Rodrigo C. Vargas
Há séculos o sentido político é deteriorado. O resultado é desastroso, nós. Diferentemente do ser político grego virado para o outro e de frente consigo, nós disfarçamos o olhar para o umbigo e colocamos estrategicamente as mãos nos bolsos (de quem?). Vocês precisam de mim!
Tudo isso pode ser explicado numa só palavra, alienação. A maioria não sabe dizer o que faz um deputado, governador ou presidente. É a falta que nos faz? Não sei, mas entendo que ser político no Brasil virou profissão e que muitos sabem o quanto ganha um parlamentar. Antigamente todos queriam ser médicos, advogados ou engenheiros quando crescessem. Hoje, o desejo maior é o de ser jogador de futebol e para os pernas de pau, o planalto. Meu filho quando crescer vai ser deputado! E ele é bom de administração? Não, que isso! Ele é bom é de matemática.
A desmoralização é tamanha que fica claro já nas campanhas que respeitar o outro não faz parte de nenhum plano de governo. Carros de som em pleno engarrafamento, bandeiras tremuladas por mãos femininas ( mulheres vestidas até o pescoço) ao meio dia numa avenida movimentada, caixas de luz onde o marcador se esconde por trás de adesivos com imagens de candidatos e por fim alguns milhares de eu sei o que fazer
Essa sentença é o extrato do vazio deixado pelo fim da coletividade. A afirmação do individuo como potência destitui tudo aquilo que acreditamos defender o primeiro pensamento e abre espaço para piadas de mau gosto como a de um comediante candidato com o slogan “Vote em Tiririca, pior que está num fica.” O que me preocupa não é a candidatura - até por que faz parte do exercício democrático - é a possibilidade de ser eleito.
(...) Sem nos afastarmos do senso comum, é oportuno suspender o julgamento que poderíamos fazer de uma tal situação e desconfiar de nossos preconceitos até que, de balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados; ou se suas virtudes são mais proveitosas do que funestos seus vícios, ou se o progresso de seus conhecimentos constitui compensação suficiente dos males que se causam mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que deveriam dispensar-se; ou se não estariam, na melhor das hipóteses, numa situação mais feliz não tendo nem mal a temer nem bem a esperar de ninguém, ao invés de ter-se submetido a uma dependência universal e obrigar-se a receber tudo daqueles que nada se obrigam a lhes dar. (Rousseau)
É preciso mudar duas coisas para termos certeza de que os que querem estar lá, realmente desejam trabalhar. Obrigar por lei que os servidores públicos utilizem somente o serviço público e cobrar o cumprimento sob pena de inelegibilidade do que for dito em campanha. Assim vamos negá-los a possibilidade de não ter nenhuma piada devidamente devolvida durante a campanha, como é hoje. Que tal?
domingo, 29 de agosto de 2010
sábado, 28 de agosto de 2010
As razões de Werther
(Heinrich Christoph Kolbe)
Magali Moura
magali.moura@uol.com.br
Professora adjunta de literatura alemã na UERJ
"Mau seria se cada um não tivesse em sua vida uma época em que Werther lhe parecesse como escrito especialmente para si." Goethe
Primavera de 1772. Goethe, advogado recém-formado, chega a Wetzlar para estagiar e conhece em um baile Charlotte (Lotte) Buff, noiva de Christian Kestner. Apaixona-se pela moça e se torna amigo do casal, chegando a lhes comprar o anel de noivado. Suas inclinações não são correspondidas e retorna abruptamente para Frankfurt. Setembro: em sua viagem de volta, hospeda-se na casa de uma amiga de sua mãe, Sophie de la Roche que escrevera, em 1771, um romance epistolar A senhorita de Sternheim e lá conhece sua filha Maximiliane. Outubro: troca intensa de correspondência com Lotte e Kestner que o informa do suicídio de seu colega desde os tempos de estudante em Leipzig, Carl Wilhelm Jerusalém. O também jovem jurista, sensível e dotado de talento artístico, sentia-se infeliz por não ser reconhecido profissionalmente e também por estar perdidamente apaixonado por uma mulher casada. Após tomar emprestado um par de pistolas de Kestner, põe fim à vida. Janeiro de 1774: Maximiliane, agora casada com um comerciante bem mais velho e infeliz, muda-se para Frankfurt e passa a freqüentar a casa de Goethe que se apaixona pela jovem sem esperanças. Fevereiro de 1774: aos 24 anos de idade, depois de saber do suicídio de Jerusalém e após passar pela sua segunda grande decepção amorosa em um curto intervalo de tempo, Goethe encerra-se em seu quarto em "uma solidão completa" e escreve em menos de quatro semanas, "de modo bastante inconsciente e como um sonâmbulo", seu maior sucesso de público: Os sofrimentos do jovem Werther. Escreve de um só fôlego, "sem haver antes lançado sobre o papel nenhum plano de conjunto, nem tratado qualquer de suas partes". Poucos meses depois de terminado, o romance é impresso sem alterações e lançado na Feira do Livro de Leipzig, sendo logo em seguida proibido em várias regiões por "ameaça à moral".
A gênese da obra pode ser acompanhada através do relato detalhado que Goethe faz em sua obra autobiográfica, Poesia e verdade, na qual informa sobre a estreita relação com o narrado em Werther e os fatos de sua própria vida, além de fornecer dados sobre a repercussão "prodigiosa" no público e catártica em si mesmo: "Como depois de uma confissão geral, eu me sentia de novo na posse de minha liberdade e minha alegria, e com o direito de começar uma nova vida". Werther é simultaneamente a expressão de seu tempo e a indicação do fim de um ciclo. Em novembro do ano seguinte, Goethe parte para Weimar encerrando uma fase tormentosa: "Estou tão cansado de andar para diante e pra trás! / Para que tanta dor, tanto prazer desfeito?/ Doce paz, / Entra, ai! Entra no meu peito!". Nessa cidade se tornaria a figura central da literatura alemã e nela viria a falecer em 1832, aos 82 anos de idade. Mas a sombra de Werther sempre o acompanhara e volta à cena cinqüenta anos depois de vir a público. Por ocasião da edição comemorativa do jubileu de sua obra, como que num ato de resgate da força viril de juventude, Goethe apaixona-se pela jovem adolescente de 16 anos Ulrike von Levetzow e tem seu pedido de casamento recusado. Ao escrever a poesia A Werther, novamente tem a oportunidade de transformar a dor da paixão em uma obra literária: "o que não vivi e o que não me atormentou e comoveu, isto também não poetizei, nem pronunciei". O senhor septuagenário dialoga com o jovem e eterno apaixonado Werther: "Mais uma vez ousas, sombra tão pranteada / Surgir à luz do dia".
As sombras e luzes de Werther, o mais valoroso burguês
A publicação de Werther teve uma repercussão inédita. De um só golpe, a Alemanha alcançava um lugar de destaque no âmbito das discussões estético-literárias na Europa. Era a saída do ensimesmamento a que fora relegada pela Reforma luterana que interrompeu seu diálogo mais estreito com as nações mediterrâneas e consequentemente com os frutos do Renascimento. Com um verdadeiro furor as pessoas liam, sozinhas ou em grupos, decoravam trechos e os declamavam, dezenas de críticas surgiam em revistas e jornais, além de ter sido modelo para outro livros e rapidamente traduzido em várias línguas. Mas sua aceitação não era unanimidade, era também motivo de troça pelo seu tom de exaltação apaixonada, do que é exemplo a versão parodística de Friedrich Nicolai: As alegrias do jovem Werther. Apesar dos clamores da Igreja, a "obrinha" de Goethe havia se transformado em moda e culto não só em termos de vestimenta com os rapazes trajando-se à la Werther de calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul, como também se faziam peregrinações ao túmulo de Jerusalem. Uma verdadeira febre de Werther (Wertherfieber) alastrou-se pela Europa com vários casos de suicídio inspirados pela obra: a presença sombria de Werther era notada nas pessoas encontradas mortas abraçadas com um exemplar do livro. A arte influenciava diretamente a vida das pessoas. Invertendo-se a mão, passava-se a imitar a arte. O homem criava afinal um mundo só seu - a literatura não representa o mundo, é algo em si mesma.
Nesse sentido pode-se entender Werther como um metatexto, no qual um livro se constrói em diálogo com outros. Werther é um jovem que forma sua individualidade através da leitura: Homero, Ossian (James Macpherson), Klopstock e Lessing não são mencionados por acaso. Através deles, constrói-se o diálogo intertextual que forma uma nova maneira de ver o mundo: pelos olhos em brasa do coração. A própria origem obscura do nome do personagem que intitula o romance de Goethe permite que se faça uma associação livre com o significado da palavra que está na raiz do nome. "Wert" em alemão significa valor ou valoroso e a terminação "-er" indica o grau comparativo, o que leva ao entendimento do nome "Werther" como "aquele que é mais valoroso do que". Essa acepção pode resumir o próprio enredo da obra que vai muito além de uma mera expressão das dores de amor de um apaixonado infeliz: a discussão sobre valores. A procura de um novo fazer literário, mais verdadeiro e expressivo era o lema daqueles jovens que se reuniam para discutir e fazer a nova literatura, que se configurará no movimento denominado de "Tempestade e Ímpeto" ( Sturm und Drang), mesmo título da peça de 1776 de um dos integrantes do grupo em torno do jovem Goethe, Maximilian Klinger. A questão central gira em torno dos novos valores que esta geração tenta estabelecer a partir de suas produções literárias, nas quais conceitos como gênio, fantasia, sentimento, amizade, liberdade e natureza ocupam o lugar central. Em termos de história das idéias, nessa época a Alemanha estava em plena tentativa de inserir-se no contexto da discussão intelectual européia centrada no delineamento do ideário do Iluminismo.
Enquanto Gottsched procurava na imitação dos clássicos franceses a solução para a modernização do teatro alemão, Lessing procurava na fusão de idéias dos antigos gregos com os modernos ingleses a criação do teatro burguês alemão. Esses jovens literatos, seguindo o modelo da Empfindsamkeit (Sentimentalismo), no qual cultuava-se a amizade e o sentimento de união íntima e pessoal com Deus, viam como contraposição ao artificialismo barroco e cortesão o ir além do uso exclusivo da razão e propunham uma valorização da expressão dos desejos individuais como forma de se instituir um modo mais natural de se viver. Muito embora a proposta de Lessing de instituição de uma literatura burguesa fosse uma atitude revolucionária, faltava para eles ainda a liberdade de não se submeter ao mundo do trabalho. Diz Werther: "E és tu o único culpado disso, tu quem me introduziste nestas funções e que me pregaste a atividade. Atividade!" (carta de 24 dez.). Se a instituição do novo paradigma reside na substituição da estrutura de valor pela função que se exerce na sociedade, faltava ainda aquilo que tornaria o sujeito racional um indivíduo: a realização livre de seus desejos e inclinações. Este era o dilema de Werther: um ser "deslocado" que enfatizava a potência do sentir e se via completamente perdido, caso não conseguisse viver de modo absoluto sua paixão, esta era a única possibilidade de não se colocar limites à imaginação criadora.
As confissões de um eterno amador
O título da obra, Os sofrimentos do jovem Werther e a introdução que antecede a série de cartas resumem sinteticamente o tema: a exposição franca e direta do estado de paixão e seus reflexos, efeito alcançado pela sua forma epistolar. A intimidade com a qual o leitor acompanha o nascimento e a incrementação do estado de paixão difere de qualquer outro romance anterior, no qual se tenha usado o recurso de exposição de cartas. Este gênero de romance estava em voga e já havia sido usado com sucesso na Inglaterra por Richardson ( Pamela, 1740; Clarissa, 1748) e na França por Rousseau ( A nova Heloísa, 1761), mas são, segundo Paul Kluchkohn, pálidas expressões da força do amor, se comparadas à pujança do texto de Goethe. A coletânea de cartas a seu amigo Wilhelm não oferece ao leitor a contraparte, mergulhando-se única e exclusivamente no mundo de um só Eu, o de Werther. Tudo o que se vê e se percebe é unicamente filtrado pelo íntimo do personagem, o que acentua o perfil psicológico da narrativa. Gostando ou não do modo como se apresentam e se interpretam as situações, essa é a única possibilidade que é dada ao leitor, com o qual se forma uma forte aliança, deixando-o em sintonia com os embates travados no íntimo do personagem. É uma afirmação contínua do primado da subjetividade em relação ao mundo exterior tanto em termos de conteúdo como na forma. Desse modo, pode ser revelada a verdadeira natureza interior de forma imediata. A própria natureza exterior é também um tema caro a esses jovens, sobretudo para Goethe, pois representa a própria fonte de criação. As forças orgânicas em estado de permanente transformação e movimento geram o novo, o que supera a morte como finitude e a transforma em parte de um processo ininterrupto.
Essa idéia se opõe à explicação da natureza de modo mecanicista, "hábito detestável das fórmulas científicas e dos termos consagrados" (Carta de 11 jun.). Sob essa perspectiva era analisada de forma rígida e de acordo com regras exatas da matemática, como se fora um relógio, sendo Deus o relojoeiro. Werther, assim como a natureza, pode ser interpretado sob a ótica de um jogo de forças contrárias que constituem os movimentos distintos das duas partes do livro. A primeira força que o impulsiona num movimento ascendente é percebida através da leitura positiva do mundo. Ao chegar à cidade, Werther encontra em seus arredores um "santuário", a natureza em primavera, que nele desperta um sentimento de culto ao divino: "tudo o que me cerca parece um paraíso", representando uma volta à idade do ouro, anterior ao pecado original. Encontra também os homens do povo, os homens "naturais", "a gente humilde do lugar", com seus "costumes patriarcais": são os exemplos de uma humanidade ancestral, original e mais verdadeira. Algumas cartas adiante, desperta sua paixão por Lotte como um amor sem barreiras convencionais, por isso "natural". Na figura de Alberto tem-se seu antagonista, o representante do mundo do encaixe às normas burguesas de funcionalidade.
Já no segundo livro a força tem movimento ascendente, narrando como se sente deslocado em meio à nobreza repleta de "gente estúpida" com suas "odiosas distinções sociais". Cansado do artificialismo, ressurge a vontade de voltar a estar ao lado de Lotte, mas em seu regresso encontra uma natureza outonal, com folhas a cair revelando uma paisagem nua, e que nas tempestades demonstrava sua capacidade destruidora. Assim também iam pouco a pouco morrendo as esperanças de Werther e despertando em seu íntimo a convicção pelo ato suicida. Werther é então um forte ou um fraco? É um libelo ao Iluminismo ou um herói anti-iluminista? Conforme as distintas interpretações feitas ao longo do século 20, seu suicídio pode ser visto como o ato de um ser desequilibrado e doente que padece de depressão maníaco-depressiva, assim como um gesto corajoso e revolucionário, de um ser incorruptível, expressão afirmativa da liberdade absoluta em contraposição às limitações impostas pela cultura burguesa. De qualquer forma, em conformidade com o próprio desejo do personagem: "Quero fruir o presente e considerar o passado como passado", o que permanece até os dias de hoje é a expressão de um eterno estado de paixão.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Borges: arquiteto de labirintos
Flávio Viegas Amoreira
flavioamoreira@uol.com.br
Poeta
“Cada um de nós se define para sempre, num único instante de sua vida - instante esse em que cada qual se encontra para sempre consigo mesmo.’’ Jorge Luis Borges (1899-1986)
O escritor cinzela magma difuso, mentalidade impensada disposta da Babel quântica: aponta, glosa, decodifica Substância amoldando-a em labirintos refletidos por espelhos. Escrever é depurar grãos de significação luzindo correlatos em estado de virtualidade: escandir dando ao Infinito atributos e modos. Borges foi Escritor Absoluto: avatar argentino representa hiper-arquétipo do demiurgo, escriba dum Evangelho laico reunindo semiose alquímica, xadrez cabalístico, paixão estoriada da Questão: vivemos ou sonhamos viver? Vida é original ou reflexo de universos paralelos, supercordas, dimensões formando estantes de morfemas dum Cosmo-Livro? Seu conto ’Aleph’ é catálise pelo saber Uno, diamante metafísico, estreitar concreto fluxo num ponto impreciso a partir da disparidade de correlatos. ‘Aleph’, primeira letra do alfabeto hebraico: “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos, lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares, vistos de todos os ângulos’’. Fractal enfeixando todas sensações, atos, rostos, ruas, gestos, emanações maxi-mini-conectadas. ‘Aleph’ da Rua Garay-Buenos Aires: “pequena esfera furta-cor, de brilho quase intolerável’’ contenendo “inconcebível universo’’: o ‘Aleph’ ocultado num porão platino proporciona mirada de todos atos cotidianos, epopéias, geografias, designs de raciocínios, vísceras de sentimentos, delírios, vertigens, todas páginas de todos mitos, cordilheiras, abismos, o ’Aleph’ não ‘é’: são! o tudo-acontecido, primo-átomo conjugado até expansão-sucção dum buraco-negro reatando infinitude de ciclos cosmogênicos. Espelho/mapa, coisas/números nos quais o todo não é maior qualquer das partes: simultaneidade, experiências-existências transinfinitas. Todas eras, auroras, suspiros: ’Aleph’, quintessencial representação: pluri-signo, chip-gramatical; ‘Aleph’, poli- encarnação do possível ou inimaginado: transluz ancestralidades, passamentos, devir. ’Aleph’ reduz num artefato o incriado e onisciência não testemunhal dum acidente subsistente ou inconcebido. No ’Aleph’, um beijo e chuva estelar equivalem: todo-tudo-ao-mesmo-tempo-vislumbrado. Texto sobre-todos-textos: cristal refratando Universo convexo. O desfecho que nos reserva é surpreendente: o ’Aleph’ real não era aquele inter-ficção: a chave de todas as coisas reveladas-desvelando estaria na borgiana cidade de Brás Cubas: "acredito que exista (ou que tenha existido) outro ‘ Aleph’. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo britânico no Brasil; em julho de 1942, Henriquez Urenã descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito que versava sobre o espelho(...) em seu cristal refletia-se o universo inteiro.’’ 1984: o jovem escritor vê sair Homero da Folha na Barão de Limeira; poderia ter abordado Borges? o velho com bengala de bambu parece soprar o ‘aleph’ ao golem: Verdade é encantar a virtude; a Literatura preexiste ao Verbo, busca tocá-la num contínuum ‘satori’. Antes do Verbo eram Verbos: retenho cego brilho flanando da Calle Maipú ao centro de São Paulo. O ‘Aleph’? uma nesga de onda indo-vindo no porto, repousando rochas num filete de praia: vórtice de águas triangulares. Ler Borges é epifania ‘sensoalíssima’. Charada-chave: só enigmas oferecem respostas. Luxo: não saciar-se de perguntas. Aqui mora um criptograma
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
"Os Autores de Hoje São Todos Parecidos"
Francesca Angiolillo
francesca.agiolillo@gmail.comm
Jornalista
Décio Pignatari fala de seu novo livro, “Bili com Limão Verde na Mão”, e diz que as artes estão num período de espera pelo novo
Bili é Belisa. Bili é também bélica e vive uma bilíada, diz o texto de inspiração concretista bolado pelos editores para a quarta capa do novo livro de Décio Pignatari — primeira ficção do autor de 81 anos desde a publicação de Panteros (1992), seu romance de estreia. Bili com Limão Verde na Mão, uma obra que, que segundo conta o autor, "levou décadas para ser feita", numa saga que começou com uma encomenda de um amigo, em uma data imprecisa entre os anos 60 e 70. "Eu imaginei aplicar uma linguagem minimalista para um conto infantil — um conto infantil para adultos. Queria pegar uma garota vivendo entre um universo rural e urbano e, ao mesmo tempo, vivendo um ritual de passagem para a puberdade." Pronto o livro, o amigo detestou. "A ideia dele do conto infantil era... um conto infantil." O trabalho foi para a gaveta, e, a cada vez que Décio o retomava, complicava um pouco mais o projeto. Até que se cansou, desistiu; até que, finalmente, chegou a oportunidade.
Diz a quadrinha popular: "Atirei um limão verde/ Por cima da sacristia/ Deu no cravo, deu na rosa/ Deu na moça que eu queria". No mundo dividido de Bili, a referência convive com outras, mais ou menos explícitas, a escritores caros ao autor. Assim, a protagonista é parente da Alice de Lewis Carroll, em seu périplo e peripécias; dos anti-heróis picarescos espanhóis, tendo por escudeiro o limão verde (que, contrariando o cancioneiro popular, ao ser atirado pela raivosa Bili, lhe atrai tudo o que ela não quer), e, por que não?, de Leopold Bloom, do Ulisses de James Joyce, que, como ela, empreende em um dia o trajeto que poderia ser de uma vida — ou de parte importante dela. No caso de Bili, a adolescência.
Assumidamente notívago, o escritor, que nasceu em Jundiaí, no estado de São Paulo, criou-se em Osasco e atualmente mora em Curitiba, aceitou levantar mais cedo para falar sobre o novo livro e, também, sobre literatura brasileira, seus próprios projetos e sobre como, hoje, caminha para o silêncio.
Bili com Limão Verde na Mão, tendo sido encomendado, e em outra época, é algo à parte do projeto estético que o sr. traçou?
Décio Pignatari: Eu tinha meu projeto de prosa. Primeiro, o livrinho de contos, que foi O Rosto da Memória. Depois o romance pequeno, Panteros, que tem muitos elementos autobiográficos e é ligado a um universo que foi até a minha juventude, em Osasco. E depois o grande romance. Esse ainda está na cabeça. Era Obra em Obras: O Brasil. Tinha a pretensão de ter o país como personagem, uma espécie de épica crítico-cômica, mas eu desisti. Estou pensando em que tipo de experimentação de linguagem e que tipo de prosa fazer.
Se já não é um épico sobre o Brasil, o que será?
Quero fazer uma espécie de "arqueologia" de comportamentos, sentimentos e histórias do início do século 20, numa cidade que começava, com a chegada dos imigrantes, a industrializar-se. Como James Joyce voltando-se para sua Dublin, eu me voltei para onde eu me criei, Osasco. Mas a ideia é mais oswaldiana, era muito mais uma retomada da experiência do Memórias Sentimentais de João Miramar, do Oswald de Andrade. Eu me lembrei de todos aqueles migrantes, da presença da ideologia anarquista. Desde criança eu ouvia falar muito desse mundo. Eu, hoje, vou inventar uma Osasco. Aquela sumiu, abrasileirou-se. Acabou virando uma cidade industrial, como se esperava, mas também um grande subúrbio, não tão organizado como deveria. Junto, desapareceram as relações entre as pessoas, as famílias, o tipo de sexo, amor, tudo mudou; entrou-se num certo tipo de estabilidade.
Essa "arqueologia" tem a ver com a sua própria biografia. Tudo o que um autor escreve passa pela sua experiência pessoal?
Na prosa, realmente, a experiência conta; onde se contam histórias, mesmo em Joyce, por exemplo, a experiência do autor conta bastante. Mas esse universo da visão subjetiva não me interessa; eu não me importo. Como eu digo, prefiro aquela linha do Oswald, que se perdeu no romance brasileiro — por causa do romance nordestino, que era um romance, no fundo, realista, o Brasil esqueceu o outro universo que estava existindo.
A prosa regionalista marcou um retrocesso?
Não um retrocesso, ela talvez devesse ser feita. No movimento romântico, o José de Alencar já tinha tentado os vários regionalismos. Isso faz parte do processo histórico brasileiro, que é atrasado. Ele está em desacordo com o relógio. Quando o romantismo já tinha morrido, com a publicação, em 1857, de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ele estava começando no Brasil. Nossa visão ainda é regionalista, a coisa da terra. Os cursos de letras sempre ficaram para trás, sempre rejeitaram as obras experimentais. No Brasil, ainda se continua achando que a história é que faz a obra. Não é.
Em 2010, sua poesia completa 60 anos. Com esse seu projeto de prosa, o sr. já não escreve poesia?
Não. Tenho feito algumas traduções, pouca coisa. Traduzi a Ode à Melancolia, do John Keats, e um trecho de Santo Agostinho. Sempre gostei muito das Confissões — traduzi o chamado Êxtase, que é a conversa dele com a mãe, Santa Mônica, onde Santo Agostinho descreve o que eu chamei de "fenomenologia do silêncio". Ele vai eliminando todos os ruídos do mundo para chegar ao silêncio, e do silêncio chegar a Deus.
A poesia concreta foi um momento apenas?
A poesia concreta fez realmente o que tinha que fazer. Foi a primeira e única revolução internacional nascida no Brasil. O fato de não se fazer mais exatamente poesia concreta não interfere no que ela mudou. A poesia em versos é uma raridade hoje. Já a influência da poesia concreta, não.
Faz sentido falar num legado?
Legado tem uma aparência estática. O que acontece é que, quando há uma revolução, como no caso do cubismo, essa revolução é dinâmica, gera alterações em todas as áreas. E sofre metamorfoses. A prosa brasileira, quer se queira ou não, mudou de Guimarães Rosa em diante. Mas não é legado. Você nota influências que se manifestam. Dinamicamente.
O que há de novo hoje no panorama literário?
Depois da poesia concreta, não surgiu nada mais de diferente. Hoje entramos numa era de quantidade. A era da globalização é a da quantificação. Não existe nenhum movimento especial. A prosa ganhou força porque, se você conquistar um mínimo de mercado, pode viver do que faz, mesmo no Brasil. Mas nossos romancistas tomam por modelo sujeitos medianos. Os escritores brasileiros que se julgam de vanguarda imitam o tal Thomas Bernhard, por exemplo — que é uma prosa mais-ou-menos. Estamos vivendo um período magmático. Todas as artes e ideias estão voltando a um magma primitivo de onde eventualmente nascerá alguma coisa nova. A produção é enorme, em todas as áreas. Mas é tudo parecido.
Ao mudar-se para Curitiba em 1999, o sr. mencionou a busca de um local mais propício para a criação intelectual. Isso aconteceu?
Eu saí de São Paulo devido ao sufoco da cidade, estava farto de viver naquele emaranhado. Resolvi ir para um lugar mais salutar. Mas não sei se vingou a ideia de uma cidade mais inspiradora. Curitiba virou uma metrópole, mas, como em boa parte do mundo, o universo cultural é provinciano. Não há publicações nem informações muito atuais sobre os eventos culturais que ocorrem no mundo. Mas é muito agradável.
O sr. lê autores contemporâneos?
Para falar a verdade, leio a prosa brasileira em diagonal. E mesmo os autores estrangeiros. Minha biblioteca hoje está closed. Mas também é natural. Não acompanho com tanta curiosidade como antes, agora eu tenho uma alta seletividade. Em minha "preguiça octogenária", prefiro ouvir música a ficar acompanhando a prosa. Eu me dedico muito pouco à leitura.
Entre as suas preferências, o sr. citou Santo Agostinho e falou de uma "fenomenologia do silêncio". O sr. caminha para o silêncio?
O silêncio de fato, para mim, é fundamental. Para citar Paul Valéry: "Paciência, paciência — paciência no infinito azul! Cada átomo de silêncio é a chance de um fruto maduro". Espero cultivar esse silêncio criativo e, de vez em quando, sair do silêncio para criar umas migalhas disso e daquilo. Que, na fase magmática em que estamos, é o máximo que eu posso fazer.
Sobre os 83 anos de Décio Pignatari
André Dick
henriquedick@hotmail.com
poeta, ensaísta, doutor em literatura comparada pela UFRGS
Um dos poetas que ajudaram a criar a poesia concreta, Décio Pignatari comemora hoje, 83 anos de idade. Numa carta a Régis Bonvicino, de 1975, Paulo Leminski escreveu: “aconteceu uma coisa incrível comigo recentemente / em florianópolis / quando daquele concurso de poesia/simpósio / do qual décio participou também / e quando passamos 3 dias juntos sem parar / um carnaval de vanguarda / mostrei meus poemas discursivos/verbais a ele / e o décio / com certeiro dedo / apontou p provincianismo em que eu estava caindo”. Décio pode apresentar alguns elementos que alguns não gostam – a postura de vanguarda, a negação feita a muitos poetas, as críticas hiperbólicas –, mas de uma coisa ele não pode, a meu ver, ser considerado: provinciano.
Sobretudo em razão da sua teoria da poesia concreta. Ela é a mais tendenciosa aos mass media, mas, pela força, caracteriza até hoje o movimento, mais até do que os textos de Augusto e Haroldo de Campos. Na verdade, Décio Pignatari sonhou com um projeto que transcendesse os limites do país e que conseguisse levar poesia de qualidade às massas. Mallarmé, que considera seu “guru”, num texto de Errâncias, certamente é seu guia nesses caminhos do antiprovincianismo. Mesmo quando Pignatari quis, antes de mais nada, interpretar a crise do verso como um salto para a participação do leitor de manchetes de jornal: “uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema”. Se o seu objetivo não chegou a se concretizar, sua trajetória poética foi – embora esperamos que ainda seja – das mais ousadas. Como quis também Leminski, em outro poema, uma das qualidades de Pignatari: “a fúria de décio / nunca fazer versinhos normais”.
Sua obra criativa está concentrada em Poesia pois é poesia (1950-2000), lançado pela Ateliê Editorial e pela Unicamp em edição belíssima, de luxo. São esses poucos, quase pouquíssimos, poemas, que marcam sua presença na arte brasileira, muito mais do que os livros de semiótica ou romances experimentais que escreveu, mesmo que Panteros seja uma referência. É lamentável que, hoje, Pignatari, dos concretos, seja o menos lembrado. Depois de se alinhar com os parceiros Augusto e Haroldo de Campos na construção de uma poesia neoclássica de muita qualidade – constituída por poemas que vão de “O carrossel” aos que formam o conjunto “Rumo a Nausicaa”, que inclui poemas memoráveis como “A morte do infante”, “Bateau pas ivre”, “Noção de pátria”, “Decius infante”, “Epitáfio” e “Move-se a brisa ao sol” –, Pignatari arriscou tudo com o concretismo, apresentando poemas como “miragem”, “beba coca cola”, “life” e “caviar o prazer”, mas voltou a crescer mesmo com o que surgiu depois do rigor concreto ortodoxo. É o que vemos em poemas como “Bufoneria brasiliensis” ou “Escova”, este de um surrealismo concreto. Não era surpreendente para quem, num poema de 1951, “Eupoema”, já havia sintetizado a modernidade: “Eu não sou quem escreve, / mas sim o que escrevo: / Algures Alguém / são ecos do enlevo”. Nos anos 1960, deu um salto que Augusto de Campos só daria nos anos 1970: lá estava “Organismo”, poema que antecipou o ideário poético de Arnaldo Antunes em Nome. Também fez “disenfórmio” (é um poema ou mera peça publicitária?), o atrevidíssimo “Cr$isto é a solução” e o mallarmaico “Stèle pour vivre nº 4”, com suas implosões e ideogramas verbais. Mallarmé, aliás, é a influência precisa de “Adieu, Mallaimê (Autoportraîte)”. Veja-se o ótimo “Stèle pour vivre nº 5” – poemas desdobrados, com o sonho de avançar para fora da página – ou “Torre de Babel” e os ideogramas que se compõem com as palavras “man” e “woman” – esperando avançar para fora da língua (tentativa reprisada em “Femme” ou “Um poema em esperanto”, nos anos 1980). Nos anos 1970, os experimentos tipológicos de “Alfabeto vertical”, antecipando o traço lúdico de cartazes publicitários (mas com tensão); a união de poemas com fotos, no conhecido “Calendário Phillips”, não diminuindo a tensão poética para registrar um diálogo mais fácil com o público.
Com o tempo, parece ingressar num espírito de poetas latinos e provençais, na seção “Poemas” de Poesia pois é poesia. Aqui, já uma influência de Augusto de Campos, em “Auragrama para Augusto”. Depois, o poema excepcional “Mayá”, desdobrando-se em mini-ideogramas com correntes metalingüísticas, a influência da semiótica, o diálogo com criadores (Peirce, Stockinger), haicais e ideogramas ampliados, a página com cortes cinematográficos e a permanente influência do barroco: “a brisa / a luz / o calor / / tateiam / / bolinam a flor / quase vexada / / e ela, voláteis, / perfumadas de cor de rosa / aos poucos / vão abrindo as pérnalas em vão / / num copo à janela” (em “Poeminha poemeto poemeu poesseu poessua da flor”). Compôs poemas sociais de ótima qualidade: “Logochicomendes” e “Colombo” fazem o que seria o pretendido “salto participante” da poesia concreta nos anos 1960. Mais recentemente, talvez sob uma influência conjunta de Marcial, Catulo e Safo, apresentou poemas únicos, como “Poema sonhado” e “Mais dentro”, descortinando uma linha erótica apenas subentendida em “caviar o prazer” da fase concreta ortodoxa. Já havia um romantismo, por vezes, exagerado, como em “Três poemas ideológicos de amor” (“Você já ouviu um pintassilgo ouvindo Beteljosa / / I amo você”), que se encerra com a aproximação corporal: “ventrava estrelas / e azul teu cheiro / e cheiros / beiravam pregas / de luz de pele / e enchiam o / cosmos um corpo / que se beijava / por inteiros” – que ecoaria no “silêncio carnal / que se fecha / e / concentra / para abrir-se” de “Para Ita Rina: um fotograma”. Num poema publicado na revista eletrônica de poesia Zunái de maio, escreve: “Olhou-me em cheiro : pelo talo, / tomo o jasmim, arranco-lhe a / - pétala ! / De branco / e pele, / lembro / de minha você. / / Aperto os dedos: aromas e / hematomas”.
Seus versos merecem ser lidos e lembrados, mas não devemos esquecer suas traduções, também de alta qualidade – sempre almejando o diálogo com outras culturas. Elas, sem dúvida, elevam o trabalho de Pignatari, seja em Retrato do artista quando jovem, cujo destaque é a tradução que ele faz para a Vita nova dantesca, seja nas traduções que fez de Marina Tzvietáieva ou de poetas de várias épocas em 31 poetas, 214 poemas, entre os quais se incluem Catulo, Marcial, Apollinaire, Horácio, Propércio, Heine. E, claro, nas duas seções de traduções de Poesia pois é poesia, nas quais se incluem nomes como Rilke, Valéry, Baudelaire, Dickinson, novamente Heine etc.
Em sua linha ensaística – da qual se destaca Contracomunicação, em que encontramos o ensaio referencial “A situação da poesia no Brasil”, na qual Pignatari define o eixo da poesia moderna do país: Drummond (cujo poema “Áporo” analisa em outro ensaio referencial) e João Cabral, a partir de uma “estirpe mallarmaica”, isto nos anos 60, quando o segundo ainda era relativamente obscuro –, destaca-se, como em sua poesia, um texto curto, mas de impacto. Tem, em suas polêmicas, um atrevimento que lembra Oswald, sobre o qual escreveu, também, nos ensaios “Marco zero de Andrade” e “Teoria da guerrilha artística”, no mesmo Contracomunicação. Provocava ao contestar, continuamente, a presença excessiva de Mário de Andrade nos estudos de literatura (contrapondo-se, inclusive, ao amigo Haroldo de Campos): “Mário de Andrade não entendeu a profundidade e/ou não quis comprometer-se com a radicalidade de Oswald de Andrade, embora temesse e julgasse imitá-lo em Macunaíma, onde, de fato, a diluiu e distorceu, com sua ‘língua brasileira’, uma certa moral oportunista e ‘sem caráter’, e com a aplicação decorativa de motivos e línguas indígenas, para efeitos de uma cosmologia mítico-folclórico-moderna”. Sobre Drummond dizia: “Era grande poeta, mas tinha uma visão cultural provinciana. [...] Não tem sequer uma idéia original a respeito de política, artes visuais, música e cinema. Não debateu idéias, não se comprometeu com elas”. Sobre a guinada, nos anos 1960, de Ferreira Gullar para a poesia social, é contundente: “Caiu no visgo artesanal, como queiram. Acho que ele ainda acredita na Grande Arte. Não percebe que isto é religião. Faz crítica de artes plásticas – para acabar com as artes plásticas!”. Propunha uma eficiente “antologia sincrônica”. Dizia que no meio da “geléia geral” da poesia brasileira alguém deveria exercer as funções de “medula e osso” (no caso, a poesia concreta), uma declaração hiperbólica quando ainda produziam poetas como Drummond, Cabral, Bandeira, Murilo Mendes, Sebastião Uchoa Leite e Hilda Hilst. Mas também foi o primeiro a ver os limites do concretismo. Leminski, que talvez fosse seu maior admirador, disse, em outra carta a Bonvicino: “a última vez q estive com décio / [...] / o décio me disse: / - é preciso acabar com o concretismo”. Pignatari tinha noção de que o concretismo não poderia ficar naqueles limites propostos inicialmente: deveria se integrar, em suma, à tradição. Em “Interessere”, escreve: “No concretismo interessa o que não é concretismo”.
Ele apresenta justamente aquele antiprovicianismo cultivado em pessoas que cultuava, algumas presentes nas memórias fotográficas de Errâncias, que trazem à luz Jakobson, Volpi, Tarsila do Amaral, Peirce, Rogério Duprat, Luigi Nono e Ezra Pound, entre outros. As massas não conhecem Pignatari – mas isso só mostra como sua poesia está na contramão do que se julga legível e compreensível. Resta ao leitor tentar compreender o incomunicável – e comemorar Décio Pignatari octogenário, esperando que ele volte a apresentar novos poemas, mostrando por que é um dos maiores poetas surgidos a partir da metade do século XX.
henriquedick@hotmail.com
poeta, ensaísta, doutor em literatura comparada pela UFRGS
Um dos poetas que ajudaram a criar a poesia concreta, Décio Pignatari comemora hoje, 83 anos de idade. Numa carta a Régis Bonvicino, de 1975, Paulo Leminski escreveu: “aconteceu uma coisa incrível comigo recentemente / em florianópolis / quando daquele concurso de poesia/simpósio / do qual décio participou também / e quando passamos 3 dias juntos sem parar / um carnaval de vanguarda / mostrei meus poemas discursivos/verbais a ele / e o décio / com certeiro dedo / apontou p provincianismo em que eu estava caindo”. Décio pode apresentar alguns elementos que alguns não gostam – a postura de vanguarda, a negação feita a muitos poetas, as críticas hiperbólicas –, mas de uma coisa ele não pode, a meu ver, ser considerado: provinciano.
Sobretudo em razão da sua teoria da poesia concreta. Ela é a mais tendenciosa aos mass media, mas, pela força, caracteriza até hoje o movimento, mais até do que os textos de Augusto e Haroldo de Campos. Na verdade, Décio Pignatari sonhou com um projeto que transcendesse os limites do país e que conseguisse levar poesia de qualidade às massas. Mallarmé, que considera seu “guru”, num texto de Errâncias, certamente é seu guia nesses caminhos do antiprovincianismo. Mesmo quando Pignatari quis, antes de mais nada, interpretar a crise do verso como um salto para a participação do leitor de manchetes de jornal: “uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema”. Se o seu objetivo não chegou a se concretizar, sua trajetória poética foi – embora esperamos que ainda seja – das mais ousadas. Como quis também Leminski, em outro poema, uma das qualidades de Pignatari: “a fúria de décio / nunca fazer versinhos normais”.
Sua obra criativa está concentrada em Poesia pois é poesia (1950-2000), lançado pela Ateliê Editorial e pela Unicamp em edição belíssima, de luxo. São esses poucos, quase pouquíssimos, poemas, que marcam sua presença na arte brasileira, muito mais do que os livros de semiótica ou romances experimentais que escreveu, mesmo que Panteros seja uma referência. É lamentável que, hoje, Pignatari, dos concretos, seja o menos lembrado. Depois de se alinhar com os parceiros Augusto e Haroldo de Campos na construção de uma poesia neoclássica de muita qualidade – constituída por poemas que vão de “O carrossel” aos que formam o conjunto “Rumo a Nausicaa”, que inclui poemas memoráveis como “A morte do infante”, “Bateau pas ivre”, “Noção de pátria”, “Decius infante”, “Epitáfio” e “Move-se a brisa ao sol” –, Pignatari arriscou tudo com o concretismo, apresentando poemas como “miragem”, “beba coca cola”, “life” e “caviar o prazer”, mas voltou a crescer mesmo com o que surgiu depois do rigor concreto ortodoxo. É o que vemos em poemas como “Bufoneria brasiliensis” ou “Escova”, este de um surrealismo concreto. Não era surpreendente para quem, num poema de 1951, “Eupoema”, já havia sintetizado a modernidade: “Eu não sou quem escreve, / mas sim o que escrevo: / Algures Alguém / são ecos do enlevo”. Nos anos 1960, deu um salto que Augusto de Campos só daria nos anos 1970: lá estava “Organismo”, poema que antecipou o ideário poético de Arnaldo Antunes em Nome. Também fez “disenfórmio” (é um poema ou mera peça publicitária?), o atrevidíssimo “Cr$isto é a solução” e o mallarmaico “Stèle pour vivre nº 4”, com suas implosões e ideogramas verbais. Mallarmé, aliás, é a influência precisa de “Adieu, Mallaimê (Autoportraîte)”. Veja-se o ótimo “Stèle pour vivre nº 5” – poemas desdobrados, com o sonho de avançar para fora da página – ou “Torre de Babel” e os ideogramas que se compõem com as palavras “man” e “woman” – esperando avançar para fora da língua (tentativa reprisada em “Femme” ou “Um poema em esperanto”, nos anos 1980). Nos anos 1970, os experimentos tipológicos de “Alfabeto vertical”, antecipando o traço lúdico de cartazes publicitários (mas com tensão); a união de poemas com fotos, no conhecido “Calendário Phillips”, não diminuindo a tensão poética para registrar um diálogo mais fácil com o público.
Com o tempo, parece ingressar num espírito de poetas latinos e provençais, na seção “Poemas” de Poesia pois é poesia. Aqui, já uma influência de Augusto de Campos, em “Auragrama para Augusto”. Depois, o poema excepcional “Mayá”, desdobrando-se em mini-ideogramas com correntes metalingüísticas, a influência da semiótica, o diálogo com criadores (Peirce, Stockinger), haicais e ideogramas ampliados, a página com cortes cinematográficos e a permanente influência do barroco: “a brisa / a luz / o calor / / tateiam / / bolinam a flor / quase vexada / / e ela, voláteis, / perfumadas de cor de rosa / aos poucos / vão abrindo as pérnalas em vão / / num copo à janela” (em “Poeminha poemeto poemeu poesseu poessua da flor”). Compôs poemas sociais de ótima qualidade: “Logochicomendes” e “Colombo” fazem o que seria o pretendido “salto participante” da poesia concreta nos anos 1960. Mais recentemente, talvez sob uma influência conjunta de Marcial, Catulo e Safo, apresentou poemas únicos, como “Poema sonhado” e “Mais dentro”, descortinando uma linha erótica apenas subentendida em “caviar o prazer” da fase concreta ortodoxa. Já havia um romantismo, por vezes, exagerado, como em “Três poemas ideológicos de amor” (“Você já ouviu um pintassilgo ouvindo Beteljosa / / I amo você”), que se encerra com a aproximação corporal: “ventrava estrelas / e azul teu cheiro / e cheiros / beiravam pregas / de luz de pele / e enchiam o / cosmos um corpo / que se beijava / por inteiros” – que ecoaria no “silêncio carnal / que se fecha / e / concentra / para abrir-se” de “Para Ita Rina: um fotograma”. Num poema publicado na revista eletrônica de poesia Zunái de maio, escreve: “Olhou-me em cheiro : pelo talo, / tomo o jasmim, arranco-lhe a / - pétala ! / De branco / e pele, / lembro / de minha você. / / Aperto os dedos: aromas e / hematomas”.
Seus versos merecem ser lidos e lembrados, mas não devemos esquecer suas traduções, também de alta qualidade – sempre almejando o diálogo com outras culturas. Elas, sem dúvida, elevam o trabalho de Pignatari, seja em Retrato do artista quando jovem, cujo destaque é a tradução que ele faz para a Vita nova dantesca, seja nas traduções que fez de Marina Tzvietáieva ou de poetas de várias épocas em 31 poetas, 214 poemas, entre os quais se incluem Catulo, Marcial, Apollinaire, Horácio, Propércio, Heine. E, claro, nas duas seções de traduções de Poesia pois é poesia, nas quais se incluem nomes como Rilke, Valéry, Baudelaire, Dickinson, novamente Heine etc.
Em sua linha ensaística – da qual se destaca Contracomunicação, em que encontramos o ensaio referencial “A situação da poesia no Brasil”, na qual Pignatari define o eixo da poesia moderna do país: Drummond (cujo poema “Áporo” analisa em outro ensaio referencial) e João Cabral, a partir de uma “estirpe mallarmaica”, isto nos anos 60, quando o segundo ainda era relativamente obscuro –, destaca-se, como em sua poesia, um texto curto, mas de impacto. Tem, em suas polêmicas, um atrevimento que lembra Oswald, sobre o qual escreveu, também, nos ensaios “Marco zero de Andrade” e “Teoria da guerrilha artística”, no mesmo Contracomunicação. Provocava ao contestar, continuamente, a presença excessiva de Mário de Andrade nos estudos de literatura (contrapondo-se, inclusive, ao amigo Haroldo de Campos): “Mário de Andrade não entendeu a profundidade e/ou não quis comprometer-se com a radicalidade de Oswald de Andrade, embora temesse e julgasse imitá-lo em Macunaíma, onde, de fato, a diluiu e distorceu, com sua ‘língua brasileira’, uma certa moral oportunista e ‘sem caráter’, e com a aplicação decorativa de motivos e línguas indígenas, para efeitos de uma cosmologia mítico-folclórico-moderna”. Sobre Drummond dizia: “Era grande poeta, mas tinha uma visão cultural provinciana. [...] Não tem sequer uma idéia original a respeito de política, artes visuais, música e cinema. Não debateu idéias, não se comprometeu com elas”. Sobre a guinada, nos anos 1960, de Ferreira Gullar para a poesia social, é contundente: “Caiu no visgo artesanal, como queiram. Acho que ele ainda acredita na Grande Arte. Não percebe que isto é religião. Faz crítica de artes plásticas – para acabar com as artes plásticas!”. Propunha uma eficiente “antologia sincrônica”. Dizia que no meio da “geléia geral” da poesia brasileira alguém deveria exercer as funções de “medula e osso” (no caso, a poesia concreta), uma declaração hiperbólica quando ainda produziam poetas como Drummond, Cabral, Bandeira, Murilo Mendes, Sebastião Uchoa Leite e Hilda Hilst. Mas também foi o primeiro a ver os limites do concretismo. Leminski, que talvez fosse seu maior admirador, disse, em outra carta a Bonvicino: “a última vez q estive com décio / [...] / o décio me disse: / - é preciso acabar com o concretismo”. Pignatari tinha noção de que o concretismo não poderia ficar naqueles limites propostos inicialmente: deveria se integrar, em suma, à tradição. Em “Interessere”, escreve: “No concretismo interessa o que não é concretismo”.
Ele apresenta justamente aquele antiprovicianismo cultivado em pessoas que cultuava, algumas presentes nas memórias fotográficas de Errâncias, que trazem à luz Jakobson, Volpi, Tarsila do Amaral, Peirce, Rogério Duprat, Luigi Nono e Ezra Pound, entre outros. As massas não conhecem Pignatari – mas isso só mostra como sua poesia está na contramão do que se julga legível e compreensível. Resta ao leitor tentar compreender o incomunicável – e comemorar Décio Pignatari octogenário, esperando que ele volte a apresentar novos poemas, mostrando por que é um dos maiores poetas surgidos a partir da metade do século XX.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
"A internet abastarda a literatura"
Sérgio Rodrigues
sergiorodrigues.ig.com.br
Jornalista e escritor
O tradutor, escritor, desenhista e humorista Millôr Fernandes nega ter uma obra – “é coisa de pedreiro” –, mas reivindica a invenção do frescobol. Ele acha que a tecnologia franqueou a escrita a gente sem talento e desdenha a Academia Brasileira de Letras
Millôr Fernandes, o grande filósofo brasileiro (a definição é do jornalista Sérgio Augusto), vai completar 85 anos no dia 27 de maio de 2009. Esta é a versão oficial. Na verdade, nascido no subúrbio carioca do Méier em 16 de agosto de 1923, Milton Viola Fernandes já passou dessa idade. Foi registrado com quase um ano de atraso pelo pai, o engenheiro espanhol Francisco Fernandes, e sua certidão de nascimento merece respeito. É o mesmo documento que, numa bem-vinda combinação entre a caligrafia torta do escrivão e uma decisão tomada por ele mesmo no fim da adolescência, transformou Milton em Millôr. Qualquer que seja a idade, o ano que vem será de festa. Não para o próprio Millôr, que continua trabalhando todo dia em seu estúdio numa cobertura do bairro de Ipanema, perto da praia, onde cria suas colunas para a revista Veja. Foi na militância diária do profissionalismo que, órfão muito cedo de pai e mãe, esse autodidata radical construiu desde o início dos anos 40 — "há 250 anos", como ele diz — sua obra fabulosa de escritor, humorista, desenhista, artista plástico, dramaturgo, tradutor e mais um número indefinido de títulos menos vistosos, entre eles o de inventor do frescobol. Não adianta lhe pedir que mude a esta altura. Aliás, Millôr se arrepia quando ouve falar de obra: "Obra é com o pedreiro".
Mas é a obra monumental de Millôr Fernandes — não existe outra palavra — o centro da festa. Há dois anos, a Desiderata, hoje um selo do grupo Ediouro, vem repondo nas prateleiras, em edições de capricho inédito, títulos que sofriam com a dispersão por diversas casas editoriais. Millôr nunca esteve ausente das livrarias, mas é a primeira vez que o mercado lhe concede esse balanço luxuoso de uma vida de intensa produção intelectual e artística. Nunca é tarde para reconhecer um gênio. "No ano que vem, teremos três lançamentos, desta vez todos inéditos em livro", diz Gabriela Javier, editora da Desiderata. O primeiro título será Poesia Matemática, um híbrido inclassificável de trocadilhos sofisticados com a linguagem dos números e ilustrações singelas de livro infantil. Também estão previstos um novo volume de haicais e uma coletânea de crônicas publicadas em Veja. A dramaturgia e uma seleta de traduções teatrais entram na agenda de 2010. Millôr faz um balanço de sua carreira e fala da Ipanema de sua juventude, literatura, humor e política. Lula ganha um elogio, mas não escapa de deitar no divã: "É o maior ego do mundo".
Você pegou todos os presidentes desde Getúlio Vargas. Quem sofreu mais com o Millôr? José Sarney, que você destruiu naquela série de textos no Jornal do Brasil sobre o romance Brejal dos Guajas (mais tarde reunidos no livro Crítica da Razão Impura)?
Millôr: Não tenho essa consciência. A gente vai fazendo... O Sarney não sofreu como presidente, mas como escritor. Terminei a série perguntando: "Afinal de contas, Sir Ney escreveu ou não escreveu um livro? Escreveu, porque segundo a Unesco livro é uma publicação não periódica de mais de 49 páginas. E quando Sir Ney chegou, depois de muito esforço, à qüinquagésima página, fechou a máquina e gritou lá para dentro: 'Mãe, acabei!'".
Você prometeu se candidatar à vaga dele na Academia Brasileira de Letras. Pretende cumprir?
Cadeira 38, é verdade. Um perigo. Claro que vou ter que cumprir.
Promessas à parte, já lhe passou pela cabeça se candidatar à Academia?
Não é que não me passe pela cabeça: não passa por nenhuma parte do corpo. Aliás, não tenho muita admiração por aquela frase do Machado de Assis: "Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola". Bastaria dizer: "Esta é a glória que fica". Consola? Só se for um consolador de borracha.
Você costuma dar cascudos em Machado. Sua crônica sobre a suposta relação homossexual de Bentinho e Escobar em Dom Casmurro é famosa. Considera o Bruxo um escritor medíocre?
A palavra não é "medíocre". Desde criança, nunca fui induzido pelo nome. Diziam: "Você não vai gostar do Euclides da Cunha, aquela primeira parte de Os Sertões é muito chata". Um dia fui ler e achei sensacional. Guimarães Rosa eu li com certa dificuldade, mas insisti e vi que a dificuldade era minha, não dele. O Proust eu li em português, francês, inglês e espanhol: é toda uma dimensão literária. Mas o Machado não me diz nada, como o Joyce, que eu nunca consegui ler. Não acredito em ler com esforço.
A cultura escrita está perdendo prestígio no mundo inteiro. Isso é ruim?
O volume de escritos está numericamente maior e percentualmente menor. Com a internet, cada um tem seu blog, e, quando há um volume muito grande de gente praticando, tudo se abastarda. Quando se deliberou que não haveria mais métrica e rima na poesia, toda senhora de 50 anos começou a fazer poesia. Hoje o marketing é violento. Quando o cara consegue explodir, como o Paulo Coelho, está feito: nada faz mais sucesso que o sucesso. Eu só li um livro dele, um com nome árabe [O Zahir]. Outro dia ele disse que não liga para o que os tradutores fazem com seus livros. Pô, o tradutor só pode melhorar aquilo! Mas vai melhorar o Guimarães Rosa...
Você é famoso por não ser saudosista. Existe algo em que o mundo tenha sido melhor do que hoje?
Ah, sem dúvida: Ipanema nos anos 60. Fui morar lá em 1954. Meu edifício foi o primeiro, tive que espantar os índios da praia. Não havia sinal de trânsito. O Rio era uma aldeia. Antes disso eu morava na avenida Atlântica, a duas quadras do meu amigo Sérgio Porto. É impressionante o modo como a gente trabalhava. Eu ficava na praia até as onze. Todo dia tinha mil coisas para fazer, mas às sete da noite estava no bar Vilariño, às nove no Juca's Bar. Como pode? Não sei. Levava para a praia um cestinho com os jornais, ia escrevendo uns negócios e guardando ali, enquanto a gente conversava. Foi quando inventamos o frescobol.
Como foi essa história?
No começo era só peteca e mar, isto é, jacaré. No Arpoador começavam a chegar as primeiras pranchas, de dez metros. Um dia apareceu uma pessoa com uma caixa, que tinha dentro uma bola e uma raquete pesada. A gente batia e a bola voltava, como um bumerangue. Chamava-se "la pelote basque sans fronton" [pelota basca sem paredão]. A raquete já estava ali, e apareceu alguém com uma bola de tênis. A gente pegava essas bolas e esfregava com querosene, para deixá-las carecas. Nunca mais deixei de jogar frescobol. Cheguei a jogar muito bem.
Você é o maior tradutor brasileiro de teatro. Já encarou Shakespeare e Tchekov, Molière e Ibsen, entre muitos outros, mas começou traduzindo quadrinhos. É um autodidata também em línguas estrangeiras?
Autodidata é um louvor. Sou audacioso e tenho instinto, sensibilidade. E não tenho medo. Quero que o Shakespea re se dane, para não dizer coisa pior. Uma vez encontrei o Nelson Rodrigues na cidade e ele disse: "Ô Millôr, é verdade que tu melhora o Molière?". Respondi: "Nelson, sou mais velho que o Molière. Traduzo com absoluta fidelidade, mas, se ele deixar uma bola na cara do gol, eu chuto".
É mais importante para um tradutor dominar seu idioma do que a língua-fonte?
O importante é a língua para a qual se traduz. No teatro, então... Um dia o [diretor de teatro] Gianni Rato chegou aqui com A Megera Domada. Eu falei que não sabia traduzir aquilo. Aí fui pesquisar as traduções que existiam. Olha, é inacreditável: o pessoal cortava trechos, dizia uma coisa pela outra, e humor ninguém sabia. Fiz uma Megera Domada melhor e aprendi o valor do trocadilho. Dizem que o trocadilho é a mais baixa forma de humor, mas, se você tirar o trocadilho de Shakespeare, ele desaparece. O Agrippino Grieco escreveu: "Menotti del Picchia, fecha a braguilha do teu nome!". Isso é ótimo! Não dá para dizer de outra forma.
Quais humoristas brasileiros você admirava quando começou? Era fã do Barão de Itararé?
Não era e fui ficando cada vez menos. Ele tem meia dúzia de coisas, o marketing do Rio Grande do Sul e aquela bobeira fundamental: você diz que uma coisa é boa e as pessoas acreditam. Em São Paulo, houve um humorista popular muito bom, o Juó Bananere, que ninguém conhece.
Quem faz o Millôr rir no humor brasileiro de hoje?
Hoje está tudo espalhado, existe muita gente boa por aí que eu não conheço. Mas dos meus colegas tem o Jaguar, o Chico e o Paulo Caruso, os paulistas como o Laerte e o Angeli, muita gente. Escrevendo é que eu vejo poucos além do Verissimo, que está consagrado.
Você conviveu com Nelson Rodrigues. Concorda que ele é o maior dramaturgo brasileiro?
Ninguém vai desfazer esse mito, mas é um mito com fundamento. O Nelson tem humor. Com meia dúzia de frases, liquida o Barão de Itararé: "Eu não sou machista, machista é a natureza".
Qual é a melhor peça de teatro do Millôr?
Flávia, Cabeça, Tronco e Membros. Foi encenada uma vez só, com direção do [Luiz Carlos] Maciel. Um dia fui ver um ensaio e nunca mais apareci, nem na estréia. Não entenderam nada. Acho excelente, mas morreu. Foi a única peça que não escrevi de encomenda. Minha vocação é essa. Não trabalho por dinheiro, mas sem dinheiro eu não trabalho.
É por isso que você nunca escreveu um romance? Porque nunca pediram?
Até pediram, mas não sei... A Luciana Villas-Bôas, editora da Record, foi uma que pediu. Como a minha autobiografia. Eu acho que seria uma biografia precoce. Mas já tenho um título, para o caso de um dia escrever: Ecmnésia. É aquele passado edulcorado. Tudo parece bonito no passado, mas volta lá para você ver.
É mais difícil fazer humor com o governo Lula do que com a ditadura militar?
O problema é insistir em coisas ultrapassadas. O Lula ocupou seu espaço. Acho que o Fernando Henrique é intelectualmente pior, mas no começo pensei que o Lula fosse pedir auxílio a ele para as ligações internacionais. E hoje ele é um embaixador do Brasil como não existe igual. Descobriu que, com o tradutor automático, pode falar as maiores besteiras porque vão corrigir. O Freud ficaria besta com o Lula: é o ego maior do mundo.
Você ficou feliz com a eleição de Barack Obama?
"Feliz" não é a palavra, não é algo pessoal. Queira ou não, ele é parte da história. O mundo mudou. E eu já tenho todo o direito de fazer a brincadeira do racismo ao contrário. De agora em diante vou botar em todo lugar: White is beautiful. Aliás, black is beautiful é um belo slogan. Isso é que é linguagem: não se pode tirar nenhuma palavra. Gosto de uma frase minha: "Livre como um táxi". Não dá para tirar nenhuma palavra, e não há nada menos livre que um táxi...
Daqui a 200 anos, quando se mencionar o nome do Millôr, em que parte da sua obra vão pensar primeiro?
Não acredito em obra, mas depois de 250 anos escrevendo, com aquele negócio de fazer uma frase hoje e outra amanhã, tenho muita coisa, muito pensamento espalhado por aí. "Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem", por exemplo. É evidente que algumas dessas frases persistirão.
terça-feira, 10 de agosto de 2010
Pelos bigodes de Stalin
Jerônimo Teixeira
jeronimo.teixeira@abril.com.br
Jornalista
Em seus artigos sobre a II Guerra Mundial, Jorge Amado se coloca do lado certo do conflito – mas também revela uma servil adesão às posições da União Soviética
Os comunistas cultivavam gostos estranhos. Tome-se o exemplo de Jorge Amado (1912-2001): o escritor baiano tinha verdadeira fixação nos pêlos faciais do camarada Stalin. Em um artigo de 1943, ao fantasiar a rendição de Hitler, Amado colocava as seguintes palavras na boca do líder nazista: "Stalin, quero alisar o teu bigode, eu te amo". Eis como Amado comemorava as vitórias soviéticas sobre as tropas nazistas, em janeiro do ano seguinte: "O largo sorriso do marechal Josef Stalin, saído de sob os bigodes como um símbolo, é o povo soviético sorrindo". Poucas semanas depois, o romancista de Terras do Sem Fim instalava-se mais uma vez sob as narinas do ditador soviético: "Stalin, o dos longos bigodes, aquele que tem um sorriso de criança inocente na face serena de sábio e de condutor de homens". Essas passagens fetichistas foram extraídas de Hora da Guerra , coletânea de textos escritos por Jorge Amado entre 1942 e 1944 no jornal O Imparcial, de Salvador. Até hoje inéditos em livro, são artigos inflamados de apoio ao esforço de guerra do Brasil e dos aliados. Não há dúvida de que, naquele tempo beligerante, o autor estava do lado certo da trincheira. Mas, por mais que admiremos o ardor com que Jorge Amado atacava o nazismo, hoje é difícil ignorar a contrapartida dessa atitude: a defesa entusiasmada de outro totalitarismo criminoso, o comunismo.
Em sua excelente introdução a Hora da Guerra, o historiador Boris Fausto observa que Jorge Amado escrevia da "perspectiva política" do Partido Comunista do Brasil, que, por sua vez, seguia as diretrizes de Moscou. Naquele momento, a palavra de ordem do "partidão" era a unidade contra o nazifascismo. Jorge Amado elogiava os esforços de guerra do Estado Novo de Getúlio Vargas, que já o aprisionara e queimara seus livros. Tratava-se, vale insistir, de derrotar o nazismo, objetivo internacional que justificava a aliança estratégica com a ditadura local. Amado, no entanto, não deixou jamais de criticar a censura, como registram alguns dos melhores textos da coletânea. "Estamos lutando contra o obscurantismo, contra aqueles que queimam livros e prendem escritores", diz o autor comunista em Cultura e Democracia. Belos princípios. Mas na União Soviética de Stalin também se prendiam e matavam escritores como o contista Isaac Bábel e o poeta Óssip Mandelstam. Seria mais preciso afirmar que a luta era contra apenas um obscurantismo em particular, o nazismo.
A retórica militante torna o estilo de Amado um tanto pesado. Não estamos diante do romancista lírico de Mar Morto, mas de um propagandista do partido. Ele se mostra vigilante contra simpatizantes do fascismo e supostos traidores da pátria, que chama de "quinta-colunas" e "muniquistas" (alusão ao tratado de Munique, de 1938, assinado por Hitler e pelo primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, que ingenuamente achou possível conter o expansionismo alemão pela negociação). O integralismo, a versão brasileira do fascismo, é exemplarmente ridicularizado pelo autor. Os ataques exaltados de Amado, porém, às vezes extrapolam os limites do justo e do razoável. Ele chega a propor a absolvição de um sujeito que assassinou um italiano em estúpido gesto de retaliação contra o ataque de um submarino fascista a um navio brasileiro. Outro momento vergonhoso do livro é o elogio da proposta soviética para o traçado das fronteiras com a Polônia. Nem uma só palavra é dita sobre o pacto germano-soviético que acarretou a divisão da Polônia entre nazistas e comunistas, em 1939. Ao contrário, o artigo louva a "maneira correta com que a pátria de Stalin resolve seus conflitos internacionais".
Embora os interesses soviéticos sejam sempre defendidos, a pregação estritamente comunista é discreta. Para os fins da propaganda, era contraproducente associar o combate ao nazismo com a luta pelo socialismo. Luís Carlos Prestes, chefão do PCB que Amado exaltara no livro O Cavaleiro da Esperança, nem sequer é citado em Hora da Guerra. Somente Stalin – tirano em cuja conta são debitados pelo menos 20 milhões de mortes – é enaltecido nos termos que já se viu. Jorge Amado não foi o único escritor a cantar loas ao ditador. O poeta chileno Pablo Neruda louvou a "simplicidade" de Stalin e se encantou com suas mãos poderosas, das quais nasciam cereais e tratores. A fixação no bigode, porém, é só de Jorge Amado.
Gregório, Jorges e nossos Efes de cada dia
(Marcos Garuti)
Rogério Menezes
rogerio_menezes@uol.com.br
Jornalista e escritor,
Não existe literatura baiana, acriana, texana ou escocesa. Existe, e sempre existirá, apenas literatura (boa ou má)
Não devo, e não quero, enganá-lo, caro leitor, e lhe abro o coração já neste primeiro parágrafo: acredito tanto em expressões abstratas e intangíveis como "escritor baiano" e "literatura baiana" quanto em políticos impolutos e em padres, bispos, cardeais, papas - et caterva - santos, castos e puros. (Seria o mesmo que acreditar na existência de uma "literatura alagoana" a partir de Graciliano Ramos - uma das antenas da nossa raça; nascido na remota Quebrângulo, no interior de Alagoas, em 1892).
O patrono torto dessa entidade e dessa instituição (ambas caducas e equivocadas) terá sido, involuntariamente é bom que se diga, Jorge Amado (1912-2001). Ele seria o pai de todos os alcunhados "escritores baianos" e o edificador de toda uma mistificada "literatura baiana".
A partir do fenômeno literário Jorge Amado, o nosso paulo-coelho possível entre os anos 50 e 70, baiano/baiana deixava de ser apenas adjetivo gentílico e se tornava adjetivo qualificativo com certo juízo-de-valor-favorável-agregado. Inexorável bullshit, como diriam, com precisão cirúrgica, os gringos. Creiamos firmemente: 1) escritores (bons ou maus) nascem em qualquer quadrante da Terra. 2) Não é o lugar onde nascemos o que determina que sejamos grandes ou pequenos escritores, e sim a capacidade que temos, ou não temos, de captar as fissuras da condição humana.
Depois do vendaval literário Jorge Amado (colossal e retumbante êxito mundo afora em meados do século passado), poder-se-ia rotular alguém que passava lá fora da seguinte maneira: - Lá vai um "escritor baiano"! Ou ainda: - Aquele senhor balofo ali na esquina faz "literatura baiana".
Como se o jeito de Jorge Amado registrar literariamente o mundo ao redor fosse o único jeito de registrar literariamente o mundo ao redor, passou-se a entender por "literatura baiana": a) certa capacidade técnica de produzir romances pitorescos e picarescos, impregnados de lascivas doses de pimenta e de malemolência tropical; b) assumir visão de mundo estereotipada, ligada mais às aparências do que ao que de fato ocorre, e que nem sempre está ao alcance apenas do primeiro, e raso, olhar.
Nada contra a matriz dessa aberração literária que se espalhou por toda a Bahia desde então: sou profundo admirador da literatura de Jorge Amado (costumo dizer que foi o meu Monteiro Lobato; li, entre os meus 8 e 15 anos, quase todos os romances que escreveu) - e acho que ele foi, para toda uma geração, o primeiro, e o único.
O xis do problema: foi tão primeiro e tão único para toda uma geração que se passou a pensar (tanto por parte de quem escrevia na Bahia, como por parte de quem lia a literatura produzida na Bahia) que o jeito de Jorge Amado olhar a Bahia e o mundo era o único, e o mais eficaz, jeito de olhar a Bahia e o mundo. Pior: passou-se a crer que "literatura baiana"-escrita-por-"escritores baianos" fosse quase gênero literário à parte, o qual todos os escritores nascidos na Bahia deveriam seguir à risca, como se fosse decálogo sagrado criado por algum deus embalado por fortes doses de azeite-de-dendê, pimenta-de-cheiro & maconha-da-boa.
Tratava-se, evidentemente, de bobice abissal - à sombra da qual vários "escritores baianos" tentaram em vão vicejar nas últimas décadas. O mais bem-sucedido desses filhos não assumidamente bastardos de Jorge Amado talvez seja João Ubaldo Ribeiro, exatamente o mais assumidamente bastardo dos herdeiros de Jorge Amado - no sentido mesmo de se apropriar da sintaxe amadiana, de bater cabeça ao mestre que, de alguma forma, o pariu, mas de atualizá-lo, e inseri-lo em outros contextos e em outras sintaxes mais contemporâneas.
De volta ao começo: não existe, nem existirá, portanto, "literatura baiana", como não existe, nem existirá, literatura acriana, texana ou escocesa. Existe, e sempre existirá, apenas literatura - se boa ou má, essa é uma outra questão.
O que se pode acreditar (até prova em contrário) é que exista hoje alguma literatura produzida na Bahia. Mas, coitada, essa alguma-literatura-produzida-na-Bahia-hoje vive à margem da música produzida na Bahia hoje, a prima-rica à qual apelidaram de axé music, aquele gênero musical em que tudo parece começar e acabar na pélvis. (Ok, alguém poderá dizer que na literatura de Jorge Amado também tudo acabava e começava na pélvis, e esse alguém, com muito senso de humor, talvez esteja certo - a axé music ainda poderá ser vista, por esse mesmo alguém, com ainda maior senso de humor, como a versão musical da literatura de Jorge Amado.)
Aliás, é bom que se diga que tudo que não é axé music hoje na Bahia vive a duras penas, principalmente a vida inteligente - no frigir dos ovos, o pai e a mãe de todas as artes.
Há quem teime em continuar escrevendo literatura hoje na Bahia e, desesperadamente, tente encontrar em profissões paralelas mais lucrativas o vil metal que lhe permitirá pagar (e nem sempre permitirá) o leite das crianças. Haverá, poder-se-á presumir - como provavelmente em Istambul ou em Caracas ou em Macapá -, aqueles que escrevam muito bem, e outros que escrevam muito mal - e, pior, talvez existam alguns que escrevam magistralmente, à Dostoievski e à Graciliano Ramos, e que, na eterna sombra da prima-rica axé music, só será reconhecido na posteridade, ou, pior ainda, nunca.
A todos esses (bons ou maus) escritores que tentam vicejar na frenética e axética Salvador (piquei minha mula há 24 anos, mas nem por isso sou mais afortunado), mando-lhes afetuoso recado: o (nosso) futuro literário estará mais no barroco-maluco Gregório de Matos (1636-1695) do que no moderno Jorge Amado. Foi o então alcunhado Boca do Inferno quem escreveu, em priscas eras, a seguinte pérola, sobre a já frenética, mas ainda não axética, Salvador: - De dois efes se compõe essa cidade a meu ver. Um furtar, outro foder. (Algo mais up-to-date do que essa máxima gregoriana, esteja-se em Salvador, Rio de Janeiro, Bombaim, Brasília, ou na Roma-de-Berlusconi?).
Conterrâneos: sejamos menos Jorge Amado - embora o ame de paixão e lhe seja grato por conta das minhas primeiras ereções - e mais Gregório de Matos nas nossas tentativas literárias futuras - no sentido de não ficarmos na superfície das coisas e irmos fundo na intenção expressa, e premente, de flagrarmos a nossa cada vez mais precária e deletéria condição humana.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
Muito além dos jardins
Gisele Kato
gisa.kato@hotmail.com
Jornalista
Às vezes, é preciso se distanciar de um cenário rotineiro para descobrir nele aspectos que passam despercebidos. Milhares de pessoas andam a pé, todos os dias, pelo calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, um dos cartões-postais do país. Durante a caminhada, fica difícil deixar de notar como o desenho ondulante das pedras do passeio dialoga perfeitamente com a própria baía e o Pão de Açúcar, ao fundo. No entanto, revela como a harmonia dessa conhecida paisagem se constrói de maneira bem mais sofisticada. A curva da praia combina não apenas com o piso da calçada, mas também com as árvores plantadas na ilha central da avenida Atlântica e com os jardins calculadamente dispostos ao lado dos prédios. Vista assim, do alto, Copacabana parece uma pintura modernista. Não por acaso, foi o primeiro projeto paisagístico a ser exibido numa bienal de arte, a de Veneza, em 1970. O autor da obra: o brasileiro Roberto Burle Marx (1909-1994), que ajudou a desenhar, com plantas, flores e lagos, alguns dos endereços mais divulgados do Brasil, como o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, o Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.
Para Burle Marx, o artista, vale a mesma máxima de que a distância — no caso temporal — ajuda a mostrar a real dimensão das coisas. Só agora, às vésperas do centenário de seu nascimento, tem-se uma exposição abrangente sobre o legado do paisagista, que se abre, no próximo dia 12, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Em conjunto, sua produção impressiona. "Roberto Burle Marx, Lucio Costa e Oscar Niemeyer formam a trinca central para que o nosso modernismo tenha adquirido características próprias, que foram além do racional-funcionalismo em voga na época na Europa e defendido por Le Corbusier", diz Lauro Cavalcanti, curador da retrospectiva intitulada A Permanência do Instável. Além de ter implantado em sua arte as curvas do modernismo brasileiro, Burle Marx é inovador por várias outras razões:
• Imprimiu aos jardins um caráter pictórico, como fica
claro na foto aérea de Copacabana, ao lado. Trata-se de um pensamento visual que se afina com as criações em tela, pois o paisagista também foi pintor — e dos bons.
• Incorporou plantas brasileiras às suas criações, uma atitude pioneira na década de 1930.
• Descobriu novas espécies, que levam seu nome.
• Foi um dos precursores da consciência ecológica nos anos 70, quando começou a dar palestras sobre o assunto.
• Criou o conceito de "jardim vertical", com arranjos que escalam totens metálicos e esculturas de pedra.
• Inovou numa forma — o jardim — que havia séculos tinha características estabelecidas: os franceses com sua simetria, os italianos com suas fontes, os ingleses com seus caminhos sinuosos.
• Fez do jardim uma "experiência estética", para causar sensações a quem o atravessa, antecipando, de certa forma, o pensamento das instalações contemporâneas.
Com 80 pinturas em tela, 16 pinturas sobre tecido, 95 guaches sobre papel, cinco esculturas em vidro murano, três tapeçarias, 34 projetos paisagísticos, 26 maquetes e 12 jóias, além de muitas fotos, documentos, objetos pessoais e dois documentários, a mostra no Paço Imperial pretende abarcar um universo extenso, fruto do esforço de um homem que preferia "pecar pelo excesso a parar por covardia". Disposta em ordem cronológica decrescente, a seleção começa com os cenários feitos para uma adaptação teatral do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, nos anos 90, e chega à década de 1930, com desenhos e guaches. Para cada momento, o curador escolheu exibir ainda um projeto de paisagem significativo no período, o que permite ao público traçar paralelos entre as várias formas de produção do artista. Estão lá painéis com detalhes dos jardins do Ministério da Educação e Saúde Pública, planejados em 1938, o Aterro do Flamengo, de 1961, e o já citado calçadão da avenida Atlântica, construído em 1970 (leia mais sobre os projetos nas legandas ao longo desta reportagem). Não por acaso, três obras situadas no Rio de Janeiro, que deve a Burle Marx grande parte de seus cartões-postais menos óbvios — quase todos em que não aparecem o Cristo e o Pão de Açúcar.
O artista nasceu em São Paulo, mas morou praticamente a vida toda no Rio. Em 1928, sua família decidiu viver um ano na Alemanha, terra do pai, Wilhelm Marx, um homem culto, amante da música erudita e incentivador incansável das escolhas do filho, quaisquer que fossem elas. Antes da viagem, o jovem de 19 anos encontrava-se indeciso sobre a sua vocação profissional. A pintura já era uma paixão forte, mas a música também o encantava. Nos intervalos entre uma atividade e outra, ele ainda corria para o jardim que cultivava em casa havia mais de uma década, só com plantas nativas da encosta da pedra do Leme. O gosto pela mata recebia o apoio da mãe, Cecília Burle, de ascendência francesa, que dizia ver no verde o espírito divino.
Berlim funcionou para Burle Marx como um mergulho profundo em tudo aquilo de que ele gostava. Foi a muitos concertos e se familiarizou ainda mais com as peças dos compositores românticos Wagner, Schumann e Schubert. Visitou muitos museus e conferiu de perto a revolução cubista protagonizada por Picasso e Braque, isso sem contar as telas iluminadas pelas pinceladas nervosas de Van Gogh. Mas o encontro que viria a se impor como definitivo para sua trajetória artística deu-se de forma bem despretensiosa, disfarçada até. No Jardim Botânico da capital alemã, Burle Marx se encantou com as estufas de espécies tropicais — e levou um susto quando leu na placa de identificação da maioria das plantas a sua origem: Brasil. Sim, ele teve de atravessar um oceano para enxergar direito as bromélias e palmeiras que cresciam por aqui aos montes. Voltou ao Rio decidido a estudar pintura, conformado em cantar peças líricas só para os amigos e intrigado com a beleza de uma flora tipicamente brasileira. Na época, ainda não sabia direito o que fazer com aquele encantamento.
Por Uma Paisagem de Curvas
O endereço da família, na então rua Araújo Gondim, no bairro carioca do Leme, garantiu-lhe aquela dose de sorte de que todo gênio em início de carreira precisa. Seu vizinho era ninguém menos do que Lucio Costa. Em 1932, o já respeitado arquiteto e urbanista riscava para a família Schwartz, em Copacabana, a primeira casa modernista do Rio de Janeiro, em parceria com Gregori Warchavchik, e convidou o amigo Burle Marx para criar seus jardins. Costa vinha acompanhando a evolução das composições tropicais que seu colega fazia no quintal e resolveu apostar nele para complementar um projeto que buscava justamente as linhas e formas genuinamente brasileiras. Entusiasmado, Burle Marx contava que tentara aplicar de uma vez tudo aquilo que tinha em mente e o resultado acabou ficando "um peru no pires" — ou seja, informação demais em pouco espaço. Depois dessa experiência, no entanto, não parou mais. Em seu jardim de estréia, as plantas distribuíam-se por canteiros redondos, em contraponto ao quadriculado das placas do piso do terraço. Burle Marx esboçava assim o jogo plástico que iria modificar os parâmetros artísticos da época e definir uma nova escola. Curvas, como as que acompanham este texto, impunham-se como uma característica forte, que logo iria dominar os contornos da arquitetura moderna brasileira.
Burle Marx consagrou-se como o grande paisagista do século 20. Além, é bom fazer justiça, de um pintor nada desprezível — e de um cantor capaz de embalar alguns dos mais longos e animados almoços cariocas. Tudo regado a uma bebida inventada por ele, a "pitangolangomangotango", como anunciava, rindo, a mistura de suco de pitanga e vinho. "As reuniões no sítio Santo Antônio da Bica (a casa do paisagista a partir da década de 1950 e hoje sítio Burle Marx, em Barra de Guaratiba, no Rio, patrimônio do Iphan), eram uma delícia. Lembro que até a toalha da mesa era pintada por ele, que também montava arranjos de flores para cada canto. Ficávamos diante de minipaisagismos a cada encontro", lembra a amiga e crítica de arte Lélia Coelho Frota.
"Não houve no mundo quem levasse a estética moderna para o paisagismo como o fez Burle Marx; daí sua dimensão. As curvas que surgiriam depois nas construções de concreto armado de Lucio Costa e Oscar Niemeyer apareceram pela primeira vez nos jardins de Burle Marx", conta o curador Cavalcanti. De fato, os acabamentos arredondados são um aspecto de destaque no universo do artista. Basta pensar, mais uma vez, nas ondas em preto-e-branco da calçada de Copacabana, de imenso poder gráfico. Tem-se lá 4,5 quilômetros de uma espécie de painel gigante, pontua do por coqueiros. Desenhada em pedra portuguesa, um de seus materiais preferidos por causa justamente da maleabilidade, a padronagem serve de carro-chefe para muitas outras que enfeitam as ruas cariocas. Visto de cima, o Rio de Janeiro é todo marcado pelo preto, branco e vermelho fechado das pedras aplicadas, seguindo os traços das pranchetas do mestre.
A revolução perpetrada por Burle Marx no paisagismo moderno não se detém no uso recorrente das formas redondas e na utilização de espécies nativas. "Ele transportou para o jardim as idéias inovadoras de sua geração", analisa o curador. E inovou. Muito. O arquiteto Haruyoshi Ono, que trabalhou com o artista durante 30 anos e até hoje comanda o escritório dele, o Roberto Burle Marx & Cia. Ltda., no Rio de Janeiro, diz que as paredes cobertas de vegetação são outra invenção do sócio: "Ele tinha um conhecimento múltiplo e estava sempre disposto a ensinar. Misturava plantas com totens metálicos e esculturas de pedras. Explorava os tons de verde, as cores das flores".
Mosaicos Orgânicos
Admirar os jardins de Burle Marx é perceber seus contrastes, texturas e volumes. Ele abandonou o modelo quase estático europeu, em que predominavam as rosas, azaléias e magnólias, para explorar as possibilidades de montagens mais livres, que em muito se assemelham à própria mata virgem. Planejava suas criações levando em consideração as tonalidades assumidas pelas plantas ao longo de cada estação do ano, em um exercício ao mesmo tempo de controle e submissão às mudanças às vezes imprevisíveis da natureza. Em nome de um desafio constante, evitava a todo custo qualquer tipo de fórmula e chegou a inventar um termo para definir seus próprios princípios: chamava de "extravasaria" a sua cartilha particular. "Extravasaria significa sair e procurar outros caminhos, contra a rotina", definia.
Segundo o crítico francês Jacques Leen hardt, autor do livro Nos Jardins de Burle Marx, lançado em 1994 pela editora Perspectiva, o paisagista tinha plena consciência de que o impacto de sua obra virtuosa se escorava em dois -aspectos fundamentais e simultâneos: o deslocamento do próprio visitante pelo espaço e sua percepção sensorial. "A experiência do jardim é toda ela feita de ritmos. Como experiência física, põe evidentemente em jogo a própria estrutura do corpo: sua verticalidade. O homem na natureza e, por conseguinte, no jardim, é sempre uma vertical móvel que se desloca em relação a uma horizontal fixa", diz na publicação. Peça para puro deleite, sedutora por deixar os sentidos em estado de alerta, um jardim conta ainda, como escreveu Leen hardt, com a dimensão do tempo, alterando-se conforme o crescimento das espécies, podas e replantios. O estudioso fala em um trabalho em "perpétua modificação".
Para manter esse nível de renovação, Burle Marx acompanhava sempre botânicos em expedições de pesquisa. Até nesse aspecto, não é absurdo comparar as excursões do paisagista às viagens dos intelectuais modernistas pelas várias regiões do Brasil, em busca de nossas raízes. Ao longo da vida, Burle Marx descobriu um gênero e 18 espécies de plantas, todas batizadas com seu nome. Dessas aventuras pelas florestas, formou ainda uma consciência ecológica pioneira. Na década de 1970, ele deu muitas palestras em que alertava para a devastação do meio ambiente, uma postura nada comum no período.
Terreno como Tela, Planta como Tinta
Sobre o diálogo entre paisagismo e pintura, Burle Marx repetia sempre: "Sei muito bem qual a linguagem dos jardins e qual a linguagem das telas. Não as misturo nunca, mas considero o domínio desses dois campos fundamental para a manutenção da criatividade em um e no outro". Por isso, os críticos e especialistas em sua obra insistem tanto na importância de dominar a produção de Burle Marx por inteiro para melhor entendê-la em cada área: "Há uma conversa muito íntima entre sua pintura e seu paisagismo. Estabelecer paralelos não só é possível como desejável", defende o curador Lauro Cavalcanti.
De fato, Burle Marx não realizou pouca coisa no campo da pintura. Foi assistente de Candido Portinari no fim dos anos 30, trabalhou com Alberto da Veiga Guignard e chegou a dar aulas para Lygia Clark. Nunca se filiou a uma escola estética, embora tenha flertado com quase todas. O amigo Luiz Áquila, também pintor, que ajudou Cavalcanti a selecionar algumas das obras para exibição, recorda que nada o deixava mais feliz do que ver alguém interessado em suas telas. "Talvez porque tenha sido um lado mais esquecido de sua carreira", analisa. Em retratos, naturezas-mortas e paisagens, é, no entanto, impossível deixar de notar o colorido explosivo de uma paleta que remete quase que automaticamente à natureza.
O único desgosto de Burle Marx foi não ter conseguido implantar, em seu sítio em Santo Antônio da Bica, cursos de paisagismo e ecologia. Mas o "poeta dos jardins", como Tarsila do Amaral o apelidou depois de uma visita a suas estufas, deixou muitos oásis pelo Brasil, além de em cidades como Washington e Caracas, que falam por si sós. Modesto, em um dos documentários que serão apresentados na mostra do Paço Imperial, ele divaga: "De certa maneira, fui poeta da minha própria vida". E, com sua poe sia, mudou os parâmetros da arte moderna no país.
gisa.kato@hotmail.com
Jornalista
Às vezes, é preciso se distanciar de um cenário rotineiro para descobrir nele aspectos que passam despercebidos. Milhares de pessoas andam a pé, todos os dias, pelo calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, um dos cartões-postais do país. Durante a caminhada, fica difícil deixar de notar como o desenho ondulante das pedras do passeio dialoga perfeitamente com a própria baía e o Pão de Açúcar, ao fundo. No entanto, revela como a harmonia dessa conhecida paisagem se constrói de maneira bem mais sofisticada. A curva da praia combina não apenas com o piso da calçada, mas também com as árvores plantadas na ilha central da avenida Atlântica e com os jardins calculadamente dispostos ao lado dos prédios. Vista assim, do alto, Copacabana parece uma pintura modernista. Não por acaso, foi o primeiro projeto paisagístico a ser exibido numa bienal de arte, a de Veneza, em 1970. O autor da obra: o brasileiro Roberto Burle Marx (1909-1994), que ajudou a desenhar, com plantas, flores e lagos, alguns dos endereços mais divulgados do Brasil, como o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, o Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.
Para Burle Marx, o artista, vale a mesma máxima de que a distância — no caso temporal — ajuda a mostrar a real dimensão das coisas. Só agora, às vésperas do centenário de seu nascimento, tem-se uma exposição abrangente sobre o legado do paisagista, que se abre, no próximo dia 12, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Em conjunto, sua produção impressiona. "Roberto Burle Marx, Lucio Costa e Oscar Niemeyer formam a trinca central para que o nosso modernismo tenha adquirido características próprias, que foram além do racional-funcionalismo em voga na época na Europa e defendido por Le Corbusier", diz Lauro Cavalcanti, curador da retrospectiva intitulada A Permanência do Instável. Além de ter implantado em sua arte as curvas do modernismo brasileiro, Burle Marx é inovador por várias outras razões:
• Imprimiu aos jardins um caráter pictórico, como fica
claro na foto aérea de Copacabana, ao lado. Trata-se de um pensamento visual que se afina com as criações em tela, pois o paisagista também foi pintor — e dos bons.
• Incorporou plantas brasileiras às suas criações, uma atitude pioneira na década de 1930.
• Descobriu novas espécies, que levam seu nome.
• Foi um dos precursores da consciência ecológica nos anos 70, quando começou a dar palestras sobre o assunto.
• Criou o conceito de "jardim vertical", com arranjos que escalam totens metálicos e esculturas de pedra.
• Inovou numa forma — o jardim — que havia séculos tinha características estabelecidas: os franceses com sua simetria, os italianos com suas fontes, os ingleses com seus caminhos sinuosos.
• Fez do jardim uma "experiência estética", para causar sensações a quem o atravessa, antecipando, de certa forma, o pensamento das instalações contemporâneas.
Com 80 pinturas em tela, 16 pinturas sobre tecido, 95 guaches sobre papel, cinco esculturas em vidro murano, três tapeçarias, 34 projetos paisagísticos, 26 maquetes e 12 jóias, além de muitas fotos, documentos, objetos pessoais e dois documentários, a mostra no Paço Imperial pretende abarcar um universo extenso, fruto do esforço de um homem que preferia "pecar pelo excesso a parar por covardia". Disposta em ordem cronológica decrescente, a seleção começa com os cenários feitos para uma adaptação teatral do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, nos anos 90, e chega à década de 1930, com desenhos e guaches. Para cada momento, o curador escolheu exibir ainda um projeto de paisagem significativo no período, o que permite ao público traçar paralelos entre as várias formas de produção do artista. Estão lá painéis com detalhes dos jardins do Ministério da Educação e Saúde Pública, planejados em 1938, o Aterro do Flamengo, de 1961, e o já citado calçadão da avenida Atlântica, construído em 1970 (leia mais sobre os projetos nas legandas ao longo desta reportagem). Não por acaso, três obras situadas no Rio de Janeiro, que deve a Burle Marx grande parte de seus cartões-postais menos óbvios — quase todos em que não aparecem o Cristo e o Pão de Açúcar.
O artista nasceu em São Paulo, mas morou praticamente a vida toda no Rio. Em 1928, sua família decidiu viver um ano na Alemanha, terra do pai, Wilhelm Marx, um homem culto, amante da música erudita e incentivador incansável das escolhas do filho, quaisquer que fossem elas. Antes da viagem, o jovem de 19 anos encontrava-se indeciso sobre a sua vocação profissional. A pintura já era uma paixão forte, mas a música também o encantava. Nos intervalos entre uma atividade e outra, ele ainda corria para o jardim que cultivava em casa havia mais de uma década, só com plantas nativas da encosta da pedra do Leme. O gosto pela mata recebia o apoio da mãe, Cecília Burle, de ascendência francesa, que dizia ver no verde o espírito divino.
Berlim funcionou para Burle Marx como um mergulho profundo em tudo aquilo de que ele gostava. Foi a muitos concertos e se familiarizou ainda mais com as peças dos compositores românticos Wagner, Schumann e Schubert. Visitou muitos museus e conferiu de perto a revolução cubista protagonizada por Picasso e Braque, isso sem contar as telas iluminadas pelas pinceladas nervosas de Van Gogh. Mas o encontro que viria a se impor como definitivo para sua trajetória artística deu-se de forma bem despretensiosa, disfarçada até. No Jardim Botânico da capital alemã, Burle Marx se encantou com as estufas de espécies tropicais — e levou um susto quando leu na placa de identificação da maioria das plantas a sua origem: Brasil. Sim, ele teve de atravessar um oceano para enxergar direito as bromélias e palmeiras que cresciam por aqui aos montes. Voltou ao Rio decidido a estudar pintura, conformado em cantar peças líricas só para os amigos e intrigado com a beleza de uma flora tipicamente brasileira. Na época, ainda não sabia direito o que fazer com aquele encantamento.
Por Uma Paisagem de Curvas
O endereço da família, na então rua Araújo Gondim, no bairro carioca do Leme, garantiu-lhe aquela dose de sorte de que todo gênio em início de carreira precisa. Seu vizinho era ninguém menos do que Lucio Costa. Em 1932, o já respeitado arquiteto e urbanista riscava para a família Schwartz, em Copacabana, a primeira casa modernista do Rio de Janeiro, em parceria com Gregori Warchavchik, e convidou o amigo Burle Marx para criar seus jardins. Costa vinha acompanhando a evolução das composições tropicais que seu colega fazia no quintal e resolveu apostar nele para complementar um projeto que buscava justamente as linhas e formas genuinamente brasileiras. Entusiasmado, Burle Marx contava que tentara aplicar de uma vez tudo aquilo que tinha em mente e o resultado acabou ficando "um peru no pires" — ou seja, informação demais em pouco espaço. Depois dessa experiência, no entanto, não parou mais. Em seu jardim de estréia, as plantas distribuíam-se por canteiros redondos, em contraponto ao quadriculado das placas do piso do terraço. Burle Marx esboçava assim o jogo plástico que iria modificar os parâmetros artísticos da época e definir uma nova escola. Curvas, como as que acompanham este texto, impunham-se como uma característica forte, que logo iria dominar os contornos da arquitetura moderna brasileira.
Burle Marx consagrou-se como o grande paisagista do século 20. Além, é bom fazer justiça, de um pintor nada desprezível — e de um cantor capaz de embalar alguns dos mais longos e animados almoços cariocas. Tudo regado a uma bebida inventada por ele, a "pitangolangomangotango", como anunciava, rindo, a mistura de suco de pitanga e vinho. "As reuniões no sítio Santo Antônio da Bica (a casa do paisagista a partir da década de 1950 e hoje sítio Burle Marx, em Barra de Guaratiba, no Rio, patrimônio do Iphan), eram uma delícia. Lembro que até a toalha da mesa era pintada por ele, que também montava arranjos de flores para cada canto. Ficávamos diante de minipaisagismos a cada encontro", lembra a amiga e crítica de arte Lélia Coelho Frota.
"Não houve no mundo quem levasse a estética moderna para o paisagismo como o fez Burle Marx; daí sua dimensão. As curvas que surgiriam depois nas construções de concreto armado de Lucio Costa e Oscar Niemeyer apareceram pela primeira vez nos jardins de Burle Marx", conta o curador Cavalcanti. De fato, os acabamentos arredondados são um aspecto de destaque no universo do artista. Basta pensar, mais uma vez, nas ondas em preto-e-branco da calçada de Copacabana, de imenso poder gráfico. Tem-se lá 4,5 quilômetros de uma espécie de painel gigante, pontua do por coqueiros. Desenhada em pedra portuguesa, um de seus materiais preferidos por causa justamente da maleabilidade, a padronagem serve de carro-chefe para muitas outras que enfeitam as ruas cariocas. Visto de cima, o Rio de Janeiro é todo marcado pelo preto, branco e vermelho fechado das pedras aplicadas, seguindo os traços das pranchetas do mestre.
A revolução perpetrada por Burle Marx no paisagismo moderno não se detém no uso recorrente das formas redondas e na utilização de espécies nativas. "Ele transportou para o jardim as idéias inovadoras de sua geração", analisa o curador. E inovou. Muito. O arquiteto Haruyoshi Ono, que trabalhou com o artista durante 30 anos e até hoje comanda o escritório dele, o Roberto Burle Marx & Cia. Ltda., no Rio de Janeiro, diz que as paredes cobertas de vegetação são outra invenção do sócio: "Ele tinha um conhecimento múltiplo e estava sempre disposto a ensinar. Misturava plantas com totens metálicos e esculturas de pedras. Explorava os tons de verde, as cores das flores".
Mosaicos Orgânicos
Admirar os jardins de Burle Marx é perceber seus contrastes, texturas e volumes. Ele abandonou o modelo quase estático europeu, em que predominavam as rosas, azaléias e magnólias, para explorar as possibilidades de montagens mais livres, que em muito se assemelham à própria mata virgem. Planejava suas criações levando em consideração as tonalidades assumidas pelas plantas ao longo de cada estação do ano, em um exercício ao mesmo tempo de controle e submissão às mudanças às vezes imprevisíveis da natureza. Em nome de um desafio constante, evitava a todo custo qualquer tipo de fórmula e chegou a inventar um termo para definir seus próprios princípios: chamava de "extravasaria" a sua cartilha particular. "Extravasaria significa sair e procurar outros caminhos, contra a rotina", definia.
Segundo o crítico francês Jacques Leen hardt, autor do livro Nos Jardins de Burle Marx, lançado em 1994 pela editora Perspectiva, o paisagista tinha plena consciência de que o impacto de sua obra virtuosa se escorava em dois -aspectos fundamentais e simultâneos: o deslocamento do próprio visitante pelo espaço e sua percepção sensorial. "A experiência do jardim é toda ela feita de ritmos. Como experiência física, põe evidentemente em jogo a própria estrutura do corpo: sua verticalidade. O homem na natureza e, por conseguinte, no jardim, é sempre uma vertical móvel que se desloca em relação a uma horizontal fixa", diz na publicação. Peça para puro deleite, sedutora por deixar os sentidos em estado de alerta, um jardim conta ainda, como escreveu Leen hardt, com a dimensão do tempo, alterando-se conforme o crescimento das espécies, podas e replantios. O estudioso fala em um trabalho em "perpétua modificação".
Para manter esse nível de renovação, Burle Marx acompanhava sempre botânicos em expedições de pesquisa. Até nesse aspecto, não é absurdo comparar as excursões do paisagista às viagens dos intelectuais modernistas pelas várias regiões do Brasil, em busca de nossas raízes. Ao longo da vida, Burle Marx descobriu um gênero e 18 espécies de plantas, todas batizadas com seu nome. Dessas aventuras pelas florestas, formou ainda uma consciência ecológica pioneira. Na década de 1970, ele deu muitas palestras em que alertava para a devastação do meio ambiente, uma postura nada comum no período.
Terreno como Tela, Planta como Tinta
Sobre o diálogo entre paisagismo e pintura, Burle Marx repetia sempre: "Sei muito bem qual a linguagem dos jardins e qual a linguagem das telas. Não as misturo nunca, mas considero o domínio desses dois campos fundamental para a manutenção da criatividade em um e no outro". Por isso, os críticos e especialistas em sua obra insistem tanto na importância de dominar a produção de Burle Marx por inteiro para melhor entendê-la em cada área: "Há uma conversa muito íntima entre sua pintura e seu paisagismo. Estabelecer paralelos não só é possível como desejável", defende o curador Lauro Cavalcanti.
De fato, Burle Marx não realizou pouca coisa no campo da pintura. Foi assistente de Candido Portinari no fim dos anos 30, trabalhou com Alberto da Veiga Guignard e chegou a dar aulas para Lygia Clark. Nunca se filiou a uma escola estética, embora tenha flertado com quase todas. O amigo Luiz Áquila, também pintor, que ajudou Cavalcanti a selecionar algumas das obras para exibição, recorda que nada o deixava mais feliz do que ver alguém interessado em suas telas. "Talvez porque tenha sido um lado mais esquecido de sua carreira", analisa. Em retratos, naturezas-mortas e paisagens, é, no entanto, impossível deixar de notar o colorido explosivo de uma paleta que remete quase que automaticamente à natureza.
O único desgosto de Burle Marx foi não ter conseguido implantar, em seu sítio em Santo Antônio da Bica, cursos de paisagismo e ecologia. Mas o "poeta dos jardins", como Tarsila do Amaral o apelidou depois de uma visita a suas estufas, deixou muitos oásis pelo Brasil, além de em cidades como Washington e Caracas, que falam por si sós. Modesto, em um dos documentários que serão apresentados na mostra do Paço Imperial, ele divaga: "De certa maneira, fui poeta da minha própria vida". E, com sua poe sia, mudou os parâmetros da arte moderna no país.
domingo, 1 de agosto de 2010
A dinâmica dos meios de comunicação
Clóvis de Barros Filho
cbarrosf@usp.br
Graduado em direito e em jornalismo, mestre em Science Politique - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.
A sociologia de Bourdieu desmascara os interesses na produção da notícia, mas também suas críticas acadêmicas mais ingênuas
Infelizmente o sociólogo Pierre Bourdieu legou poucos estudos e reflexões sobre os meios de comunicação. Apesar de uma produção abrangente que discute desde problemas relativos à estrutura do ensino (A reprodução), passando por complicadas questões sobre o gosto, a arte (A distinção, As regras da arte), e até mesmo tratando questões ligadas ao mercado imobiliário (As estruturas sociais da economia), Bourdieu pesquisou muito pouco sobre a comunicação. Seu principal texto sobre o assunto foi publicado no Brasil, em livro, intitulado Sobre a televisão. Texto este muito aquém de seus outros trabalhos. Tanto no número de páginas, quanto no rigor de pesquisa e na profundidade do assunto. Coube então aos seus discípulos, engajados no campo da comunicação, usar as ferramentas oferecidas por ele para o estudo da mídia.
Partindo dos referenciais teóricos de Bourdieu, podemos afirmar que o gosto, determinante de nossas inclinações aos atos de consumo midiático, tem uma origem social. Assim como a própria produção desta. E, por essa razão, ambas devem ser objetos de investigação sociológica. Sociologia do consumo midiático. Sociologia de sua produção. Problemas intrínsecos para quem faz uso dessa maneira de ver o mundo.
Com base em A distinção (1975), de Bourdieu, podemos constatar que tanto a produção como o consumo de produtos ligados aos meios de comunicação de massa não apenas possui uma origem social. Ela também discrimina e hierarquiza seus agentes. Classifica socialmente. Diferencia o leitor da revista CULT da leitora da revista Contigo, e exclui prováveis consumidores de revistas pornográficas que utilizam papel couché fosco. O consumo de mídia é, portanto, objeto de distinção social. Assim como também discrimina os agentes sociais que trabalham nesses meios, bem como seus textos.
Teoria sobre dominação
A definição do que é um meio de comunicação legítimo é, assim, uma questão de primeira importância para todos os agentes do grupo social. Afinal, alguns meios dominantes, como a Rede Globo e a Editora Abril, por exemplo, pretendem conservar o status quo midiático, enquanto outros, como a Rede Record e SBT, editoras periféricas e portais de internet apostam na subversão da ordem estabelecida, isto é, da relação de forças que estrutura o espaço da comunicação. Por isso, essa relação de forças acaba se objetivando numa relação de valores. Afinal, toda a vida organizada em sociedade, a menos que se recorra à violência física, deve ser reconhecida e aceita como legítima.
Por isso, a sociologia que estuda os meios de comunicação, como proposto por Bourdieu, é indissociável de sua teoria sobre a dominação. É pela demanda de seus produtos (vulgo Ibope) e pelas manifestações dos telespectadores que os dominantes asseguram suas posições. Abre-se, aqui, todo um campo de análise dos conflitos e da violência simbólica em jogo pelos meios, na qual os dominados participam da construção de legitimidade imposta, aceitando suas posições e ratificando um tipo dominante de se fazer produtos midiáticos.
Mas se a mídia é um objeto sociológico que recentemente se impõe, constitui-se num objeto de investigação particularmente dramático para o sociólogo. O consumo midiático que, de certa forma, o traduz fenomenicamente, é um imenso depósito de pré-construções naturalizadas, portanto ignoradas enquanto tais no cotidiano, que funcionam como instrumentos habituais de construção. Todas as categorias comumente empregadas na identificação de suas tendências, idade - jovens e velhos -, sexo - homens e mulheres -, renda - ricos e pobres -, são contrabandeadas do senso comum, pelo discurso científico, sem muita reflexão. Alem disso, o padrão de quem avalia um produto televisivo, por exemplo, é o padrão enraizado pela trajetória social desse avaliador nas suas experiências com os diversos programas de televisão com que teve contato desde a infância.
Essas categorias de análise do produto midiático fazem parte de todo um trabalho social de construção de grupo e de uma representação desse grupo infiltrada na ciência do mundo social. É o que explica tanta facilidade de adaptação. Facilidade exagerada, talvez. Aceitas as categorias, listas e mais listas de dados estão à disposição do pesquisador para confirmação ou refutação parcial.
A investigação sobre as inclinações de audiência deste ou daquele nicho - respeitados os critérios estatísticos de amostragem - ganham aura de constatação científica. A indiscutibilidade desse tipo de resultado legitima procedimentos e suas premissas. Encobre seu caráter arbitrário. Isso porque as escolhas técnicas, as mais aparentemente empíricas, são inseparáveis das escolhas de construção de objeto, as mais teóricas. Logo, explicar a produção dos meios de comunicação através de dados de audiência, tiragem, assinantes, cliques, e quantidade de anúncios recai num equivoco grave que só é justificado pelo imaginário do senso comum.
"Um jornalista escreve para outro jornalista"
O campo de produção de conteúdos midiáticos tem regras próprias que se encontram em seus próprios agentes e nas suas relações com os demais. No meu livro O 'habitus' na comunicação, mostro como a produção jornalística é fruto de um habitus jornalístico, utilizando o jargão de Bourdieu, onde os critérios de fato jornalístico e de pauta não são meras estratégias burguesas de dominação, como diria um marxista, mas sim frutos de uma interiorização da aprendizagem jornalística. Interiorização esta que aprende a ver o mundo segundo uma determinada importância, classificada em certas editorias jornalísticas (primeira página, cidade, esporte, internacional etc.), pensa numa quantidade "x" de caracteres, e avalia a matéria segundo as observações de seus pares. Como nossos pesquisados confessam, "um jornalista escreve para outro jornalista". Assim como em nossas pesquisas sobre o campo publicitário, feitas na Escola Superior de Propaganda e Marketing, escutamos constantemente entre os dominantes a mesma observação: "Minha propaganda se impõe contra meu concorrente... Apesar de existirem as exigências do briefing imposto pelo contratante, nossa equipe está pouco preocupada com a recepção do público final. Só nos interessa o que nossos colegas vão dizer".
O forte apego à pesquisa de campo, exigência central feita pela sociologia de Bourdieu, desmascara não só o discurso interessado dos agentes da comunicação mas também o senso comum acadêmico que avalia a mídia segundo "achismos". Ao constatar que o discurso de um jornalista, ou de um relações públicas, não é em nenhum momento pautado pelos critérios "idealistas" de transparência, objetividade, neutralidade e democratização do conhecimento, constatamos que tais produções são frutos de um jogo de desejos. As matérias são selecionadas e escritas visando atingir interesses os mais diversos, determinados pela posição do agente no campo. Sem altruísmos e sem pensar no "bem comum", apesar de seus discursos identitários.
Jogo da comunicação
Nem mesmo os publicitários, tidos como manipuladores, estão interessados no bem de seus clientes ou dos consumidores. No que se refere aos discursos acadêmicos dominantes sobre a comunicação, a sociologia de Bourdieu, através de uma pesquisa de campo rigorosa, expõe as ingenuidades e os erros que perspectivas marxistas e pós-modernas fazem da produção midiática. Há, sim, interesses envolvidos na fabricação de uma notícia, como ambos denunciam. Mesmo nesta matéria que eu escrevo, denunciando os interesses. Porém, o comunicador não é movido por uma ideologia burguesa para a dominação de massa. A reunião de pauta das grandes mídias não é, em nenhum momento, uma reunião de porcos asquerosos que visam camuflar a exploração capitalista e combater a ameaça comunista até seu total extermínio, posição esta compartilhada por muitos acadêmicos da "velha guarda" e por jovens, cheios de hormônios, que habitam os centros acadêmicos.
A produção da notícia, ou da propaganda, também não é fruto de desejos individuais que querem se expressar em toda sua "força" visando sua satisfação e fluidez, característico das ditas "sociedades pós-modernas" de consumo. Não é o hedonismo naïf o "combustível" que move os comunicadores de diversas áreas, como querem acreditar os pensadores pós-modernos. São desejos complexos de aceitação no campo, disputa e dominação que estão em jogo. São os troféus dos campos e suas posições de destaque e dominância o fim último da produção de notícia. A "preocupação" com o leitor, telespectador, ou consumidor é somente uma desculpa para justificar seus acertos ou fracassos. Respeitar o "bem" da empresa que contrata o comunicador é somente uma mera desculpa para se manter empregado e continuar jogando o jogo da comunicação. Jogo esse com regras bem claras, mas quase nunca expressas.
Por essas duas razões, a sociologia de Pierre Bourdieu encontra dificuldades em se estabelecer no mundo acadêmico e mercadológico. Os métodos de investigação, e seus resultados, desmancham os mecanismos de defesa de ambos os campos. Desmascara os agentes da comunicação e os interesses acadêmicos mais sórdidos. Ao encarar tanto a produção da noticia ou publicidade e sua crítica voraz como produtos de consumo recheados de interesses, essa sociologia cria inúmeros inimigos. Nesse sentido, imita seu próprio criador. Odiado em vida por muitos e admirado por muito poucos.
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