domingo, 1 de agosto de 2010
A dinâmica dos meios de comunicação
Clóvis de Barros Filho
cbarrosf@usp.br
Graduado em direito e em jornalismo, mestre em Science Politique - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.
A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na produção da notícia, mas também suas críticas acadêmicas mais ingênuas
Infelizmente o sociólogo Pierre Bourdieu legou poucos estudos e reflexões sobre os meios de comunicação. Apesar de uma produção abrangente que discute desde problemas relativos à estrutura do ensino (A reprodução), passando por complicadas questões sobre o gosto, a arte (A distinção, As regras da arte), e até mesmo tratando questões ligadas ao mercado imobiliário (As estruturas sociais da economia), Bourdieu pesquisou muito pouco sobre a comunicação. Seu principal texto sobre o assunto foi publicado no Brasil, em livro, intitulado Sobre a televisão. Texto este muito aquém de seus outros trabalhos. Tanto no número de páginas, quanto no rigor de pesquisa e na profundidade do assunto. Coube então aos seus discípulos, engajados no campo da comunicação, usar as ferramentas oferecidas por ele para o estudo da mídia.
Partindo dos referenciais teóricos de Bourdieu, podemos afirmar que o gosto, determinante de nossas inclinações aos atos de consumo midiático, tem uma origem social. Assim como a própria produção desta. E, por essa razão, ambas devem ser objetos de investigação sociológica. Sociologia do consumo midiático. Sociologia de sua produção. Problemas intrínsecos para quem faz uso dessa maneira de ver o mundo.
Com base em A distinção (1975), de Bourdieu, podemos constatar que tanto a produção como o consumo de produtos ligados aos meios de comunicação de massa não apenas possui uma origem social. Ela também discrimina e hierarquiza seus agentes. Classifica socialmente. Diferencia o leitor da revista CULT da leitora da revista Contigo, e exclui prováveis consumidores de revistas pornográficas que utilizam papel couché fosco. O consumo de mídia é, portanto, objeto de distinção social. Assim como também discrimina os agentes sociais que trabalham nesses meios, bem como seus textos.
Teoria sobre dominação
A definição do que é um meio de comunicação legítimo é, assim, uma questão de primeira importância para todos os agentes do grupo social. Afinal, alguns meios dominantes, como a Rede Globo e a Editora Abril, por exemplo, pretendem conservar o status quo midiático, enquanto outros, como a Rede Record e SBT, editoras periféricas e portais de internet apostam na subversão da ordem estabelecida, isto é, da relação de forças que estrutura o espaço da comunicação. Por isso, essa relação de forças acaba se objetivando numa relação de valores. Afinal, toda a vida organizada em sociedade, a menos que se recorra à violência física, deve ser reconhecida e aceita como legítima.
Por isso, a sociologia que estuda os meios de comunicação, como proposto por Bourdieu, é indissociável de sua teoria sobre a dominação. É pela demanda de seus produtos (vulgo Ibope) e pelas manifestações dos telespectadores que os dominantes asseguram suas posições. Abre-se, aqui, todo um campo de análise dos conflitos e da violência simbólica em jogo pelos meios, na qual os dominados participam da construção de legitimidade imposta, aceitando suas posições e ratificando um tipo dominante de se fazer produtos midiáticos.
Mas se a mídia é um objeto sociológico que recentemente se impõe, constitui-se num objeto de investigação particularmente dramático para o sociólogo. O consumo midiático que, de certa forma, o traduz fenomenicamente, é um imenso depósito de pré-construções naturalizadas, portanto ignoradas enquanto tais no cotidiano, que funcionam como instrumentos habituais de construção. Todas as categorias comumente empregadas na identificação de suas tendências, idade - jovens e velhos -, sexo - homens e mulheres -, renda - ricos e pobres -, são contrabandeadas do senso comum, pelo discurso científico, sem muita reflexão. Alem disso, o padrão de quem avalia um produto televisivo, por exemplo, é o padrão enraizado pela trajetória social desse avaliador nas suas experiências com os diversos programas de televisão com que teve contato desde a infância.
Essas categorias de análise do produto midiático fazem parte de todo um trabalho social de construção de grupo e de uma representação desse grupo infiltrada na ciência do mundo social. É o que explica tanta facilidade de adaptação. Facilidade exagerada, talvez. Aceitas as categorias, listas e mais listas de dados estão à disposição do pesquisador para confirmação ou refutação parcial.
A investigação sobre as inclinações de audiência deste ou daquele nicho - respeitados os critérios estatísticos de amostragem - ganham aura de constatação científica. A indiscutibilidade desse tipo de resultado legitima procedimentos e suas premissas. Encobre seu caráter arbitrário. Isso porque as escolhas técnicas, as mais aparentemente empíricas, são inseparáveis das escolhas de construção de objeto, as mais teóricas. Logo, explicar a produção dos meios de comunicação através de dados de audiência, tiragem, assinantes, cliques, e quantidade de anúncios recai num equivoco grave que só é justificado pelo imaginário do senso comum.
"Um jornalista escreve para outro jornalista"
O campo de produção de conteúdos midiáticos tem regras próprias que se encontram em seus próprios agentes e nas suas relações com os demais. No meu livro O 'habitus' na comunicação, mostro como a produção jornalística é fruto de um habitus jornalístico, utilizando o jargão de Bourdieu, onde os critérios de fato jornalístico e de pauta não são meras estratégias burguesas de dominação, como diria um marxista, mas sim frutos de uma interiorização da aprendizagem jornalística. Interiorização esta que aprende a ver o mundo segundo uma determinada importância, classificada em certas editorias jornalísticas (primeira página, cidade, esporte, internacional etc.), pensa numa quantidade "x" de caracteres, e avalia a matéria segundo as observações de seus pares. Como nossos pesquisados confessam, "um jornalista escreve para outro jornalista". Assim como em nossas pesquisas sobre o campo publicitário, feitas na Escola Superior de Propaganda e Marketing, escutamos constantemente entre os dominantes a mesma observação: "Minha propaganda se impõe contra meu concorrente... Apesar de existirem as exigências do briefing imposto pelo contratante, nossa equipe está pouco preocupada com a recepção do público final. Só nos interessa o que nossos colegas vão dizer".
O forte apego à pesquisa de campo, exigência central feita pela sociologia de Bourdieu, desmascara não só o discurso interessado dos agentes da comunicação mas também o senso comum acadêmico que avalia a mídia segundo "achismos". Ao constatar que o discurso de um jornalista, ou de um relações públicas, não é em nenhum momento pautado pelos critérios "idealistas" de transparência, objetividade, neutralidade e democratização do conhecimento, constatamos que tais produções são frutos de um jogo de desejos. As matérias são selecionadas e escritas visando atingir interesses os mais diversos, determinados pela posição do agente no campo. Sem altruísmos e sem pensar no "bem comum", apesar de seus discursos identitários.
Jogo da comunicação
Nem mesmo os publicitários, tidos como manipuladores, estão interessados no bem de seus clientes ou dos consumidores. No que se refere aos discursos acadêmicos dominantes sobre a comunicação, a sociologia de Bourdieu, através de uma pesquisa de campo rigorosa, expõe as ingenuidades e os erros que perspectivas marxistas e pós-modernas fazem da produção midiática. Há, sim, interesses envolvidos na fabricação de uma notícia, como ambos denunciam. Mesmo nesta matéria que eu escrevo, denunciando os interesses. Porém, o comunicador não é movido por uma ideologia burguesa para a dominação de massa. A reunião de pauta das grandes mídias não é, em nenhum momento, uma reunião de porcos asquerosos que visam camuflar a exploração capitalista e combater a ameaça comunista até seu total extermínio, posição esta compartilhada por muitos acadêmicos da "velha guarda" e por jovens, cheios de hormônios, que habitam os centros acadêmicos.
A produção da notícia, ou da propaganda, também não é fruto de desejos individuais que querem se expressar em toda sua "força" visando sua satisfação e fluidez, característico das ditas "sociedades pós-modernas" de consumo. Não é o hedonismo naïf o "combustível" que move os comunicadores de diversas áreas, como querem acreditar os pensadores pós-modernos. São desejos complexos de aceitação no campo, disputa e dominação que estão em jogo. São os troféus dos campos e suas posições de destaque e dominância o fim último da produção de notícia. A "preocupação" com o leitor, telespectador, ou consumidor é somente uma desculpa para justificar seus acertos ou fracassos. Respeitar o "bem" da empresa que contrata o comunicador é somente uma mera desculpa para se manter empregado e continuar jogando o jogo da comunicação. Jogo esse com regras bem claras, mas quase nunca expressas.
Por essas duas razões, a sociologia de Pierre Bourdieu encontra dificuldades em se estabelecer no mundo acadêmico e mercadológico. Os métodos de investigação, e seus resultados, desmancham os mecanismos de defesa de ambos os campos. Desmascara os agentes da comunicação e os interesses acadêmicos mais sórdidos. Ao encarar tanto a produção da noticia ou publicidade e sua crítica voraz como produtos de consumo recheados de interesses, essa sociologia cria inúmeros inimigos. Nesse sentido, imita seu próprio criador. Odiado em vida por muitos e admirado por muito poucos.
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