Juvenal Savian Filho
juvenal.savian@unifesp.br
Doutor em Filosofia pela USP, diplomado em Teologia pela UPS-Roma, especialista em Filosofia Medieval, professor da Graduação e Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo
Ao romper as fronteiras entre a literatura e a filosofia, a problemática da escrita tornou-se o núcleo do pensamento de Derrida
Curiosa e instigante, no imaginário filosófico contemporâneo, é o "personagem" Jacques Derrida. Ele aparece como "o desconstrutor", e essa imagem tem sua razão de ser, pois, iniciando sua vida filosófica pela via da fenomenologia de Husserl, Derrida não deixou nunca de estudar a tradição clássica - de Platão a Heidegger -, mantendo, porém, uma relação muito complexa com ela, afinal, o que interessava ao filósofo nascido na Argélia era mostrar que essa tradição se alimenta justamente daquilo que ela não mostra. Tal abordagem crítica diante de toda e qualquer prática ou teoria é o que Derrida chamava de "desconstrução".
Todavia, a desconstrução derridiana não significa destruição, mas um modo de desfazer uma estrutura para fazer aparecer seu esqueleto. Em outras palavras, ela equivaleria ao "refazer" algo, no sentido em que se fala, comumente, de "refazer" um caminho: alguém que refaz o caminho de outro não abre propriamente a senda já batida, não faz um caminho novo, mas refaz a mesma via ao andar por onde o outro andou. A analogia serve para mostrar o que Derrida considerava imprescindível: desmontar as experiências humanas para compreendê-las, assim como se desmonta uma edificação ou um artefato para expor suas estruturas, sua nervura e seu esqueleto.
Se fosse apenas isso, a desconstrução reduzir-se-ia a um mero procedimento de conhecimento por análise, ou mesmo por "refacção", e, nisso, não teria muito de original, visto que mesmo alguns neotomistas, muito antes da publicação de A Escritura e a Diferença e de Da Gramatologia, já falavam da necessidade de "distinguir para unir", retomando métodos assaz clássicos na história do pensamento ocidental (haja vista a infinidade de distinctiones registradas em obras medievais). Ao contrário, a descontrução visa, sobretudo, expor - como dizia Derrida - a precariedade ruinosa de uma estrutura formal que não explica mais nada, não sendo nem um centro, nem um princípio, nem uma força, nem mesmo a lei dos eventos, no sentido mais geral do termo.
Assim, a desconstrução, como tal, não se reduz a um método (como um método que reduzisse o composto ao simples), nem a uma análise, e, nesse sentido, ela transcende mesmo a decisão crítica ou a ideia crítica. A desconstrução, portanto, também não é negativa, apesar da imagem negativa que dela se fez na cena filosófica, a despeito das palavras de Derrida, para quem a desconstrução deve vir sempre acompanhada de uma exigência afirmativa e mesmo de amor.
Em todo caso, a desconstrução, por razões mais ou menos óbvias, fez grande sucesso, e, historicamente, apareceu num contexto dominado pelo estruturalismo. Tal contexto talvez forneça uma das razões de seu sucesso, porque ela se apresenta como um gesto estruturalista e antiestruturalista ao mesmo tempo, na medida em que sua superação do estruturalismo se dá pelo fato de ela não admitir como determinada e definitiva nenhuma compreensão, nem nenhuma estrutura. A sorte da filosofia, assim, não estaria lançada.
Talvez o núcleo do pensamento de Derrida, ou um dos elementos do núcleo, seja a problemática da escrita, uma vez que ele rompe as fronteiras (sempre mal delimitadas, diga-se de passagem) entre a literatura e a filosofia. Duas fontes por ele mesmo reconhecidas são Mallarmé e Maurice Blanchot, em sua busca do que ele designava como a direção em que um evento literário atravessa e ultrapassa a filosofia. No dizer de Mallarmé, certas "operações", certos simulacros literários ou poéticos, às vezes, dão a pensar aquilo que a teoria filosófica da escrita desconhece, ou mesmo aquilo que ela proíbe com violência. Derrida extrai daí que, para analisar a interpretação tradicional da escrita, sua conexão essencial com a essência da filosofia, da cultura e mesmo do pensamento político ocidental, é necessário não se fechar nem nos pretensos limites da filosofia nem nos da literatura: "para além dessa partilha pode se anunciar ou se apresentar uma singularidade da marca que não seja ainda nem linguagem, nem palavra, nem escrita, nem signo, nem mesmo o 'próprio do homem'. Nem presença, nem ausência, para além da lógica binária, oposicional ou dialética. Desde então, nunca mais se oponha a escrita à palavra; nenhum protesto contra a voz; analisei somente a autoridade que lhe emprestamos, a história de uma hierarquia".
Ora, essa problematização das fronteiras entre filosofia e literatura, encorpada pela prática da desconstrução, custou a Derrida, em certos contextos, a fama de "demolidor" ou de pseudofilósofo que atenta contra a capacidade cognitiva da razão. Assim, apenas para dar um exemplo, vale lembrar que o meio em que Derrida começara sua atividade intelectual era bem determinado, ou, se se preferir, bem "intimidado" (no dizer dele mesmo) pelo marxismo e pela psicanálise, que reivindicavam o caráter de "ciência" com uma violência proporcional à dificuldade que ambos tinham para provar sua cientificidade. E isso era considerado como uma espécie de antiobscurantismo, o "iluminismo" do século 20. Derrida, porém, sem atacar o espírito iluminista, procurou, discretamente, não ceder à intimidação, e decifrou certa metafísica subjacente ao marxismo e à psicanálise, sob uma forma que não era somente lógica ou discursiva, mas terrivelmente institucional e política.
Nesse mesmo contexto, falava-se muito do fim da filosofia. Para alguns, isso implicava que era tempo de passar à ação; para outros, "filosofia" não era senão sinônimo de um mito, o mito de uma etnia ocidental. Derrida, então, teve a coragem de anunciar um "enclausuramento da metafísica" (clôture de la métaphysique), o que, sem sombra de dúvida, continua supondo a afirmação de que não se pode operar senão no interior do campo da razão. Não haveria exterioridade à razão, e o enclausuramento da metafísica não significaria o seu fim, mas, como dizia o filósofo (num certo tom hegeliano), significaria a potência retida de uma combinação ao mesmo tempo esgotante e infatigável. Esse enclausuramento não teria a forma de um círculo ou de um limite além do qual se poderia saltar para fora, rumo a uma prática não filosófica, por exemplo. Ao contrário, para Derrida, o limite da filosofia é singular, e sua apreensão não se dá nunca sem certa reafirmação incondicional. Ele costumava dizer que, mesmo que não se possa nomear diretamente a filosofia como "ética" ou "política", ela termina por tratar das condições de uma ética ou de uma política, e de uma responsabilidade de pensamento que não se confunde estritamente nem com a filosofia, nem com a ciência, nem com a literatura como tais.
Desse ponto de vista, ainda que seja possível discordar, sob muitos aspectos, do pensamento de Derrida, não se pode negar que, desde sua primeira fase fenomenológica até o fim de sua vida, ele foi um defensor da honra da razão. Uma prova histórica desse dado vem certamente da conferência por ele proferida em Nice, no ano de 2002, na abertura do 29º Congresso da Associação das Sociedades de Filosofia de Língua Francesa, reunido em torno do tema "Futuro da Razão - Devir das Racionalidades".
Nessa conferência, Derrida serve-se de uma metáfora para retratar o fracasso iminente da razão: um capitão, quando prevê um naufrágio ou um desastre, decide encalhar o navio para salvá-lo. Assim estaria a razão: encalhada. Prevendo seu próprio fim, ela se encalhou, afinal, nossos contemporâneos, perdidos no mundo globalizado e inebriados pela tecnociência (sobretudo aqueles beneficiados pelo apartheid global), não distinguem mais "razão" de "racionalidade" e vão tomando, conforme os interesses técnico-econômicos, as diferentes formas de racionalidade, engendradas pelo dinamismo próprio da razão, como se fossem a própria razão e a esgotassem. E o que é pior: das várias racionalidades contemporâneas, nosso mundo escolheu a mais perniciosa para identificar com a razão, qual seja, a racionalidade programada, tecnocientífica, como se a verdade da experiência humana fosse dada pelo número de informações "objetivas", matematizáveis, obtidas pelos métodos científicos.
Para Derrida, o melhor caminho para salvar a honra da razão - e, assim, desencalhá-la -, é lembrar que o mundo ocidental nasceu do espírito da razão, valorizando o conhecimento total. No dizer de Derrida, "precisamos, sim, conhecer; precisamos conhecer mais e o melhor possível", o que, entretanto, não equivale a um elogio ingênuo da racionalidade programada. A prova disso é o seu argumento contra a clonagem humana, pois, no seu dizer, em nome da singularidade humana, do amor e do incalculável, a clonagem deve ser recusada. Na verdade, para ele, todo tipo de clonagem deveria ser esquecido, pois o incalculável e o imprevisível são condições para o exercício livre da razão. Numa palavra, haveria duas condições para o exercício da razão: a liberdade e a amizade. E justamente essas duas condições seriam atacadas pela racionalidade tecnocientífica.
A saída? Continuar a desconstrução e ver que uma ética fundamentada apenas na ideia iluminista de "dever" não é suficiente para atender às necessidades do humano. Com base nisso, pode-se pensar numa espécie de hiperética, aberta às diferentes formas de captar a verdade da experiência humana, como são a fé e a crença, a estética etc. E isso não significa irracionalismo, pois, na base dessa atitude, há uma crítica racional e uma tentativa da própria razão no sentido de desencalhar-se.
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