segunda-feira, 20 de abril de 2009

Augusto dos Anjos: poesia e ciência


Jorge Luiz Antonio
jlantonio@uol.com.br
Professor, pesquisador e escritor

Uma das coisas mais intrigantes e instigantes na poesia de Augusto dos Anjos é a sua permanência na memória das pessoas, apesar do vocabulário científico e rebuscado, do verso rimado e metrificado, da poesia de um outro tempo, enfim.

Um vocabulário não só científico, mas altamente filosófico, complexo na maioria das vezes, usando muita ordem indireta. Apesar do tom pessimista da maioria dos seus poemas, Augusto dos Anjos (1884-1914) permanece vivo na memória das pessoas, e isso pode ser comprovado, por exemplo, pela 40ª edição de sua obra completa pela editora Civilização Brasileira, em 1995, ou, também, pela obra completa publicada pela editora Nova Aguilar, em 1994, sob a organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno.

Mesmo para uma pessoa que faleceu aos trinta anos de idade, sua obra é bastante volumosa e de boa qualidade: 58 poemas publicados no livro Eu (1912), 46 sob a rubrica de "Outras Poesias", 39 em "Poemas Esquecidos", 62 em "Outros Poemas Esquecidos", perfazendo um total de 205 poemas.

Não tenho a intenção de fazer uma palestra erudita sobre o tema. Muitos autores já trataram disso. Nem é minha intenção repetir o conteúdo do livro Ciência, Arte e Metáfora na Poesia de Augusto dos Anjos, do qual sou autor. Para isso, eu convido os presentes a lerem o meu livro, pois certamente o discurso dele está mais adequado para uma leitura do que para uma palestra.

Agora, faz-se necessário explicar o tema: Augusto dos Anjos, poesia e ciência.

Há uma estreita ligação entre poesia e ciência? É possível fazer poesia, que é sentimento, com a ciência, que é o uso predominante da razão? É possível usar o conhecimento científico para fazer poesia?

A minha resposta é afirmativa: sim, é possível! Eu poderia explicar isso citando mais poetas, além do Augusto dos Anjos, e mais teóricos sobre o assunto, mas esta fala se tornaria um curso de pós-graduação em literatura, não só brasileira, mas também internacional. Eu poderia simplesmente lembrar a poesia de Georg Trakl, de Gottfried Benn ou de George Heym, alemães, que nasceram e viveram na mesma época de Augusto dos Anjos, e poderia me referir ao ensaio "A costela de prata de A. dos Anjos", de Anatol Rosenfeld (1985, p. 263-70). Mas esse caminho não é o melhor de todos.

Dois pontos me parecem importantes para abordar o tema a que me propus: mostrar um certo elo histórico na poesia de Augusto dos Anjos com a de alguns dos seus contemporâneos e apresentar aquilo que denomino de poesia-ciência.

Augusto dos Anjos viveu no período compreendido entre 1884 a 1914, no qual floresceu a poesia realista em suas várias facetas. De uma forma geral, a poesia parnasiana – representada por Olavo Bilac (1865-1918), Alberto de Oliveira (1857-1937), Raimundo Correa (1859-1911) e Vicente de Carvalho (1866-1924) – ocultou bastante um tipo de poesia que floresceu logo na terceira fase do Romantismo, com Castro Alves e Fagundes Varela, que ficou conhecida como poesia científica e teve dois grandes defensores: Sílvio Romero (1851-1944) e Martins Júnior (1860-1904), que buscavam "uma poesia científica", que aliasse o lirismo do poeta ao realismo de representação objetiva" (ABDALA Jr, 1985, p. 5).

O que motivava esses poetas era a Idéia Nova, tema presente em muitas das composições poéticas da época: "uma renovação cultural através da aplicação da metodologia científica em substituição ao espiritualismo romântico" (idem, p. 6).

Esse movimento é característico da década de 1870 e se concentrou em torno de estudantes de escolas jurídicas, em São Paulo e Olinda, bem como na Faculdade de Medicina da Bahia. Críticos literários, como Sílvio Romero, apontam duas expressões dessas ebulições: a "Academia Francesa" do Ceará, de 1875 a 1879, e a "Escola do Recife", em torno da Faculdade de Direito do Recife, capitaneada por Sílvio Romero e Tobias Barreto em três fases: a literária e poética, da década de 1860, a crítico-filosófica de 1870-1877-78, e a jurídica de 1878 em diante.

Augusto dos Anjos é uma espécie de um continuador dessa poesia científica e pode ser considerado o seu expoente máximo. É claro que outras qualidades podem ser atribuídas à sua poesia inovadora, precursora, em muitos aspectos, da poesia modernista que começou a surgir dez anos após a publicação do único livro do poeta, o "Eu" (1912).

Outro aspecto a que me propus desenvolver nesta fala foi o da poesia-ciência. Refiro-me à linguagem poética com base nos conceitos científicos de sua época.

Alexei Bueno, organizador da obra completa de Augusto dos Anjos para a Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, afirmou:

“Uma das bases primordiais de sua visão do mundo e, por conseguinte, de sua obra, o seu propalado cientificismo, caracteriza bem o indivíduo educado nos últimos anos do século XIX, o século por excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento e da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria, crenças cruelmente frustradas pelo advento bárbaro da Primeira Guerra Mundial, no ano mesmo da morte do nosso poeta." (1995, p. 21)


Além do aspecto geral apontado por Bueno, é importante enfatizar o uso de temas que oscilam entre científicos, filosóficos e poéticos, mostrando um gosto por um vocabulário erudito, uma certa preferência por um vocabulário incomum e científico, o que significava, na época, uma boa cultura.

Quase toda a poesia de Augusto dos Anjos aborda a relação vida-morte pelo seu aspecto mais dramático e aparentemente mais trágico, para expressar um espiritualismo profundo.

Ao lado desse aspecto, vale transcrever um depoimento de Órris Soares, que o conheceu desde 1900, que nos ajuda a entender a composição da poesia de Augusto dos Anjos e lança luzes sobre as razões da sua grande aceitação:

“De certa feita bati-lhe às portas, na Rua Nova, onde costumava hospedar-se. Peguei-o a passear, gesticulando e monologando, de canto a canto da sala. Laborava, e tão enterrado nas cogitações, que só minutos após deu acordo de minha presença. Foi-lhe sempre este o processo da criação. Toda arquitetura e pintura dos versos as fazia mentalmente, só as transmitindo ao papel quando estavam integrais, e não raro começava os sonetos pelo último terceto. Sem nada pedir-lhe, recitou-me. Recorda-me, foram uns versos sobre o carnaval, que o batuque nas ruas anunciava próximo. Declamando, sua voz ganhava timbre especial, tornava-se metálica, tinindo e retinindo as sílabas. Havia menos transfiguração na sua pessoa. Ninguém diria melhor quase sem gesto. A voz era tudo: possuía paixão, ternura, complacência, enternecimento, poder descritivo, movimento, cor, forma.” (SOARES, 1995, p. 32)


Começar o soneto pelo último terceto é preparar o desfecho e a chave de ouro. Além disso, construir o poema oral e mentalmente, antes de escrevê-lo é um trabalho poético com a linguagem, para que a sonoridade dos versos seja realmente sentida pelo leitor e/ou pelo ouvinte.

Agora, faz-se importante apresentar um poema para iniciar um comentário sobre a poesia-ciência:

A LÁGRIMA


- Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Clorureto de sódio, água e albumina ...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!


- A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina.


- O farmacêutico me obtemperou. -
Vem-me então à lembrança o pai Ioiô
Na ânsia psíquica da última eficácia!
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
(ANJOS, 1995, p. 270)

O soneto acima nos ajuda a entender o que denomino de poesia-ciência. Augusto dos Anjos parte de uma fala do farmacêutico e faz dela um verso. Do ponto de vista do farmacêutico, a lágrima é composta de clorureto de sódio (sal), água e albumina.

"Lágrima" tem no três primeiros versos o seu significado referencial, científico. Somente o último verso – A lágrima de todos os vencidos!" – é que o sentido se transforma, a partir de "de todos os vencidos".

A segunda estrofe é um diálogo entre ciência e sentimento, razão e emoção. O conhecido e o desconhecido: "a relatividade dos sentidos" da farmacologia e da medicina e os "segredos dessa secreção divina". Aqui também ocorre uma mudança de sentido em "secreção", quando o poeta inclui o adjetivo "divina".

Terminada a fala do farmacêutico, o eu-poético estabelece um outro contraste: "Vem-me então a lembrança o pai Ioiô / Na ânsia psíquica da última eficácia ...". A antítese morte-vida passa do plano científico, material, para o psicológico, o das lembranças.

O resultado é significativo como efeito de linguagem poética: "E logo a lágrima em meus olhos cai". Volta à poesia, o sentimento, em contraste com o discurso científico do personagem farmacêutico.

O conflito poesia e ciência, para o eu-poético, se resolve quase num desabafo: "Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai / Do que todas as drogas da farmácia!". Persiste e permanece a poesia, mesmo que ela seja enfocada sob o ponto de vista científico, como é o caso deste soneto.

Semelhante análise pode ser feita em

A IDÉIA

De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!
(ANJOS, 1995, p. 82)

Um poeta de outra época ou formação abordaria o tema da idéia de uma forma mais emocionante, usaria um palavreado mais sonoro e mais "poético", ou seja, dentro dos padrões poéticos de sua época, por exemplo. Para o poeta paraibano, é da matéria que sai uma energia, o espírito, e é nela, numa abordagem científica para o conhecimento de sua época, que isso se expressa: "matéria bruta", "feixe de moléculas nervosas", "encéfalo absconso", "cordas da laringe", "força centrípeta", "molambo da língua paralítica".

É claro que não é somente uma substituição de palavras e conceitos de um universo poético para um universo científico. Há uma elaboração estética de linguagem e de sonoridade.

Um terceiro exemplo a ser comentado nesta fala é

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância ...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – esse operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra.
(idem, p. 82)

Mais uma vez, é a ciência o ponto de partida para a reflexão sobre a existência e é a matéria a primeira metáfora do ser humano. O ser humano (=eu) é formado (=filho) de carbono e amônia, mas, apesar de sua composição química, sofre com a sua ignorância (=monstro de escuridão), julga-se inferior ou mau (=monstro) e parece se regido pela Astrologia.

Na sua existência curta, sabe do seu início, ou seja, o nascimento, e tem consciência da sua morte e o encontro do seu corpo com o verme (=operário das ruínas).

Esse mesmo ser humano precisa encarar essa realidade (=frialdade orgânica da terra) e descobrir um conforto para a sua vida. É o conhecimento científico que lhe dá um discernimento espiritual, ao contrário do discurso de outros poetas, em que a referência ao mundo material se faz de forma indireta.

Mesmo não considerando um trabalho de linguagem na poesia de Augusto dos Anjos, que o aproxima dos modernistas pela agressividade dos termos e dos temas, pelas imagens inusitadas que as suas metáforas provocam, pela subversão inovadora dos temas aparentemente tão contraditórios, o homem da poesia-ciência cerca o seu discurso poético nos conhecimentos científicos de que dispunha para mostrar o espiritual por meio do material, mostrando uma imagem em ruínas de um palácio encantador que fazia parte do seu ideal de criador.

Dessa forma, eu concluiria esta fala com

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – esse ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcedentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade
decrescente

Com que a substância cósmica evolui ...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular eu que ontem fui!
(idem, p. 103)

A crença na ciência, na idéia generalizada que o conhecimento científico fornece, que são as leis científicas, se torna a crença do poeta paraibano. Mas essa crença, é claro, se realiza, para ele, na poesia, que é a sua maneira particular de dialogar com o mundo. E a sua esperança, além de se tornar um homem universal, é também a seguinte:

Dissolva, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
(idem, p. 100)

Aí me parece que se confirma a sua poesia-ciência, o diálogo do poeta com o conhecimento científico de sua época, mais todos os problemas a que foi obrigado a enfrentar em sua vida curta. Restou-lhe a palavra, "agregado abstrato das saudades", e é ela que nos reúne hoje, nesta tentativa de entender e apreciar a poesia de Augusto dos Anjos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALA Júnior, Benjamin (Org.). Antologia de Poesia Brasileira: Realismo e Parnasianismo. São Paulo: Ática, 1985.

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 40.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

______. Obra completa: volume único. Organização: Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995a.

ANTONIO, Jorge Luiz. O caos e a ordem na poesia de Augusto dos Anjos (1884-1914). Face, São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC SP, ed. especial, nº 4, 1999, p.69-83.

______. Ciência, arte e metáfora na poesia de Augusto dos Anjos. São Paulo: Navegar, 2004.

BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos: origens de uma poética. In: ANJOS, Augusto dos. Augusto dos anjos: obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 21-34.

CÂNDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1999.

COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

MIRANDA, Ana. A última quimera: romance. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

PAES, José Paulo; MOISÉS, Massaud. Pequeno dicionário de literatura brasileira. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1980.

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1985.

SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Eu & Outras Poesias. 40.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p.29-46.

3 comentários:

Pedro Ricelly disse...

Eu ainda tô esperando aquele video sobre o consumo, aquele que era legendado e que você falou que iria postar aqui no blog. Eu não lembro o nome mas eu acho que é a história das coisas.

Vertebral disse...

O vídeo História das Coisas foi publicado em um artigo meu, intitulado Estócrita, no dia 10/10/08. É só procurar no blog. Abraços

Luciana Dias disse...

muito bom...vou colocar o caminho para o seu, no meu, bjsseu