sábado, 22 de janeiro de 2011

Os últimos dias

Revista Veja
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Um drama como Portugal nunca viu: com o inimigo à vista, o príncipe reúne a família e vem para o Brasil

Se fosse um romance de aventura, a fuga dramática de toda a elite dirigente de Portugal poderia ser intitulada Os Últimos Dias de Lisboa. Os tablóides ingleses preferiram fazer piada, usando caricaturas de um frustrado Napoleão Bonaparte, ou "Boney", como apelidam ironicamente o imperador francês, furioso por perder sua presa no último minuto. Mas para os portugueses não teve nada de engraçado enfrentar os acontecimentos incontroláveis que se precipitaram como um arrastão. No fim de novembro do ano passado, o pequeno reino se viu na insustentável posição de estar em guerra, simultaneamente, com a França napoleônica, com a vizinha Espanha e, pelo menos nominalmente, com a Inglaterra, sua tradicional aliada. Os invasores franceses já se aproximavam de Lisboa quando o príncipe regente João finalmente pegou família, fidalgos, criadagem, tesouros e documentos e veio ser rei de Portugal no Rio de Janeiro. O clima foi de desespero, tanto entre os que foram embora quanto para os que ficaram. "A desgraça, a desordem e o espanto existiam por toda parte em Lisboa", anotou uma testemunha.

O atropelo da partida diante de uma invasão anunciada demonstra quanto Portugal tentou até o fim se equilibrar em cima do muro da proclamada, embora fictícia, neutralidade na briga da França com a Inglaterra. Essa neutralidade consistiu, na prática, em fingir para os franceses, logo ali nos seus calcanhares, que só mantinha laços com os ingleses por obrigação comercial, e fingir para os ingleses, sua corda de salvação, que não fazia questão nenhuma de ser amigo de seus inimigos. Entre julho e agosto do ano passado, o muro começou a rachar. Missão cumprida no resto da Europa, Napoleão voltou os olhos para Portugal e começou a brincar de lobo e cordeiro – com ele, naturalmente, na condição de predador. Os registros meticulosos de suas cartas e mensagens permitem reconstituir os fatos. Em 19 de julho, mandou seu ministro do Exterior "informar o embaixador português de que os portos de seu país devem ser fechados à Inglaterra até 1º de setembro; na falta disso, eu declararei guerra a Portugal e confiscarei as mercadorias inglesas". O trabalho sujo deveria ser feito por meio dos representantes diplomáticos em Madri. Alguma dúvida sobre as intenções de Napoleão? "Na falta disso, os embaixadores da França e da Espanha deixarão Lisboa e ambas as potências declararão guerra contra Portugal; em 1º de setembro um exército francês marchará até Baiona, pronto para se unir a um exército espanhol para a conquista de Portugal."

Enfurnado no Palácio de Mafra, o príncipe regente fez o habitual: tentou contemporizar. Anunciou que iria aderir ao bloqueio, e só. Mas a urgência do assunto se impunha e, discretamente, os navios de guerra portugueses receberam ordens de voltar a Lisboa. No Conselho de Estado, a mais alta autoridade sob o rei, discutiu-se primeiro a possibilidade de enviar ao Rio de Janeiro o pequeno príncipe herdeiro, Pedro, de apenas 8 anos, como forma de garantir pelo menos a continuidade da dinastia dos Bragança. Depois, voltou a aflorar a idéia de "transferir a capital do império para o Brasil", uma mudança em massa de toda a alta hierarquia portuguesa. A hipótese existe há mais de dois séculos e voltou a ser discutida no governo atual pelo menos desde que a Espanha invadiu e abocanhou um pedaço de Portugal, em 1801. Nesse ano, com Napoleão já em plena ação, Pedro de Almeida Portugal, marquês de Alorna e respeitado conselheiro militar, escreveu ao príncipe regente: "A balança da Europa está tão mudada que os cálculos de há dez anos saem todos errados na era presente. Em todo o caso o que é preciso é que Vossa Alteza Real continue a reinar (...). Vossa Alteza Real tem um grande império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora com tanta vantagem talvez que trema, e mude de projeto, se Vossa Alteza Real o ameaçar de que se dispõe a ser imperador naquele vasto território adonde pode facilmente conquistar as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa". Em agosto de 1807, não estava em discussão fazer com que o inimigo tremesse, apenas ludibriá-lo.

Setembro passou em frenética troca de mensagens. Sem que os portugueses soubessem, as tropas invasoras já estavam a caminho. Com a operação militar em marcha, Napoleão rejeitou a contraproposta de adesão ao bloqueio e reiterou todas as suas exigências. Em outubro, tudo se acelerou. Os embaixadores da França e da Espanha romperam relações com Portugal e foram embora; chegou a Lisboa a notícia de que o general Jean-Andoche Junot, com um exército de 25 000 homens, marchava pela Espanha em direção à fronteira; o príncipe João deixou Mafra e se instalou no Palácio da Ajuda; a frota portuguesa, reunida no Tejo, era aprontada para, oficialmente, proceder à retirada em massa rumo ao Brasil. Ao mesmo tempo, Portugal tratava de garantir a proteção da Inglaterra. Em novembro, com tudo desmoronando, Portugal empreendeu duas tentativas desesperadas de se recompor com a França. Primeira: despachou Pedro José de Meneses Coutinho, o marquês de Marialva, para comunicar a Napoleão que todas as suas exigências seriam atendidas; a título de incentivo, levava um punhado de diamantes, uma espada cravejada de brilhantes e uma proposta de casamento entre famílias. Segunda, produto da primeira: expulsou todos os ingleses, inclusive o embaixador, Percy Smythe, lorde Strangford, um especialista em Camões e em conchavos políticos. Nada deu certo. O marquês de Marialva não passou de Madri. Ao chefe da invasão, Junot, Napoleão mandou dizer: "Acabei de saber que Portugal declarou guerra à Inglaterra; isso não basta, continue sua marcha; tenho razões para acreditar que existe um arranjo para ganhar tempo". Em guerra contra as duas grandes potências mundiais, Portugal se via perdido.

Lorde Strangford não foi para Londres. Foi para o London, navio da frota britânica comandada pelo intrépido Sydney Smith que estava na boca do Porto de Lisboa. Para atacar os navios portugueses antes que os franceses pusessem as mãos neles? Para garantir a saída da família real? Naquele exato instante, ninguém sabia ao certo. Chovia torrencialmente, como é comum no fim do outono, e dois rios transbordaram no caminho de Junot, um obstáculo que apenas atrasou a invasão que na descrição de um observador francês "foi um desfile militar, não uma guerra". No dia 13 de novembro, o jornal oficial de Napoleão, Le Moniteur, antecipou-se ligeiramente aos fatos e registrou que o príncipe regente de Portugal tinha perdido o trono. "A queda da casa de Bragança constituirá mais uma prova de como é inevitável a perda de todos quantos se unirem aos ingleses", dizia. Uma cópia do jornal chegou às mãos de Sydney Smith e foi prontamente encaminhada a Lisboa. O conselho e o príncipe regente se renderam ao inevitável: os Bragança tinham de partir, deixando em seu lugar um Conselho de Regência. Joaquim José de Azevedo, uma espécie de faz-tudo da corte, foi tirado da cama por um mensageiro, levado ao Palácio da Ajuda e instruído a preparar o embarque para o dia 27. De lá mandou avisar cortesãos e clérigos importantes para preparar a mudança, foi para o cais, montou sua mesa de trabalho e pôs mãos à espantosa obra. A seu cargo estava transferir a família real em peso (incluindo as crianças e uma rainha louca e idosa) e todo o aparato institucional, mais os nobres (um duque, sete marqueses, duas marquesas, cinco condes), os agregados, os criados, os negociantes ricos e amedrontados o suficiente para comprar um lugar na frota e convidados aleatórios em geral. A providência mais comentada de Azevedo fez jus à fama da burocracia portuguesa: só embarcava quem tivesse o papelzinho – uma espécie de guia assinada.

"Uma cena terrível de confusão e aflição tomou conta de todas as classes assim que se tornou conhecida a intenção do príncipe de embarcar para o Brasil: milhares de homens, mulheres e crianças estavam constantemente na praia, empenhando-se por escapar a bordo. Muitas senhoras distintas entraram na água na esperança de alcançar os botes, mas algumas, desgraçadamente, morreram na tentativa", descreve o tenente Thomas O’Neill, que estava ao mar, em seu navio, mas ouviu a história de outro oficial britânico, "um cavalheiro em cuja veracidade eu posso ter a mais absoluta confiança". Dos palácios foram removidos louças, pratarias, móveis, obras de arte, até duas pequenas carruagens. Das igrejas e conventos, paramentos e peças de ouro e prata – uma espécie de justiça poética, visto que os metais preciosos provinham maciçamente do Brasil. Só de documentos, foram empacotados 34 caixotes grandes. Toda a portentosa biblioteca do Palácio da Ajuda – 60 000 volumes – foi acondicionada para a viagem. O tesouro real foi raspado até o fundo. Centenas de carruagens dirigiram-se para o porto, sob a chuva incessante. Botes faziam fila para levar a bagagem aos navios. Foram dois dias e meio de caos e desespero. "Que grande confusão houve no cais", registrou o funcionário Eusébio Gomes. "Todos a quererem embarcar, o cais amontoado de caixas, caixotes, baús, malas, malotões e trinta mil coisas, que muitas ficaram no cais tendo seus donos embarcado, outras foram para bordo e seus donos não puderam ir."

Os lisboetas comuns pareciam atônitos, quando não revoltados. Os poderosos partiam enquanto os sujeitos comuns ficavam à mercê dos invasores franceses, pintados como a encarnação do mal, incluindo rabo e chifres. No começo da tarde de 27 de novembro, a família real embarcou. O príncipe João chegou em carruagem simples, cocheiro sem libré, com o infante espanhol Pedro Carlos, irmão da princesa Carlota, que está sob a guarda do casal. A princesa veio depois, com os dois filhos e as seis filhas, criados, ama-de-leite para a menorzinha. Por fim chegou ao porto a rainha Maria, 73 anos, afastada do trono há mais de uma década. "Que desordem e que confusão; a rainha sem querer embarcar por forma alguma, o príncipe aflito por esse motivo. Foi o (capitão Francisco) Laranja quem fez que a rainha embarcasse. E então o príncipe deu beija-mão às pessoas que ali estavam e entre lágrimas e suspiros começaram a embarcar, e não se pode descrever o que aqui se passou", relata Gomes. Àquela altura, as tropas francesas já eram avistadas chegando à cidade. Durante todo o dia 28, com os franceses a um passo, o mau tempo impediu que a frota saísse do Tejo. Em pleno tumulto, o destituído embaixador inglês lorde Strangford desembarcou no porto, na qualidade de "amigo particular". Tinha convencido seus superiores de que era de bom alvitre que se reunisse com o príncipe regente para "mostrar a ele, na linguagem direta e simples da verdade, o único meio de segurança que ainda detém" – qual fosse, dar as mãos à Inglaterra. Ele também se impressionou: "Lisboa estava em estado de ressentido descontentamento, horrível demais para ser descrito". Strangford só se encontrou com o príncipe no dia seguinte, domingo, 29, a bordo do Príncipe Real. Lá estava quando o tempo abriu e Sua Alteza cruzou a barra para mar aberto. Começavam a grande viagem e alguns novos capítulos na história.

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