Jorge Sanglard
jorgesanglard@yahoo.com.br
Jornalista, pesquisador e produtor cultural
Passados 45 anos da gravação histórica de A Love Supreme por John Coltrane, em 9 de dezembro de 1964, no Van Gelder Studio, em Englewood Cliffs, New Jersey, e 42 anos após a morte do saxofonista, ocorrida em 17 de julho de 1967, sua música permanece viva e desafiadora, pois foi elaborada como uma prece para vencer o tempo e para celebrar o supremo amor ao Divino. Depois de ter editado, no Brasil, o livro “Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis”, a Editora Barracuda lançou em 2008 a edição brasileira de outra preciosidade do jornalista norte-americano Ashley Kahn: “A Love Supreme – A criação do álbum clássico de John Coltrane”. E lançou um feixe de luz sobre esta obra-prima.
O livro anterior representou um mergulho fundo em uma das criações mais inventivas do universo jazzístico, o disco Kind of Blue, um autêntico divisor de águas na trajetória revolucionária de Miles Davis, trazendo prefácio de Jimmy Cobb, baterista e único músico vivo do sensacional sexteto do trompetista que atuou nas duas sessões de gravação em 1959. Já o lançamento em língua portuguesa de “A Love Supreme – A criação do álbum clássico de John Coltrane” revela os bastidores da gravação desta preciosidade jazzística. Assim como Kind of Blue, A Love Supreme também é considerado uma das mais significativas expressões musicais do século XX e Miles Davis (1926 – 1991) e John Coltrane (1926 – 1967) se projetaram como dois ícones do jazz moderno.
Ashley Kahn afirma que, no santuário do jazz, Kind of Blue é uma das relíquias sagradas e situa A Love Supreme como uma criação musical de Coltrane para presentear o Divino, um marco do jazz espiritual.
No prefácio de “A Love Supreme – A criação do álbum clássico de John Coltrane”, lançado originalmente nos Estados Unidos em 2002, o baterista Elvin Jones (1927 – 2004) deixaria claro: “Faltam-me palavras para dizer quanto tenho orgulho de ter feito parte do quarteto que gravou A Love Supreme, parte de um grupo que tocou e cresceu junto. Foi uma banda que me deu liberdade para explorar a música, que era um convite à inovação. Não tocávamos seguindo regras – elas não existiam ali”.
O saxofonista tenor John Coltrane (1926 – 1967), o baterista Elvin Jones, o contrabaixista Jimmy Garrison (1933 – 1976) e o pianista McCoy Tyner (único atualmente ainda vivo dos integrantes do quarteto) conseguiram, neste disco, criar aberturas para além de seu tempo. E desenvolveram naturalmente as idéias musicais do compositor, articulando um vôo sonoro livre, pleno e intenso, procurando extrair a essência da música numa oferenda a Deus. Ao expressar toda a força inventiva, musical e espiritual de Coltrane, a suíte A Love Supreme simboliza a base de uma nova concepção sonora ao romper todos os limites musicais da época e é um atestado de fé do autor ao convidar os ouvintes à reflexão. Obra ímpar na produção musical de Trane, o disco é um legado do jazzista, inspirado na fonte profunda do blues, às gerações que o sucederiam, e sua música, ora vigorosa e excitante ora lírica e envolvente, é um exemplo incontestável de que a arte verdadeira é eterna. “Quero ser uma verdadeira força do bem”, declararia o saxofonista em 1966.
Dividida em quatro partes, “Acknowledgement” – Admissão (7:43); “Resolution” – Resolução (7:20); “Pursuance” – Prosseguimento (10:42) e “Psalm” – Salmo (7:05), a suíte teria, segundo Elvin Jones, na carta e na prece impressas na contracapa do LP original, uma continuidade, uma quinta parte, ou uma parte final, onde Coltrane expôs sua alma. O próprio John Coltrane revelaria: “durante o ano de 1957 experimentei, pela graça de Deus, um despertar espiritual que me levaria a uma vida mais rica, completa e produtiva”. 1957 marcaria a trajetória do saxofonista como o ano do rompimento com as drogas e a busca de um novo caminho na vida e na música. A gravação de A Love Supreme, em 1964, seria o tributo de Trane exaltando a misericórdia de Deus.
Ashley Kahn garante que “Coltrane tinha fé – em si mesmo, em sua arte e em seu público – de que conseguiria o nível de comunicação e elevação espiritual que pretendia com sua música”. O autor revela ainda que o inverno de 1965-66 traria todos os frutos de A Love Supreme com o saxofonista ainda vivo e em plena atividade musical. De todas as condecorações públicas que coroaram as realizações musicais de Coltrane ao longo dos anos, nenhuma se compararia aos prêmios e à atenção que o disco atraiu nas poucas semanas após um ano de sua gravação e de seu lançamento. Segundo Kahn, uma votação popular feita pela revista norte-americana Down Beat, a principal publicação de jazz dos EUA na época, teve como resultado a inclusão de Coltrane no Hall da Fama da revista (“algo inédito para um músico ainda vivo”) e o recebimento de prêmios de saxofonista tenor do ano e de álbum do ano.
Kahn enfatiza que, enquanto a canção gravada por Trane mais requisitada ainda é “My Favorite Things” (R. Rodgers – O. Hammerstein), o primeiro lugar como fonte de renda – vinda do licenciamento e da difusão de músicas, além da venda de discos – permanecia com A Love Supreme, até a publicação do livro nos EUA, segundo dados fornecidos pela viúva do saxofonista, Alice Coltrane (1937–2007).
O saxofonista Frank Lowe, um dos discípulos de Trane, assegura no livro que o disco arrombou as portas e foi como uma revelação: “Eram os anos 60, e A Love Supreme parecia expressar muita negritude. Em uma época em que as pessoas falavam sobre o negro, parecia que Trane dizia mais com sua música que os caras com palavras. Com certeza, era música negra, mas ia além disso. Tinha uma universalidade que conseguia acolher outras coisas mantendo sua negritude”.
Para Coltrane,“a reação emocional é o que interessa”, declararia duas semanas antes de gravar seu disco que se tornaria uma obra-prima, “desde que exista alguma sensação de comunicação”. E Trane, ao falar do disco, enfatizaria: “Para mim, quando vou de um movimento calmo para outro de tensão extrema, os únicos fatores que me movem são emocionais, ficam excluídas todas as considerações musicais”. Afinal, o próprio compositor escreveu no texto/prece de A Love Supreme: “Um pensamento é capaz de produzir milhões de vibrações”. O filho do saxofonista, Ravi Coltrane, afirma no livro: “A Love Supreme é uma coisa muito profunda e especial, e sempre foi um ponto bem sensível para muita gente”.
O engenheiro de som Rudy Van Gelder assegurou a Ashley Kahn que Trane, Jones, Garrison e Tyner tocaram a suíte inteira em uma única sessão e também disse que nunca soube que a idéia era que fossem quatro partes até ler o texto de Coltrane para o álbum. Assim, argumenta Kahn, todos os detalhes que precisavam ser conhecidos sobre as partes da suíte – escolha de tom, como cada parte se ligaria à seguinte, quando ele entraria cantando durante a abertura – foram discutidos na noite de 9 de dezembro de 1964 no estúdio de Van Gelder. No livro, Kahn garante que, desde os primeiros momentos de seu primeiro solo em A Love Supreme, Coltrane explora amplamente a emoção: “Como um orador em aquecimento, seu saxofone começa suave, torna-se insistente, partindo de um simples riff lírico para altos níveis de alegria e graça, solenidade e pesar. Coltrane acrescenta um toque de urgência a seu som raspado característico. Quando ele ergue sua ‘voz’ no final de uma passagem, Jones e Tyner aumentam a intensidade para reforçar sua ênfase”.
O jornalista Ashley Kahn avalia que as melodias do disco abriram portas pelas quais o quarteto passava em uma montanha-russa de dinâmica com noção de tempo precisa: “A interação de seus estilos distintos era poderosa: os acordes que geram tensão de Tyner, a bateria em êxtase de Jones, as linhas de baixo fluidas de Garrison. Os solos incansáveis de Coltrane espiralavam desde sussurros meditativos a ferozes gritos engasgados com o ritmo experiente de um pastor dominical”. Segundo Kahn, o disco reuniu tudo isso em uma mistura que expôs as raízes e as influências do quarteto: o efeito propulsor e excitante dos polirritmos africanos, os tempos lúgubres do jazz modal, o lamento melancólico da música popular do Extremo Oriente, a urgência do free jazz, a agitação do bebop, a sensação familiar do blues e a liberação orgástica do gospel.
Saxofonista também discípulo de Trane, Wayne Shorter, que é budista, declara no livro: “Sei que o avô dele era pastor, e ele viveu essa experiência. Quando Coltrane começou a cantar as palavras ‘a love supreme’, não apelou para a habilidade vocal de algum cantor de sucesso. Acredito que ele afirmou ali que você deve depender de si para se comunicar. Acho que ele voltou para o ponto de partida, no qual a voz é a primeira proclamação da sua humanidade – sua humanidade é seu instrumento”.
John Coltrane escreveu no texto/prece na contracapa do disco: “Palavras, sons, fala, homens, memória, pensamentos, medos e emoções – tempo –, tudo se relaciona... tudo vem de um lugar”. E a música de A Love Supreme, na sua essência, é a expressão deste relacionamento pleno, deste supremo amor.
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