está afastada do trono por doença, só veio a terra dois dias depois. Do Afonso de Albuquerque desceram a princesa Carlota Joaquina e quatro das seis filhas do casal. Enquanto os personagens principais descansam em terra firme, já se pode reconstituir o que foi a extenuante jornada marítima.

Por causa da correria na fuga, praticamente sob a mira dos canhões franceses, não existe lista precisa dos navios, tripulações e passageiros que partiram de Lisboa em 29 de novembro, um dia frio e chuvoso. Mas eram mais de cinqüenta naus contando a frota portuguesa, a escolta inglesa e os navios mercantes que estavam no porto ou próximos a ele naquele momento. Nelas, cerca de 15 000 pessoas, metade tripulantes e a outra metade os fidalgos, funcionários públicos e criados que acompanharam a família real portuguesa nessa inédita viagem. "Os navios de guerra portugueses apresentavam uma aparência desleixada, por terem tido só três dias para se preparar para a fuga. Mais pareciam destroços que navios de guerra", descreve o irlandês Thomas O’Neill, tenente da Marinha britânica que presenciou a partida a bordo do navio de escolta London. No início da tarde, quando a esquadra portuguesa que deixava o porto se encontrou com os navios ingleses amigos, o comandante da escolta, o contra-almirante Sydney Smith, foi visitar o príncipe João e com ele conversou "na popa ostentando seu pavilhão, a única parte do navio livre de entulhos e aglomeração". Smith ficou preocupado: "Eles têm multidões de homens, mulheres e crianças, todos refugiados indefesos, e um monte de bagagem a bordo, pouquíssimos marinheiros e não há água nem provisões para uma viagem de duração considerável".

Os navios partiram todos juntos, mas de manhã já estavam espalhados por causa de uma tempestade. "No mar aberto, a esquadra enfrentava, nesses primeiros dois dias de viagem, tempestades excepcionalmente severas e ventos que, pelo quadrante que sopravam, tornavam a vida a bordo incômoda pelo movimento e, para a maioria não acostumada, pelo medo de que a aventura terminasse a qualquer momento", relata um passageiro. Ele toca num ponto importante: apesar da história de glórias da navegação portuguesa, poucos dos viajantes conheciam as durezas dos percursos marítimos. Aliás, tirando as curtas distâncias entre Lisboa e suas propriedades no interior, poucos estão habituados a viajar. O próprio príncipe regente só saiu de Portugal uma vez, em 1796, para se encontrar com o sogro Carlos IV, o rei da Espanha, em Badajoz, pouco além da fronteira.

No dia 2 de dezembro, João deu ordens a um dos oito navios de linha, o Medusa, para seguir à frente e chegar primeiro ao Rio de Janeiro, dando tempo ao vice-rei Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos, de se preparar para o inimaginável: acolher a família real e sua corte. Dois dias depois, com o tempo já firme, o comandante Smith destacou quatro naus britânicas para escoltar os portugueses no restante da viagem. Ele próprio voltou à sua atividade habitual, lutar contra os franceses. A qualidade do serviço de bordo pode ser avaliada pelas cartas com reclamações que a princesa Carlota ficou mandando ao marido – a correspondência entre os navios é levada por botes. "Quanto ao que me dizes a respeito da cozinha, é necessário que tu autorizes o conde de Caparica com algum oficial hábil dessa nau para que unidos façam o arranjamento melhor possível castigando os que não quiserem obedecer-lhe", aconselhou o príncipe. O mau tempo impediu uma escala para reabastecimento na bela Ilha da Madeira e, pior, dividiu a esquadra. Quando se percebeu, o Príncipe Real e o Afonso de Albuquerque, mais suas fragatas de apoio Urânia e Minerva, haviam se separado do resto – a família real portuguesa quase inteira ficou sozinha em pleno alto-mar.

Passadas as borrascas – e o medo de naufrágio –, as queixas aumentaram. "O número de pessoas que seguiram a sorte de seus protetores reais era tão grande, e cada navio estava lotado a tal ponto, que mal havia espaço para deitar no convés; as senhoras, destituídas de bagagem, tinham apenas as roupas que usavam. Nossa situação era tão desesperadora que espero que ninguém venha a experimentar ou testemunhar coisa igual", lamentou um fidalgo. Também se espalhou a impressão de que a viagem "foi muito mal planejada, que deveriam ter tido mais tempo, que mais navios deveriam ter sido preparados". Os ânimos acirraram-se a tal ponto que dom João, o único a permanecer calmo, proibiu que se discutisse a decisão de deixar Lisboa. Ele também cancelou a parada prevista nas Ilhas de Cabo Verde – as últimas antes do destino. A pressa não teve efeito. Quase no Equador, os cinco navios entraram numa zona de calmaria e passaram a virada de 1807 para 1808 praticamente parados. Os navios, sobretudo o Afonso de Albuquerque, sentiam os efeitos de mais de um mês ao mar, lotados de passageiros. "Como a navegação pesada do Afonso nos retardava materialmente e o Príncipe estava se tornando insalubre, tendo 1 054 pessoas a bordo, pensei ser meu dever oferecer o navio de Sua Majestade para acomodação de Sua Alteza Real e comitiva", anotou no diário de bordo o capitão James Walker, do Bedford. João e Carlota principescamente agradeceram e recusaram; em vez disso, em 16 de janeiro o regente mandou avisar o capitão, por sinais, de que iriam para Salvador, na Bahia.

A essa altura, surgiram dois alentos: ventos mais constantes e um brigue proveniente do porto do Recife com frutas, verduras e legumes, muitos deles desconhecidos pelos europeus – gentileza do governador Caetano de Miranda Montenegro, avisado pelo Medusa, o navio despachado na frente. Em 22 de janeiro, depois de passarem 55 dias no mar, a comitiva real e escolta chegaram ao porto de Salvador – totalmente vazio, a não ser pelo atônito governador João Saldanha da Gama, o conde da Ponte. A surpresa é compreensível: embora também tivesse recebido a notícia de que a corte portuguesa estava a caminho do Brasil, o governador não contava que fosse parar na Bahia e nem sequer sabia qual era exatamente o protocolo a ser seguido; afinal, era a primeira vez que um membro da realeza pisava o solo em uma colônia. Na dúvida, Saldanha da Gama mandou todo mundo ficar em casa, em silêncio. As cenas que viu talvez não tenham correspondido às expectativas, com nobres em trajes descompostos saindo de embarcações caindo aos pedaços. "Minha pena é inadequada para descrever a situação angustiosa das pobres mulheres que superlotavam a nau", descreveu um marinheiro do Bedford. No dia seguinte, com as damas trajando vestido emprestado pelas senhoras locais, o desembarque teve mais solenidade, com música, aplausos e salvas de canhão, seguidos de missa solene e cantada na catedral. E assim Sua Alteza Real e sua mais rica e importante colônia afinal tiveram o primeiro contato. Certamente saltou à vista dos recém-chegados que o Brasil é mais quente, mais moreno e muito mais animado que Portugal, em especial por causa das festas que a toda hora agitam as ruas de Salvador, ao ritmo da música africana.

O príncipe regente aproveitou a estada: fez passeios, visitou plantações, recebeu a elite local. Conheceu um dos ilustres filhos da terra, José da Silva Lisboa, que contribuiu com suas idéias liberais para uma das medidas mais importantes dessa nova fase, a assinatura da carta régia que abre os portos brasileiros às nações amigas (leia-se: Inglaterra) e efetivamente suspende o isolamento forçado em que vivemos até agora. A abertura dos portos é uma questão de sobrevivência, com a perda de Portugal, e de boa convivência com os ingleses, que possibilitaram a fuga da família real. Mas também coincide com a causa da liberdade econômica defendida ardorosamente por Lisboa. "A melhor economia consiste em permitir indústria ativa, trabalho discreto, instrução franca e comércio livre", prega o especialista, que viajou de Salvador para o Rio com a comitiva real. Outra iniciativa bem recebida do príncipe regente foi a criação da Escola Médico-Cirúrgica de Salvador, que acaba com a vergonhosa inexistência de ensino superior no Brasil – só para comparar: no Peru, sob domínio espanhol, a universidade de Lima existe desde 1551; a respeitada Harvard, nos Estados Unidos, data de 1636. Apesar da graça e das ofertas sedutoras dos baianos, que propuseram construir um palácio em troca de sediar a corte, o príncipe manteve o roteiro original: fixar-se no Rio, o atual centro do poder colonial, muito bem guardado por fortalezas e mais longe ainda dos franceses. Em 26 de fevereiro, a esquadra partiu – às 16 horas, diz o registro do Bedford, navegavam em mar aberto. Sem percalços e com muito melhor aparência do que na chegada à Bahia, dez dias depois os navios e seus passageiros aportaram, inteiros, no destino que a partida apressada sugeria quase inalcançável: São Sebastião do Rio de Janeiro, quase uma visão do paraíso depois da viagem infernal.

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