sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Sobre os 83 anos de Décio Pignatari

André Dick
henriquedick@hotmail.com
poeta, ensaísta, doutor em literatura comparada pela UFRGS

Um dos poetas que ajudaram a criar a poesia concreta, Décio Pignatari comemora hoje, 83 anos de idade. Numa carta a Régis Bonvicino, de 1975, Paulo Leminski escreveu: “aconteceu uma coisa incrível comigo recentemente / em florianópolis / quando daquele concurso de poesia/simpósio / do qual décio participou também / e quando passamos 3 dias juntos sem parar / um carnaval de vanguarda / mostrei meus poemas discursivos/verbais a ele / e o décio / com certeiro dedo / apontou p provincianismo em que eu estava caindo”. Décio pode apresentar alguns elementos que alguns não gostam – a postura de vanguarda, a negação feita a muitos poetas, as críticas hiperbólicas –, mas de uma coisa ele não pode, a meu ver, ser considerado: provinciano.

Sobretudo em razão da sua teoria da poesia concreta. Ela é a mais tendenciosa aos mass media, mas, pela força, caracteriza até hoje o movimento, mais até do que os textos de Augusto e Haroldo de Campos. Na verdade, Décio Pignatari sonhou com um projeto que transcendesse os limites do país e que conseguisse levar poesia de qualidade às massas. Mallarmé, que considera seu “guru”, num texto de Errâncias, certamente é seu guia nesses caminhos do antiprovincianismo. Mesmo quando Pignatari quis, antes de mais nada, interpretar a crise do verso como um salto para a participação do leitor de manchetes de jornal: “uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema”. Se o seu objetivo não chegou a se concretizar, sua trajetória poética foi – embora esperamos que ainda seja – das mais ousadas. Como quis também Leminski, em outro poema, uma das qualidades de Pignatari: “a fúria de décio / nunca fazer versinhos normais”.

Sua obra criativa está concentrada em Poesia pois é poesia (1950-2000), lançado pela Ateliê Editorial e pela Unicamp em edição belíssima, de luxo. São esses poucos, quase pouquíssimos, poemas, que marcam sua presença na arte brasileira, muito mais do que os livros de semiótica ou romances experimentais que escreveu, mesmo que Panteros seja uma referência. É lamentável que, hoje, Pignatari, dos concretos, seja o menos lembrado. Depois de se alinhar com os parceiros Augusto e Haroldo de Campos na construção de uma poesia neoclássica de muita qualidade – constituída por poemas que vão de “O carrossel” aos que formam o conjunto “Rumo a Nausicaa”, que inclui poemas memoráveis como “A morte do infante”, “Bateau pas ivre”, “Noção de pátria”, “Decius infante”, “Epitáfio” e “Move-se a brisa ao sol” –, Pignatari arriscou tudo com o concretismo, apresentando poemas como “miragem”, “beba coca cola”, “life” e “caviar o prazer”, mas voltou a crescer mesmo com o que surgiu depois do rigor concreto ortodoxo. É o que vemos em poemas como “Bufoneria brasiliensis” ou “Escova”, este de um surrealismo concreto. Não era surpreendente para quem, num poema de 1951, “Eupoema”, já havia sintetizado a modernidade: “Eu não sou quem escreve, / mas sim o que escrevo: / Algures Alguém / são ecos do enlevo”. Nos anos 1960, deu um salto que Augusto de Campos só daria nos anos 1970: lá estava “Organismo”, poema que antecipou o ideário poético de Arnaldo Antunes em Nome. Também fez “disenfórmio” (é um poema ou mera peça publicitária?), o atrevidíssimo “Cr$isto é a solução” e o mallarmaico “Stèle pour vivre nº 4”, com suas implosões e ideogramas verbais. Mallarmé, aliás, é a influência precisa de “Adieu, Mallaimê (Autoportraîte)”. Veja-se o ótimo “Stèle pour vivre nº 5” – poemas desdobrados, com o sonho de avançar para fora da página – ou “Torre de Babel” e os ideogramas que se compõem com as palavras “man” e “woman” – esperando avançar para fora da língua (tentativa reprisada em “Femme” ou “Um poema em esperanto”, nos anos 1980). Nos anos 1970, os experimentos tipológicos de “Alfabeto vertical”, antecipando o traço lúdico de cartazes publicitários (mas com tensão); a união de poemas com fotos, no conhecido “Calendário Phillips”, não diminuindo a tensão poética para registrar um diálogo mais fácil com o público.

Com o tempo, parece ingressar num espírito de poetas latinos e provençais, na seção “Poemas” de Poesia pois é poesia. Aqui, já uma influência de Augusto de Campos, em “Auragrama para Augusto”. Depois, o poema excepcional “Mayá”, desdobrando-se em mini-ideogramas com correntes metalingüísticas, a influência da semiótica, o diálogo com criadores (Peirce, Stockinger), haicais e ideogramas ampliados, a página com cortes cinematográficos e a permanente influência do barroco: “a brisa / a luz / o calor / / tateiam / / bolinam a flor / quase vexada / / e ela, voláteis, / perfumadas de cor de rosa / aos poucos / vão abrindo as pérnalas em vão / / num copo à janela” (em “Poeminha poemeto poemeu poesseu poessua da flor”). Compôs poemas sociais de ótima qualidade: “Logochicomendes” e “Colombo” fazem o que seria o pretendido “salto participante” da poesia concreta nos anos 1960. Mais recentemente, talvez sob uma influência conjunta de Marcial, Catulo e Safo, apresentou poemas únicos, como “Poema sonhado” e “Mais dentro”, descortinando uma linha erótica apenas subentendida em “caviar o prazer” da fase concreta ortodoxa. Já havia um romantismo, por vezes, exagerado, como em “Três poemas ideológicos de amor” (“Você já ouviu um pintassilgo ouvindo Beteljosa / / I amo você”), que se encerra com a aproximação corporal: “ventrava estrelas / e azul teu cheiro / e cheiros / beiravam pregas / de luz de pele / e enchiam o / cosmos um corpo / que se beijava / por inteiros” – que ecoaria no “silêncio carnal / que se fecha / e / concentra / para abrir-se” de “Para Ita Rina: um fotograma”. Num poema publicado na revista eletrônica de poesia Zunái de maio, escreve: “Olhou-me em cheiro : pelo talo, / tomo o jasmim, arranco-lhe a / - pétala ! / De branco / e pele, / lembro / de minha você. / / Aperto os dedos: aromas e / hematomas”.

Seus versos merecem ser lidos e lembrados, mas não devemos esquecer suas traduções, também de alta qualidade – sempre almejando o diálogo com outras culturas. Elas, sem dúvida, elevam o trabalho de Pignatari, seja em Retrato do artista quando jovem, cujo destaque é a tradução que ele faz para a Vita nova dantesca, seja nas traduções que fez de Marina Tzvietáieva ou de poetas de várias épocas em 31 poetas, 214 poemas, entre os quais se incluem Catulo, Marcial, Apollinaire, Horácio, Propércio, Heine. E, claro, nas duas seções de traduções de Poesia pois é poesia, nas quais se incluem nomes como Rilke, Valéry, Baudelaire, Dickinson, novamente Heine etc.

Em sua linha ensaística – da qual se destaca Contracomunicação, em que encontramos o ensaio referencial “A situação da poesia no Brasil”, na qual Pignatari define o eixo da poesia moderna do país: Drummond (cujo poema “Áporo” analisa em outro ensaio referencial) e João Cabral, a partir de uma “estirpe mallarmaica”, isto nos anos 60, quando o segundo ainda era relativamente obscuro –, destaca-se, como em sua poesia, um texto curto, mas de impacto. Tem, em suas polêmicas, um atrevimento que lembra Oswald, sobre o qual escreveu, também, nos ensaios “Marco zero de Andrade” e “Teoria da guerrilha artística”, no mesmo Contracomunicação. Provocava ao contestar, continuamente, a presença excessiva de Mário de Andrade nos estudos de literatura (contrapondo-se, inclusive, ao amigo Haroldo de Campos): “Mário de Andrade não entendeu a profundidade e/ou não quis comprometer-se com a radicalidade de Oswald de Andrade, embora temesse e julgasse imitá-lo em Macunaíma, onde, de fato, a diluiu e distorceu, com sua ‘língua brasileira’, uma certa moral oportunista e ‘sem caráter’, e com a aplicação decorativa de motivos e línguas indígenas, para efeitos de uma cosmologia mítico-folclórico-moderna”. Sobre Drummond dizia: “Era grande poeta, mas tinha uma visão cultural provinciana. [...] Não tem sequer uma idéia original a respeito de política, artes visuais, música e cinema. Não debateu idéias, não se comprometeu com elas”. Sobre a guinada, nos anos 1960, de Ferreira Gullar para a poesia social, é contundente: “Caiu no visgo artesanal, como queiram. Acho que ele ainda acredita na Grande Arte. Não percebe que isto é religião. Faz crítica de artes plásticas – para acabar com as artes plásticas!”. Propunha uma eficiente “antologia sincrônica”. Dizia que no meio da “geléia geral” da poesia brasileira alguém deveria exercer as funções de “medula e osso” (no caso, a poesia concreta), uma declaração hiperbólica quando ainda produziam poetas como Drummond, Cabral, Bandeira, Murilo Mendes, Sebastião Uchoa Leite e Hilda Hilst. Mas também foi o primeiro a ver os limites do concretismo. Leminski, que talvez fosse seu maior admirador, disse, em outra carta a Bonvicino: “a última vez q estive com décio / [...] / o décio me disse: / - é preciso acabar com o concretismo”. Pignatari tinha noção de que o concretismo não poderia ficar naqueles limites propostos inicialmente: deveria se integrar, em suma, à tradição. Em “Interessere”, escreve: “No concretismo interessa o que não é concretismo”.

Ele apresenta justamente aquele antiprovicianismo cultivado em pessoas que cultuava, algumas presentes nas memórias fotográficas de Errâncias, que trazem à luz Jakobson, Volpi, Tarsila do Amaral, Peirce, Rogério Duprat, Luigi Nono e Ezra Pound, entre outros. As massas não conhecem Pignatari – mas isso só mostra como sua poesia está na contramão do que se julga legível e compreensível. Resta ao leitor tentar compreender o incomunicável – e comemorar Décio Pignatari octogenário, esperando que ele volte a apresentar novos poemas, mostrando por que é um dos maiores poetas surgidos a partir da metade do século XX.

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