sexta-feira, 20 de agosto de 2010

"Os Autores de Hoje São Todos Parecidos"




Francesca Angiolillo
francesca.agiolillo@gmail.comm
Jornalista

Décio Pignatari fala de seu novo livro, “Bili com Limão Verde na Mão”, e diz que as artes estão num período de espera pelo novo

Bili é Belisa. Bili é também bélica e vive uma bilíada, diz o texto de inspiração concretista bolado pelos editores para a quarta capa do novo livro de Décio Pignatari — primeira ficção do autor de 81 anos desde a publicação de Panteros (1992), seu romance de estreia. Bili com Limão Verde na Mão, uma obra que, que segundo conta o autor, "levou décadas para ser feita", numa saga que começou com uma encomenda de um amigo, em uma data imprecisa entre os anos 60 e 70. "Eu imaginei aplicar uma linguagem minimalista para um conto infantil — um conto infantil para adultos. Queria pegar uma garota vivendo entre um universo rural e urbano e, ao mesmo tempo, vivendo um ritual de passagem para a puberdade." Pronto o livro, o amigo detestou. "A ideia dele do conto infantil era... um conto infantil." O trabalho foi para a gaveta, e, a cada vez que Décio o retomava, complicava um pouco mais o projeto. Até que se cansou, desistiu; até que, finalmente, chegou a oportunidade.

Diz a quadrinha popular: "Atirei um limão verde/ Por cima da sacristia/ Deu no cravo, deu na rosa/ Deu na moça que eu queria". No mundo dividido de Bili, a referência convive com outras, mais ou menos explícitas, a escritores caros ao autor. Assim, a protagonista é parente da Alice de Lewis Carroll, em seu périplo e peripécias; dos anti-heróis picarescos espanhóis, tendo por escudeiro o limão verde (que, contrariando o cancioneiro popular, ao ser atirado pela raivosa Bili, lhe atrai tudo o que ela não quer), e, por que não?, de Leopold Bloom, do Ulisses de James Joyce, que, como ela, empreende em um dia o trajeto que poderia ser de uma vida — ou de parte importante dela. No caso de Bili, a adolescência.

Assumidamente notívago, o escritor, que nasceu em Jundiaí, no estado de São Paulo, criou-se em Osasco e atualmente mora em Curitiba, aceitou levantar mais cedo para falar sobre o novo livro e, também, sobre literatura brasileira, seus próprios projetos e sobre como, hoje, caminha para o silêncio.

Bili com Limão Verde na Mão, tendo sido encomendado, e em outra época, é algo à parte do projeto estético que o sr. traçou?
Décio Pignatari: Eu tinha meu projeto de prosa. Primeiro, o livrinho de contos, que foi O Rosto da Memória. Depois o romance pequeno, Panteros, que tem muitos elementos autobiográficos e é ligado a um universo que foi até a minha juventude, em Osasco. E depois o grande romance. Esse ainda está na cabeça. Era Obra em Obras: O Brasil. Tinha a pretensão de ter o país como personagem, uma espécie de épica crítico-cômica, mas eu desisti. Estou pensando em que tipo de experimentação de linguagem e que tipo de prosa fazer.

Se já não é um épico sobre o Brasil, o que será?
Quero fazer uma espécie de "arqueologia" de comportamentos, sentimentos e histórias do início do século 20, numa cidade que começava, com a chegada dos imigrantes, a industrializar-se. Como James Joyce voltando-se para sua Dublin, eu me voltei para onde eu me criei, Osasco. Mas a ideia é mais oswaldiana, era muito mais uma retomada da experiência do Memórias Sentimentais de João Miramar, do Oswald de Andrade. Eu me lembrei de todos aqueles migrantes, da presença da ideologia anarquista. Desde criança eu ouvia falar muito desse mundo. Eu, hoje, vou inventar uma Osasco. Aquela sumiu, abrasileirou-se. Acabou virando uma cidade industrial, como se esperava, mas também um grande subúrbio, não tão organizado como deveria. Junto, desapareceram as relações entre as pessoas, as famílias, o tipo de sexo, amor, tudo mudou; entrou-se num certo tipo de estabilidade.

Essa "arqueologia" tem a ver com a sua própria biografia. Tudo o que um autor escreve passa pela sua experiência pessoal?
Na prosa, realmente, a experiência conta; onde se contam histórias, mesmo em Joyce, por exemplo, a experiência do autor conta bastante. Mas esse universo da visão subjetiva não me interessa; eu não me importo. Como eu digo, prefiro aquela linha do Oswald, que se perdeu no romance brasileiro — por causa do romance nordestino, que era um romance, no fundo, realista, o Brasil esqueceu o outro universo que estava existindo.

A prosa regionalista marcou um retrocesso?
Não um retrocesso, ela talvez devesse ser feita. No movimento romântico, o José de Alencar já tinha tentado os vários regionalismos. Isso faz parte do processo histórico brasileiro, que é atrasado. Ele está em desacordo com o relógio. Quando o romantismo já tinha morrido, com a publicação, em 1857, de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ele estava começando no Brasil. Nossa visão ainda é regionalista, a coisa da terra. Os cursos de letras sempre ficaram para trás, sempre rejeitaram as obras experimentais. No Brasil, ainda se continua achando que a história é que faz a obra. Não é.

Em 2010, sua poesia completa 60 anos. Com esse seu projeto de prosa, o sr. já não escreve poesia?
Não. Tenho feito algumas traduções, pouca coisa. Traduzi a Ode à Melancolia, do John Keats, e um trecho de Santo Agostinho. Sempre gostei muito das Confissões — traduzi o chamado Êxtase, que é a conversa dele com a mãe, Santa Mônica, onde Santo Agostinho descreve o que eu chamei de "fenomenologia do silêncio". Ele vai eliminando todos os ruídos do mundo para chegar ao silêncio, e do silêncio chegar a Deus.

A poesia concreta foi um momento apenas?
A poesia concreta fez realmente o que tinha que fazer. Foi a primeira e única revolução internacional nascida no Brasil. O fato de não se fazer mais exatamente poesia concreta não interfere no que ela mudou. A poesia em versos é uma raridade hoje. Já a influência da poesia concreta, não.

Faz sentido falar num legado?
Legado tem uma aparência estática. O que acontece é que, quando há uma revolução, como no caso do cubismo, essa revolução é dinâmica, gera alterações em todas as áreas. E sofre metamorfoses. A prosa brasileira, quer se queira ou não, mudou de Guimarães Rosa em diante. Mas não é legado. Você nota influências que se manifestam. Dinamicamente.

O que há de novo hoje no panorama literário?
Depois da poesia concreta, não surgiu nada mais de diferente. Hoje entramos numa era de quantidade. A era da globalização é a da quantificação. Não existe nenhum movimento especial. A prosa ganhou força porque, se você conquistar um mínimo de mercado, pode viver do que faz, mesmo no Brasil. Mas nossos romancistas tomam por modelo sujeitos medianos. Os escritores brasileiros que se julgam de vanguarda imitam o tal Thomas Bernhard, por exemplo — que é uma prosa mais-ou-menos. Estamos vivendo um período magmático. Todas as artes e ideias estão voltando a um magma primitivo de onde eventualmente nascerá alguma coisa nova. A produção é enorme, em todas as áreas. Mas é tudo parecido.

Ao mudar-se para Curitiba em 1999, o sr. mencionou a busca de um local mais propício para a criação intelectual. Isso aconteceu?
Eu saí de São Paulo devido ao sufoco da cidade, estava farto de viver naquele emaranhado. Resolvi ir para um lugar mais salutar. Mas não sei se vingou a ideia de uma cidade mais inspiradora. Curitiba virou uma metrópole, mas, como em boa parte do mundo, o universo cultural é provinciano. Não há publicações nem informações muito atuais sobre os eventos culturais que ocorrem no mundo. Mas é muito agradável.

O sr. lê autores contemporâneos?
Para falar a verdade, leio a prosa brasileira em diagonal. E mesmo os autores estrangeiros. Minha biblioteca hoje está closed. Mas também é natural. Não acompanho com tanta curiosidade como antes, agora eu tenho uma alta seletividade. Em minha "preguiça octogenária", prefiro ouvir música a ficar acompanhando a prosa. Eu me dedico muito pouco à leitura.

Entre as suas preferências, o sr. citou Santo Agostinho e falou de uma "fenomenologia do silêncio". O sr. caminha para o silêncio?
O silêncio de fato, para mim, é fundamental. Para citar Paul Valéry: "Paciência, paciência — paciência no infinito azul! Cada átomo de silêncio é a chance de um fruto maduro". Espero cultivar esse silêncio criativo e, de vez em quando, sair do silêncio para criar umas migalhas disso e daquilo. Que, na fase magmática em que estamos, é o máximo que eu posso fazer.

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