(Salvador Dali)
Denise Góes
degoes2@hotmail.com
Jornalista e socióloga
Lutas sangrentas, ideais inatingíveis, conquistas heróicas, derrotas avassaladoras. É assim, com altos e baixos que se sucedem em turbilhão, que pode ser contada a vida de Miguel de Cervantes Saavedra. Some-se à intensa agitação o mistério de algumas passagens e se terá um livro que pode ser lido como um romance: a biografia do autor do romance que inventou o gênero – D. Quixote.
No ano em que se comemoram os 400 anos da publicação do grande clássico da literatura espanhola e universal, saem no Brasil, não uma, mas duas biografias de Cervantes: As vidas de Miguel de Cervantes (José Olympio Editora), do espanhol Andrés Trapiello, e Cervantes (Editora 34), do francês Jean Canavaggio. Divergentes em vários aspectos, ambas procuram apontar um caminho para as muitas interrogações que cercam o mundo cervantino.
Desde a publicação da primeira biografia, feita por Gregório Mayans, em 1738, as várias tentativas de contar a vida de Cervantes estão repletas de dúvidas. São lacunas que provocam acaloradas discussões, que muitas vezes transbordam do ambiente acadêmico. É o caso da polêmica entre Trapiello e Canavaggio.
Ambos bebem na mesma fonte: a Vida ejemplar y heroica de Miguel de Cervantes Saavedra, a monumental biografia em sete volumes de Luis Astrana Marín (1889-1959). A Astrana é creditada a mais profunda pesquisa em documentos, livros e registros disponíveis. Seu trabalho, porém, não elucida pontos até hoje nebulosos e dá margem à discórdia entre os dois biógrafos.
Trapiello acusa Canavaggio de não reconhecer a contribuição de Astrana. “Após pedir empréstimos a Astrana, Canavaggio despeja violentas acusações sobre o saqueado”, afirma. Canavaggio, por sua vez, o acusara de ter produzido uma biografia romanceada de Cervantes. Professor universitário, Canavaggio afirma ter tido como um dos objetivos, ao escrever a biografia, separar o fabuloso do real.
Apesar dos métodos diferentes, uma coisa os biógrafos têm em comum: a tentativa de desvendar Cervantes. Como eles dizem, sabe-se mais da vida de D. Quixote do que da de seu autor. A começar pela data de nascimento.
A única informação documentada sobre o nascimento de Cervantes está em uma certidão de batismo: 9 de outubro de 1547. Acredita-se, contudo, que Cervantes teria nascido no dia 29 de setembro, dia de são Miguel, em Alcalá de Henares, cidade próxima a Madri.
Muitas são as teorias sobre as origens do escritor espanhol. Uma delas sustenta que Cervantes teria sido descendente dos reis de León, os Reis Católicos, Fernando e Isabel. Já em outra vertente, a discussão, que ainda é levantada por estudiosos, é se Cervantes era ou não cristão novo, ou seja, judeu convertido. Segundo Trapiello, o historiador espanhol Américo Castro (1885-1972) acreditava que a vida errática da família Cervantes seria uma prova disso. As biografias levantam a questão, mas nada concluem. Exemplo das muitas dúvidas que pairam sobre a vida do autor de D. Quixote.
O mais provável é que a família de Cervantes fosse de Córdoba. Juan de Cervantes, o avô paterno, teria sido advogado e ocupado vários cargos públicos em diversas cidades, uma delas Alcalá de Henares, onde teria abandonado a família.
Miguel foi o quarto filho de Rodrigo Cervantes e Leonor de Cortinas. Surdo de nascimento, Rodrigo era retraído e triste. Com poucos estudos, tornou-se cirurgião. Na época, cirurgião era um ofício depreciado, uma espécie de prático em medicina, “meio caminho entre o sangrador e o barbeiro”, segundo Trapiello.
Canavaggio contextualiza a Espanha desse início de vida de Cervantes. Em 1547, a casa dos Hasburgo reinava e a Espanha vivia o chamado Século de Ouro. O imperador Carlos V ganhou a batalha de Mühlberg contra os príncipes protestantes alemães e a Igreja Católica passou por grandes transformações com o Concílio de Trento (1545-1563). Enquanto isso, a Espanha adotava estatutos contra cristãos novos e muçulmanos. Após 40 anos de reinado, Carlos V retirou-se para um mosteiro. Em 1556, começou o reinado de Felipe II que acompanhou boa parte da vida de Cervantes, até 1598.
Pouco se sabe da infância de Cervantes, a não ser que sua família lutava contra dificuldades financeiras e transitava entre várias cidades: Alcalá, Valladolid, Córdoba. Em 1564, em Sevilha, Miguel teria estudado com jesuítas. Já em 1566, em Madri, há indicações que teria começado a escrever poesias. Em 1569, aos 22 anos, Cervantes teria ferido um pedreiro. Os biógrafos divergem quanto ao que teria acontecido. Segundo Trapiello, Cervantes teria ferido mortalmente o homem. Já Canavaggio afirma que Cervantes não o matou. De uma maneira ou de outra, foge para Roma. Lá, alista-se na Armada e, com o irmão mais novo, Rodrigo, luta contra os turcos em 1571 na batalha de Lepanto, na qual é ferido com dois tiros no peito e um na mão esquerda, que fica inutilizada.
Após a recuperação, Cervantes ainda participaria de novas batalhas antes de tentar voltar para a Espanha. Isso aconteceria em 1575 se ele e seu irmão não tivessem sido capturados por corsários e levados como escravos para Argel, no norte da África. Durante cinco anos, Cervantes viveu em cativeiro, à espera do pagamento de um elevado resgate. Seu irmão teria mais sorte e seria resgatado em 1577. Cervantes ainda amargaria quatro tentativas de fuga antes de poder voltar à Espanha, em 1580.
Aqui cabe um parêntese para a polêmica sobre a sexualidade de Cervantes. Em Um escravo chamado Cervantes, o dramaturgo e romancista espanhol Fernando Arrabal afirma, com base em documentos descobertos em 1820, que Cervantes teria sido homossexual. Trapiello aborda o assunto ao relatar as condições especiais de que Cervantes desfrutava no cativeiro, que poderiam ter resultado de uma ligação homossexual. Mas não dá crédito à versão.
O retorno de Cervantes à Espanha marcou sua integração aos meios literários. É quando escreve a novela A galatéia e peças teatrais. No plano amoroso, um caso com a mulher de um taverneiro, Ana Franca, daria a Cervantes, em 1584, uma filha, Isabel de Saavedra. No mesmo ano, casou-se com Catalina de Salazar. Segundo Trapiello, “o casamento de Cervantes é um dos mistérios mais indecifráveis de sua biografia”. Não duraria muito. Em 1587, Cervantes deixou a mulher.
Como não era possível viver apenas da literatura, Cervantes precisou encontrar uma ocupação para sobreviver. Trabalhou como comissário real da Armada espanhola e, mais tarde, como arrecadador de impostos. Mas nunca deixou de escrever.
O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, publicado em 1605, foi sucesso imediato. No mesmo ano, foi rodada uma segunda edição. “Os nomes de D.Quixote e Sancho estavam na boca do povo para apelidar a quem se parecesse com eles”, relata Trapiello. Tanto sucesso levou um escritor obscuro e oportunista, Alonso Fernández de Avellaneda, a publicar, em 1614, uma continuação da obra. Nessa altura, Cervantes já teria escrito mais da metade do segundo volume, mas teve tempo para incorporar uma bem-humorada reação à fraude literária. O volume saiu em 1615, dez anos após o primeiro.
Um ano depois, em 22 de abril de 1616, Cervantes morreu em Madri. Desde então, as hipóteses e suposições sobre passagens de sua vida alimentam disputas entre os chamados cervantinos. As dúvidas, porém, tendem a desaparecer quando a fonte é o próprio autor, até porque ele não era condescendente consigo próprio. Em Novelas exemplares, por exemplo, ele pinta um auto-retrato que é provavelmente a imagem mais próxima da aparência que teria tido:
“Este que aqui vedes de rosto aquilino, de cabelo castanho, testa lisa e descarregada, de alegres olhos e de nariz curvo,
embora bem proporcionado; as barbas de prata, que não há vinte anos eram de ouro, os bigodes grandes, a boca pequena, os dentes nem miúdos nem graúdos, pois não tem mais do que seis, e estes malpostos e pior dispostos, porque não têm correspondência uns com os outros; o corpo entre dois extremos, nem grande, nem pequeno; a cor viva, mais branca do que morena, as costas algum tanto encurvadas e os pés não muito ligeiros; este digo que é o rosto do autor de A galatéia e de D. Quixote, e de quem fez a Viagem ao Parnaso, à imitação da de Cesare Carali Perusino, e outras obras que por aí andam desgarradas, e talvez sem o nome de seu dono. Chama-se comumente Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado muitos anos e cinco e meio cativo, onde aprendeu a ter paciência nas adversidades. Perdeu a mão esquerda de uma arcabuzada na batalha naval de Lepanto, ferida que, embora pareça feia, ele a tem por formosa, por tê-la recebido na mais memorável e alta ocasião que viram os passados séculos e esperam ver os vindouros, militando sob as vencedoras bandeiras do filho do corisco de guerra, Carlo Quinto, de feliz memória”.
Os primeiros exemplares de D. Quixote chegaram à América em 1605, no mesmo ano de sua publicação. É o que conta o escritor e historiador Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) no prefácio para a 3ª edição da José Olympio Editora, de 1958. Cascudo credita ao historiador cervantino Francisco Rodriguez Marin a informação de que, entre 1605 e 1606, já seriam cerca de 1.500 livros em terras americanas.
A obra chegou ao Brasil na versão original. A primeira tradução para o português só seria publicada quase dois séculos depois, em 1794. Segundo Sérgio Molina, um dos tradutores de D. Quixote, a obra de Cervantes foi convertida bem antes para o inglês (1612) e francês (1614). Molina explica a defasagem pelo hábito de os portugueses cultos lerem em castelhano.
D. Quixote é um marco na literatura mundial de todos os tempos. Nas palavras do escritor Mario Vargas Llosa, em Uma novela para el siglo XXI, para contar a saga quixotesca, Cervantes “revolucionou as formas narrativas do seu tempo e fincou as bases sobre as quais nasceria o romance moderno”.
Para Maria Augusta da Costa Vieira, professora de literatura espanhola da Universidade de São Paulo, há diferenças consideráveis entre as duas partes da obra, publicadas com dez anos de diferença. Na primeira, o fidalgo Alonso Quijano, leitor voraz de livros de cavalaria, resolve encarnar a figura de um cavaleiro andante e sair em busca de aventuras. Surge D. Quixote. Com seu fiel escudeiro, Sancho Pança, protagoniza momentos memoráveis. É armado cavaleiro em uma estalagem, desafia mercadores, luta contra moinhos de vento e combate gigantes.
A segunda parte é marcada pela reação de Cervantes à publicação de uma continuação apócrifa e pela introdução de um personagem, Sansão Carrasco, que vai pontuar as andanças de D.Quixote e Sancho Pança. É na segunda parte que o fidalgo se defronta com a sua Dulcinéia e que Sancho passa a ser governador de uma ilha. E, por fim, é quando D. Quixote volta para casa e morre.
Hoje, é possível encontrar, no Brasil, várias traduções de D. Quixote. A mais recente é a de Sérgio Molina para o primeiro livro, lançado pela Editora 34. Em edição bilíngüe, a tradução tem a seu favor o fato de manter o humor característico de Cervantes. O lançamento do segundo livro está previsto para o início do próximo ano.
Das traduções disponíveis, a mais popular e tradicional é a chamada “dos viscondes”, de Castilho e Azevedo, publicada pela primeira vez no Brasil nos anos 1970 e relançada pela Nova Cultural. De acordo com a professora Maria Augusta, que fez o prefácio para a tradução de Molina, o maior problema “dos viscondes” é ser marcada pela linguagem lusitana e por uma interpretação própria do século XIX. Isso dificulta a interação com o leitor. Outra tradução conhecida e respeitada é de Eugênio Amado, da editora Itatiaia, em dois volumes de 1997. Há também uma versão integral de bolso da LP&M, em dois volumes e uma edição luxuosa, de 2004, em capa dura, da Nova Aguillar.
No embalo das comemorações dos 400 anos de D. Quixote, o livro ganhou versão em cordel e adaptação crítica. D. Quixote em cordel, da editora LGE, foi escrito por J. Borges, com ilustrações de Jô Oliveira. É uma adaptação que transporta o fidalgo para o agreste. Em terras nordestinas, enfrenta cangaceiros e procura sua Dulcinéia em uma favela de Campina Grande. O livro fez o caminho inverso e já ganhou uma tradução para o espanhol. Em D. Quixote – quatro séculos de modernidade (Editora Novo Século), o tradutor Mário Amora Ramos analisa a obra, da qual faz uma adaptação condensada.
Quixote para crianças
Como costuma acontecer com os clássicos, D. Quixote ganhou, ao longo dos anos, diversas adaptações especialmente voltadas para o público infanto-juvenil. De reedições feitas por escritores brasileiros a versões em quadrinhos, há muita oferta nas livrarias com o objetivo de atrair o pequeno leitor para o universo quixotesco.
Entre os lançamentos deste ano, a Ediouro trouxe de volta o D. Quixote traduzido e adaptado pelo escritor Orígenes Lessa (1903-1986), que procurou dar ao texto espanhol um ritmo mais ágil e um humor mais contemporâneo.
Ana Maria Machado reescreveu o clássico de Cervantes em O cavaleiro do sonho – as aventuras e desventuras de Dom Quixote de La Mancha (Mercuryo Jovem). A história é ilustrada por 21 desenhos,inspirados no personagem
de Cervantes, feitos em 1956, por Cândido Portinari.
A obra também ganhou sua versão em quadrinhos nos traços de Caco Galhardo. Em Dom Quixote em quadrinhos (Editora Peirópolis), o cartunista mostra as passagens mais significativas da obra, com destaque para o humor e para a batalha contra os moinhos de vento. A mesma editora também lançou neste ano outra obra de Cervantes ilustrada por Caco Galhardo, Riconete e Cortadillo, com tradução de Sandra Nunes e Eduardo Fava Rubio.
A idéia de facilitar o contato dos jovens com a obra de Cervantes levou o escritor espanhol Agustín Sánchez Aguilar a fazer uma adaptação. Era uma vez Dom Quixote (Global Editora) foi traduzido pela escritora Marina Colasanti e traz ilustrações de Nivio López Virgil. Também com o objetivo de aproximar os leitores da obra-prima espanhola é que o escritor paulistano Leonardo Chianca e o ilustrador chileno Gonzalo Cárcamo lançaram Dom Quixote (DCL). O livro traz, em linguagem simples, além da adaptação, informações sobre a obra e seu autor.
Duas outras obras merecem destaque. Uma delas é a adaptação feita pelo poeta Ferreira Gullar, Dom Quixote de La Mancha (Revan), lançada em 2002, na qual o autor procurou manter o espírito da obra e ao mesmo tempo criar um canal de comunicação com o leitor. A outra é uma velha conhecida que, em 2006, completará 70 anos. É a adaptação feita por Monteiro Lobato (1882-1922), Dom Quixote para crianças (Brasiliense).
Segundo Marisa Lajolo, professora de literatura da Universidade de Campinas (Unicamp), em texto escrito para o Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, a obra de Lobato segue as regras do gênero adaptação infantil, condensando e fazendo uma seleção de algumas aventuras do fidalgo manchego. Lobato não só adaptou, mas reescreveu o clássico. Por meio da leitura que Dona Benta faz da obra para os personagens do Sítio, Lobato aproxima a linguagem dos leitores e traz para o universo de Emília, Narizinho e Pedrinho o mundo fantástico de Cervantes.
Há, no entanto, quem olhe com reservas iniciativas como essas. “Pode gerar no leitor a idéia de que já leu a obra e fazer com que deixe de aprofundar a leitura”, afirma a professora Maria Augusta da Costa Vieira.
Soldado e Escritor
1547 Nasce Miguel de Cervantes Saavedra
1551 O pai, Rodrigo, é preso por causa de dívidas
1566 A família instala-se em Madri
1569 Após incidente no qual teria ferido um homem, deixa Madri e vai morar em Roma
1571 Participa da batalha de Lepanto, contra os turcos. Ferido em combate, tem a mão esquerda inutilizada
1575 Capturado por corsários, é levado para Argel, com seu irmão Rodrigo, onde fica cinco anos em cativeiro
1581 Vai para Lisboa, onde escreve peças de teatro
1584 De um romance com Ana Franca, nasce Isabel de Saavedra. Casa-se com Catalina de Palacios Salazar
1585 Publica La galatea. Morte do pai
1587 É nomeado comissário real encarregado de recolher azeite e trigo para a Armada Invencível
1593 Morte da mãe. Publicação do romance La casa de los celos
1597 É preso em Sevilha, após ser condenado a pagar dívida exorbitante
1598 Deixa a prisão. Morte de Ana Franca
1605 É publicada a primeira parte de Dom Quixote
1613 Ingressa na Ordem Terceira de São Francisco. Publicação de Novelas exemplares
1614 Surge uma continuação de Dom Quixote, escrita por Avellaneda
1615 Cervantes publica a segunda parte de Dom Quixote
1616 Morre em Madri, no dia 22 de abril
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