Sérgio Rodrigues
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Jornalista e escritor
O tradutor, escritor, desenhista e humorista Millôr Fernandes nega ter uma obra – “é coisa de pedreiro” –, mas reivindica a invenção do frescobol. Ele acha que a tecnologia franqueou a escrita a gente sem talento e desdenha a Academia Brasileira de Letras
Millôr Fernandes, o grande filósofo brasileiro (a definição é do jornalista Sérgio Augusto), vai completar 85 anos no dia 27 de maio de 2009. Esta é a versão oficial. Na verdade, nascido no subúrbio carioca do Méier em 16 de agosto de 1923, Milton Viola Fernandes já passou dessa idade. Foi registrado com quase um ano de atraso pelo pai, o engenheiro espanhol Francisco Fernandes, e sua certidão de nascimento merece respeito. É o mesmo documento que, numa bem-vinda combinação entre a caligrafia torta do escrivão e uma decisão tomada por ele mesmo no fim da adolescência, transformou Milton em Millôr. Qualquer que seja a idade, o ano que vem será de festa. Não para o próprio Millôr, que continua trabalhando todo dia em seu estúdio numa cobertura do bairro de Ipanema, perto da praia, onde cria suas colunas para a revista Veja. Foi na militância diária do profissionalismo que, órfão muito cedo de pai e mãe, esse autodidata radical construiu desde o início dos anos 40 — "há 250 anos", como ele diz — sua obra fabulosa de escritor, humorista, desenhista, artista plástico, dramaturgo, tradutor e mais um número indefinido de títulos menos vistosos, entre eles o de inventor do frescobol. Não adianta lhe pedir que mude a esta altura. Aliás, Millôr se arrepia quando ouve falar de obra: "Obra é com o pedreiro".
Mas é a obra monumental de Millôr Fernandes — não existe outra palavra — o centro da festa. Há dois anos, a Desiderata, hoje um selo do grupo Ediouro, vem repondo nas prateleiras, em edições de capricho inédito, títulos que sofriam com a dispersão por diversas casas editoriais. Millôr nunca esteve ausente das livrarias, mas é a primeira vez que o mercado lhe concede esse balanço luxuoso de uma vida de intensa produção intelectual e artística. Nunca é tarde para reconhecer um gênio. "No ano que vem, teremos três lançamentos, desta vez todos inéditos em livro", diz Gabriela Javier, editora da Desiderata. O primeiro título será Poesia Matemática, um híbrido inclassificável de trocadilhos sofisticados com a linguagem dos números e ilustrações singelas de livro infantil. Também estão previstos um novo volume de haicais e uma coletânea de crônicas publicadas em Veja. A dramaturgia e uma seleta de traduções teatrais entram na agenda de 2010. Millôr faz um balanço de sua carreira e fala da Ipanema de sua juventude, literatura, humor e política. Lula ganha um elogio, mas não escapa de deitar no divã: "É o maior ego do mundo".
Você pegou todos os presidentes desde Getúlio Vargas. Quem sofreu mais com o Millôr? José Sarney, que você destruiu naquela série de textos no Jornal do Brasil sobre o romance Brejal dos Guajas (mais tarde reunidos no livro Crítica da Razão Impura)?
Millôr: Não tenho essa consciência. A gente vai fazendo... O Sarney não sofreu como presidente, mas como escritor. Terminei a série perguntando: "Afinal de contas, Sir Ney escreveu ou não escreveu um livro? Escreveu, porque segundo a Unesco livro é uma publicação não periódica de mais de 49 páginas. E quando Sir Ney chegou, depois de muito esforço, à qüinquagésima página, fechou a máquina e gritou lá para dentro: 'Mãe, acabei!'".
Você prometeu se candidatar à vaga dele na Academia Brasileira de Letras. Pretende cumprir?
Cadeira 38, é verdade. Um perigo. Claro que vou ter que cumprir.
Promessas à parte, já lhe passou pela cabeça se candidatar à Academia?
Não é que não me passe pela cabeça: não passa por nenhuma parte do corpo. Aliás, não tenho muita admiração por aquela frase do Machado de Assis: "Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola". Bastaria dizer: "Esta é a glória que fica". Consola? Só se for um consolador de borracha.
Você costuma dar cascudos em Machado. Sua crônica sobre a suposta relação homossexual de Bentinho e Escobar em Dom Casmurro é famosa. Considera o Bruxo um escritor medíocre?
A palavra não é "medíocre". Desde criança, nunca fui induzido pelo nome. Diziam: "Você não vai gostar do Euclides da Cunha, aquela primeira parte de Os Sertões é muito chata". Um dia fui ler e achei sensacional. Guimarães Rosa eu li com certa dificuldade, mas insisti e vi que a dificuldade era minha, não dele. O Proust eu li em português, francês, inglês e espanhol: é toda uma dimensão literária. Mas o Machado não me diz nada, como o Joyce, que eu nunca consegui ler. Não acredito em ler com esforço.
A cultura escrita está perdendo prestígio no mundo inteiro. Isso é ruim?
O volume de escritos está numericamente maior e percentualmente menor. Com a internet, cada um tem seu blog, e, quando há um volume muito grande de gente praticando, tudo se abastarda. Quando se deliberou que não haveria mais métrica e rima na poesia, toda senhora de 50 anos começou a fazer poesia. Hoje o marketing é violento. Quando o cara consegue explodir, como o Paulo Coelho, está feito: nada faz mais sucesso que o sucesso. Eu só li um livro dele, um com nome árabe [O Zahir]. Outro dia ele disse que não liga para o que os tradutores fazem com seus livros. Pô, o tradutor só pode melhorar aquilo! Mas vai melhorar o Guimarães Rosa...
Você é famoso por não ser saudosista. Existe algo em que o mundo tenha sido melhor do que hoje?
Ah, sem dúvida: Ipanema nos anos 60. Fui morar lá em 1954. Meu edifício foi o primeiro, tive que espantar os índios da praia. Não havia sinal de trânsito. O Rio era uma aldeia. Antes disso eu morava na avenida Atlântica, a duas quadras do meu amigo Sérgio Porto. É impressionante o modo como a gente trabalhava. Eu ficava na praia até as onze. Todo dia tinha mil coisas para fazer, mas às sete da noite estava no bar Vilariño, às nove no Juca's Bar. Como pode? Não sei. Levava para a praia um cestinho com os jornais, ia escrevendo uns negócios e guardando ali, enquanto a gente conversava. Foi quando inventamos o frescobol.
Como foi essa história?
No começo era só peteca e mar, isto é, jacaré. No Arpoador começavam a chegar as primeiras pranchas, de dez metros. Um dia apareceu uma pessoa com uma caixa, que tinha dentro uma bola e uma raquete pesada. A gente batia e a bola voltava, como um bumerangue. Chamava-se "la pelote basque sans fronton" [pelota basca sem paredão]. A raquete já estava ali, e apareceu alguém com uma bola de tênis. A gente pegava essas bolas e esfregava com querosene, para deixá-las carecas. Nunca mais deixei de jogar frescobol. Cheguei a jogar muito bem.
Você é o maior tradutor brasileiro de teatro. Já encarou Shakespeare e Tchekov, Molière e Ibsen, entre muitos outros, mas começou traduzindo quadrinhos. É um autodidata também em línguas estrangeiras?
Autodidata é um louvor. Sou audacioso e tenho instinto, sensibilidade. E não tenho medo. Quero que o Shakespea re se dane, para não dizer coisa pior. Uma vez encontrei o Nelson Rodrigues na cidade e ele disse: "Ô Millôr, é verdade que tu melhora o Molière?". Respondi: "Nelson, sou mais velho que o Molière. Traduzo com absoluta fidelidade, mas, se ele deixar uma bola na cara do gol, eu chuto".
É mais importante para um tradutor dominar seu idioma do que a língua-fonte?
O importante é a língua para a qual se traduz. No teatro, então... Um dia o [diretor de teatro] Gianni Rato chegou aqui com A Megera Domada. Eu falei que não sabia traduzir aquilo. Aí fui pesquisar as traduções que existiam. Olha, é inacreditável: o pessoal cortava trechos, dizia uma coisa pela outra, e humor ninguém sabia. Fiz uma Megera Domada melhor e aprendi o valor do trocadilho. Dizem que o trocadilho é a mais baixa forma de humor, mas, se você tirar o trocadilho de Shakespeare, ele desaparece. O Agrippino Grieco escreveu: "Menotti del Picchia, fecha a braguilha do teu nome!". Isso é ótimo! Não dá para dizer de outra forma.
Quais humoristas brasileiros você admirava quando começou? Era fã do Barão de Itararé?
Não era e fui ficando cada vez menos. Ele tem meia dúzia de coisas, o marketing do Rio Grande do Sul e aquela bobeira fundamental: você diz que uma coisa é boa e as pessoas acreditam. Em São Paulo, houve um humorista popular muito bom, o Juó Bananere, que ninguém conhece.
Quem faz o Millôr rir no humor brasileiro de hoje?
Hoje está tudo espalhado, existe muita gente boa por aí que eu não conheço. Mas dos meus colegas tem o Jaguar, o Chico e o Paulo Caruso, os paulistas como o Laerte e o Angeli, muita gente. Escrevendo é que eu vejo poucos além do Verissimo, que está consagrado.
Você conviveu com Nelson Rodrigues. Concorda que ele é o maior dramaturgo brasileiro?
Ninguém vai desfazer esse mito, mas é um mito com fundamento. O Nelson tem humor. Com meia dúzia de frases, liquida o Barão de Itararé: "Eu não sou machista, machista é a natureza".
Qual é a melhor peça de teatro do Millôr?
Flávia, Cabeça, Tronco e Membros. Foi encenada uma vez só, com direção do [Luiz Carlos] Maciel. Um dia fui ver um ensaio e nunca mais apareci, nem na estréia. Não entenderam nada. Acho excelente, mas morreu. Foi a única peça que não escrevi de encomenda. Minha vocação é essa. Não trabalho por dinheiro, mas sem dinheiro eu não trabalho.
É por isso que você nunca escreveu um romance? Porque nunca pediram?
Até pediram, mas não sei... A Luciana Villas-Bôas, editora da Record, foi uma que pediu. Como a minha autobiografia. Eu acho que seria uma biografia precoce. Mas já tenho um título, para o caso de um dia escrever: Ecmnésia. É aquele passado edulcorado. Tudo parece bonito no passado, mas volta lá para você ver.
É mais difícil fazer humor com o governo Lula do que com a ditadura militar?
O problema é insistir em coisas ultrapassadas. O Lula ocupou seu espaço. Acho que o Fernando Henrique é intelectualmente pior, mas no começo pensei que o Lula fosse pedir auxílio a ele para as ligações internacionais. E hoje ele é um embaixador do Brasil como não existe igual. Descobriu que, com o tradutor automático, pode falar as maiores besteiras porque vão corrigir. O Freud ficaria besta com o Lula: é o ego maior do mundo.
Você ficou feliz com a eleição de Barack Obama?
"Feliz" não é a palavra, não é algo pessoal. Queira ou não, ele é parte da história. O mundo mudou. E eu já tenho todo o direito de fazer a brincadeira do racismo ao contrário. De agora em diante vou botar em todo lugar: White is beautiful. Aliás, black is beautiful é um belo slogan. Isso é que é linguagem: não se pode tirar nenhuma palavra. Gosto de uma frase minha: "Livre como um táxi". Não dá para tirar nenhuma palavra, e não há nada menos livre que um táxi...
Daqui a 200 anos, quando se mencionar o nome do Millôr, em que parte da sua obra vão pensar primeiro?
Não acredito em obra, mas depois de 250 anos escrevendo, com aquele negócio de fazer uma frase hoje e outra amanhã, tenho muita coisa, muito pensamento espalhado por aí. "Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem", por exemplo. É evidente que algumas dessas frases persistirão.
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