quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Muito além dos jardins

Gisele Kato
gisa.kato@hotmail.com
Jornalista

Às vezes, é preciso se distanciar de um cenário rotineiro para descobrir nele aspectos que passam despercebidos. Milhares de pessoas andam a pé, todos os dias, pelo calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, um dos cartões-postais do país. Durante a caminhada, fica difícil deixar de notar como o desenho ondulante das pedras do passeio dialoga perfeitamente com a própria baía e o Pão de Açúcar, ao fundo. No entanto, revela como a harmonia dessa conhecida paisagem se constrói de maneira bem mais sofisticada. A curva da praia combina não apenas com o piso da calçada, mas também com as árvores plantadas na ilha central da avenida Atlântica e com os jardins calculadamente dispostos ao lado dos prédios. Vista assim, do alto, Copacabana parece uma pintura modernista. Não por acaso, foi o primeiro projeto paisagístico a ser exibido numa bienal de arte, a de Veneza, em 1970. O autor da obra: o brasileiro Roberto Burle Marx (1909-1994), que ajudou a desenhar, com plantas, flores e lagos, alguns dos endereços mais divulgados do Brasil, como o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, o Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.

Para Burle Marx, o artista, vale a mesma máxima de que a distância — no caso temporal — ajuda a mostrar a real dimensão das coisas. Só agora, às vésperas do centenário de seu nascimento, tem-se uma exposição abrangente sobre o legado do paisagista, que se abre, no próximo dia 12, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Em conjunto, sua produção impressiona. "Roberto Burle Marx, Lucio Costa e Oscar Niemeyer formam a trinca central para que o nosso modernismo tenha adquirido características próprias, que foram além do racional-funcionalismo em voga na época na Europa e defendido por Le Corbusier", diz Lauro Cavalcanti, curador da retrospectiva intitulada A Permanência do Instável. Além de ter implantado em sua arte as curvas do modernismo brasileiro, Burle Marx é inovador por várias outras razões:

• Imprimiu aos jardins um caráter pictórico, como fica
claro na foto aérea de Copacabana, ao lado. Trata-se de um pensamento visual que se afina com as criações em tela, pois o paisagista também foi pintor — e dos bons.

• Incorporou plantas brasileiras às suas criações, uma atitude pioneira na década de 1930.

• Descobriu novas espécies, que levam seu nome.

• Foi um dos precursores da consciência ecológica nos anos 70, quando começou a dar palestras sobre o assunto.

• Criou o conceito de "jardim vertical", com arranjos que escalam totens metálicos e esculturas de pedra.

• Inovou numa forma — o jardim — que havia séculos tinha características estabelecidas: os franceses com sua simetria, os italianos com suas fontes, os ingleses com seus caminhos sinuosos.

• Fez do jardim uma "experiência estética", para causar sensações a quem o atravessa, antecipando, de certa forma, o pensamento das instalações contemporâneas.

Com 80 pinturas em tela, 16 pinturas sobre tecido, 95 guaches sobre papel, cinco esculturas em vidro murano, três tapeçarias, 34 projetos paisagísticos, 26 maquetes e 12 jóias, além de muitas fotos, documentos, objetos pessoais e dois documentários, a mostra no Paço Imperial pretende abarcar um universo extenso, fruto do esforço de um homem que preferia "pecar pelo excesso a parar por covardia". Disposta em ordem cronológica decrescente, a seleção começa com os cenários feitos para uma adaptação teatral do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, nos anos 90, e chega à década de 1930, com desenhos e guaches. Para cada momento, o curador escolheu exibir ainda um projeto de paisagem significativo no período, o que permite ao público traçar paralelos entre as várias formas de produção do artista. Estão lá painéis com detalhes dos jardins do Ministério da Educação e Saúde Pública, planejados em 1938, o Aterro do Flamengo, de 1961, e o já citado calçadão da avenida Atlântica, construído em 1970 (leia mais sobre os projetos nas legandas ao longo desta reportagem). Não por acaso, três obras situadas no Rio de Janeiro, que deve a Burle Marx grande parte de seus cartões-postais menos óbvios — quase todos em que não aparecem o Cristo e o Pão de Açúcar.

O artista nasceu em São Paulo, mas morou praticamente a vida toda no Rio. Em 1928, sua família decidiu viver um ano na Alemanha, terra do pai, Wilhelm Marx, um homem culto, amante da música erudita e incentivador incansável das escolhas do filho, quaisquer que fossem elas. Antes da viagem, o jovem de 19 anos encontrava-se indeciso sobre a sua vocação profissional. A pintura já era uma paixão forte, mas a música também o encantava. Nos intervalos entre uma atividade e outra, ele ainda corria para o jardim que cultivava em casa havia mais de uma década, só com plantas nativas da encosta da pedra do Leme. O gosto pela mata recebia o apoio da mãe, Cecília Burle, de ascendência francesa, que dizia ver no verde o espírito divino.

Berlim funcionou para Burle Marx como um mergulho profundo em tudo aquilo de que ele gostava. Foi a muitos concertos e se familiarizou ainda mais com as peças dos compositores românticos Wagner, Schumann e Schubert. Visitou muitos museus e conferiu de perto a revolução cubista protagonizada por Picasso e Braque, isso sem contar as telas iluminadas pelas pinceladas nervosas de Van Gogh. Mas o encontro que viria a se impor como definitivo para sua trajetória artística deu-se de forma bem despretensiosa, disfarçada até. No Jardim Botânico da capital alemã, Burle Marx se encantou com as estufas de espécies tropicais — e levou um susto quando leu na placa de identificação da maioria das plantas a sua origem: Brasil. Sim, ele teve de atravessar um oceano para enxergar direito as bromélias e palmeiras que cresciam por aqui aos montes. Voltou ao Rio decidido a estudar pintura, conformado em cantar peças líricas só para os amigos e intrigado com a beleza de uma flora tipicamente brasileira. Na época, ainda não sabia direito o que fazer com aquele encantamento.

Por Uma Paisagem de Curvas

O endereço da família, na então rua Araújo Gondim, no bairro carioca do Leme, garantiu-lhe aquela dose de sorte de que todo gênio em início de carreira precisa. Seu vizinho era ninguém menos do que Lucio Costa. Em 1932, o já respeitado arquiteto e urbanista riscava para a família Schwartz, em Copacabana, a primeira casa modernista do Rio de Janeiro, em parceria com Gregori Warchavchik, e convidou o amigo Burle Marx para criar seus jardins. Costa vinha acompanhando a evolução das composições tropicais que seu colega fazia no quintal e resolveu apostar nele para complementar um projeto que buscava justamente as linhas e formas genuinamente brasileiras. Entusiasmado, Burle Marx contava que tentara aplicar de uma vez tudo aquilo que tinha em mente e o resultado acabou ficando "um peru no pires" — ou seja, informação demais em pouco espaço. Depois dessa experiência, no entanto, não parou mais. Em seu jardim de estréia, as plantas distribuíam-se por canteiros redondos, em contraponto ao quadriculado das placas do piso do terraço. Burle Marx esboçava assim o jogo plástico que iria modificar os parâmetros artísticos da época e definir uma nova escola. Curvas, como as que acompanham este texto, impunham-se como uma característica forte, que logo iria dominar os contornos da arquitetura moderna brasileira.

Burle Marx consagrou-se como o grande paisagista do século 20. Além, é bom fazer justiça, de um pintor nada desprezível — e de um cantor capaz de embalar alguns dos mais longos e animados almoços cariocas. Tudo regado a uma bebida inventada por ele, a "pitangolangomangotango", como anunciava, rindo, a mistura de suco de pitanga e vinho. "As reuniões no sítio Santo Antônio da Bica (a casa do paisagista a partir da década de 1950 e hoje sítio Burle Marx, em Barra de Guaratiba, no Rio, patrimônio do Iphan), eram uma delícia. Lembro que até a toalha da mesa era pintada por ele, que também montava arranjos de flores para cada canto. Ficávamos diante de minipaisagismos a cada encontro", lembra a amiga e crítica de arte Lélia Coelho Frota.

"Não houve no mundo quem levasse a estética moderna para o paisagismo como o fez Burle Marx; daí sua dimensão. As curvas que surgiriam depois nas construções de concreto armado de Lucio Costa e Oscar Niemeyer apareceram pela primeira vez nos jardins de Burle Marx", conta o curador Cavalcanti. De fato, os acabamentos arredondados são um aspecto de destaque no universo do artista. Basta pensar, mais uma vez, nas ondas em preto-e-branco da calçada de Copacabana, de imenso poder gráfico. Tem-se lá 4,5 quilômetros de uma espécie de painel gigante, pontua do por coqueiros. Desenhada em pedra portuguesa, um de seus materiais preferidos por causa justamente da maleabilidade, a padronagem serve de carro-chefe para muitas outras que enfeitam as ruas cariocas. Visto de cima, o Rio de Janeiro é todo marcado pelo preto, branco e vermelho fechado das pedras aplicadas, seguindo os traços das pranchetas do mestre.

A revolução perpetrada por Burle Marx no paisagismo moderno não se detém no uso recorrente das formas redondas e na utilização de espécies nativas. "Ele transportou para o jardim as idéias inovadoras de sua geração", analisa o curador. E inovou. Muito. O arquiteto Haruyoshi Ono, que trabalhou com o artista durante 30 anos e até hoje comanda o escritório dele, o Roberto Burle Marx & Cia. Ltda., no Rio de Janeiro, diz que as paredes cobertas de vegetação são outra invenção do sócio: "Ele tinha um conhecimento múltiplo e estava sempre disposto a ensinar. Misturava plantas com totens metálicos e esculturas de pedras. Explorava os tons de verde, as cores das flores".

Mosaicos Orgânicos

Admirar os jardins de Burle Marx é perceber seus contrastes, texturas e volumes. Ele abandonou o modelo quase estático europeu, em que predominavam as rosas, azaléias e magnólias, para explorar as possibilidades de montagens mais livres, que em muito se assemelham à própria mata virgem. Planejava suas criações levando em consideração as tonalidades assumidas pelas plantas ao longo de cada estação do ano, em um exercício ao mesmo tempo de controle e submissão às mudanças às vezes imprevisíveis da natureza. Em nome de um desafio constante, evitava a todo custo qualquer tipo de fórmula e chegou a inventar um termo para definir seus próprios princípios: chamava de "extravasaria" a sua cartilha particular. "Extravasaria significa sair e procurar outros caminhos, contra a rotina", definia.

Segundo o crítico francês Jacques Leen hardt, autor do livro Nos Jardins de Burle Marx, lançado em 1994 pela editora Perspectiva, o paisagista tinha plena consciência de que o impacto de sua obra virtuosa se escorava em dois -aspectos fundamentais e simultâneos: o deslocamento do próprio visitante pelo espaço e sua percepção sensorial. "A experiência do jardim é toda ela feita de ritmos. Como experiência física, põe evidentemente em jogo a própria estrutura do corpo: sua verticalidade. O homem na natureza e, por conseguinte, no jardim, é sempre uma vertical móvel que se desloca em relação a uma horizontal fixa", diz na publicação. Peça para puro deleite, sedutora por deixar os sentidos em estado de alerta, um jardim conta ainda, como escreveu Leen hardt, com a dimensão do tempo, alterando-se conforme o crescimento das espécies, podas e replantios. O estudioso fala em um trabalho em "perpétua modificação".

Para manter esse nível de renovação, Burle Marx acompanhava sempre botânicos em expedições de pesquisa. Até nesse aspecto, não é absurdo comparar as excursões do paisagista às viagens dos intelectuais modernistas pelas várias regiões do Brasil, em busca de nossas raízes. Ao longo da vida, Burle Marx descobriu um gênero e 18 espécies de plantas, todas batizadas com seu nome. Dessas aventuras pelas florestas, formou ainda uma consciência ecológica pioneira. Na década de 1970, ele deu muitas palestras em que alertava para a devastação do meio ambiente, uma postura nada comum no período.

Terreno como Tela, Planta como Tinta

Sobre o diálogo entre paisagismo e pintura, Burle Marx repetia sempre: "Sei muito bem qual a linguagem dos jardins e qual a linguagem das telas. Não as misturo nunca, mas considero o domínio desses dois campos fundamental para a manutenção da criatividade em um e no outro". Por isso, os críticos e especialistas em sua obra insistem tanto na importância de dominar a produção de Burle Marx por inteiro para melhor entendê-la em cada área: "Há uma conversa muito íntima entre sua pintura e seu paisagismo. Estabelecer paralelos não só é possível como desejável", defende o curador Lauro Cavalcanti.

De fato, Burle Marx não realizou pouca coisa no campo da pintura. Foi assistente de Candido Portinari no fim dos anos 30, trabalhou com Alberto da Veiga Guignard e chegou a dar aulas para Lygia Clark. Nunca se filiou a uma escola estética, embora tenha flertado com quase todas. O amigo Luiz Áquila, também pintor, que ajudou Cavalcanti a selecionar algumas das obras para exibição, recorda que nada o deixava mais feliz do que ver alguém interessado em suas telas. "Talvez porque tenha sido um lado mais esquecido de sua carreira", analisa. Em retratos, naturezas-mortas e paisagens, é, no entanto, impossível deixar de notar o colorido explosivo de uma paleta que remete quase que automaticamente à natureza.

O único desgosto de Burle Marx foi não ter conseguido implantar, em seu sítio em Santo Antônio da Bica, cursos de paisagismo e ecologia. Mas o "poeta dos jardins", como Tarsila do Amaral o apelidou depois de uma visita a suas estufas, deixou muitos oásis pelo Brasil, além de em cidades como Washington e Caracas, que falam por si sós. Modesto, em um dos documentários que serão apresentados na mostra do Paço Imperial, ele divaga: "De certa maneira, fui poeta da minha própria vida". E, com sua poe sia, mudou os parâmetros da arte moderna no país.

Um comentário:

Unknown disse...

Por favor, tenho uma foto de um 'velho artista' do Rio de Janeiro tirada em 1986.

Foi enviada por uma amiga da Canadá.

Gostaria saber se esta foto é do Roberto Burle Marx.

Meu e-mail é steveallen@marketingyourmusic.net

Desde já agradeço qualquer ajuda que me pode oferecer.

Steve Allen