segunda-feira, 19 de julho de 2010

O filósofo refratário




Jorge Coelho Soares
jorge.coelho.soares@gmail.com
Mestre em psicologia social pela Fundação Getúlio Vargas e doutor em comunicação e cultura pela ECO/UFRJ

As apropriações da obra de Marcuse no Brasil pertencem ao processo de abertura intelectual do país

"Refratários são os sujeitos que ninguém consegue sujeitar. Mal vistos à direita, mal vistos à esquerda, vomitados pelo centro, estrangeiros nas margens, onde você quer colocá-los?" Philippe Sollers

Herbert Marcuse é um pensador tão instigante quanto complexo, tanto pelas suas idéias, quanto pelas apropriações que foram feitas delas a partir de um imaginário que tentou delinear para ele uma imagem de "pensador e militante revolucionário". Foi trazido assim à cena do debate intelectual e divulgado, inclusive no Brasil, como maître à penser dos enragés de 1968. Porém, sua complexidade e densidade de reflexão permitiram que sobrevivesse, não como um "filósofo da moda" mas como um grande pensador, permanentemente envolvido pelas novas inquietudes da razão e da emoção que a modernidade tardia colocava em cena. Ao lado de Adorno, Horkheimer e Benjamin, estabelecerá um alicerce teórico fundamental do que conhecemos como Escola de Frankfurt.

E é nesse "movimento de idéias" conhecido hoje também como Teoria Crítica, surgido na Alemanha na década de 1920 e consolidado nos anos de 1930, que Marcuse deve ser estudado e compreendido. Não que isso implique nele, nem nos demais membros deste grupo, uma adesão acrítica a uma forma de pensar preestabelecida, à qual todos deviam prestar obediência. Muito mais é uma aproximação intelectual a um conjunto de inquietações compartilhadas às quais se acreditava poder dar conta, a partir de um referencial teórico, em permanente construção, ao qual todos eles já haviam assumido previamente como seu. É no diálogo entre seus membros que a "Escola" irá desdobrando suas reflexões e se construindo. É nesse diálogo intelectual também que precisamos situar o pensamento de Herbert Marcuse, como um marco referencial a que ele recorria sempre e ao qual se sentiu ligado por toda a sua vida.

Recepção no Brasil

No Brasil, a recepção das idéias de Marcuse se deu de forma tímida e incipiente a partir dos anos de 1960 sem que, naquele momento, entre os nossos intelectuais, se tivesse clareza da dimensão, amplitude e profundidade do seu pensamento. O mesmo poderia ser dito dos demais membros da Escola de Frankfurt.

Seus teóricos, mesmo nesse período, são ainda praticamente desconhecidos, mesmo entre filósofos brasileiros. Destaque-se aí nesse momento, a Revista da Civilização Brasileira, editada de março de 1965 a dezembro de 1968. Possivelmente era a de maior circulação nacional entre intelectuais na época e já registrava a publicação de alguns artigos de membros da Escola de Frankfurt, como Adorno e Benjamin, além de Marcuse. A maior parte dos trabalhos desses teóricos ainda se encontrava em alemão e as expressões "Escola de Frank-furt" ou "Teoria Crítica" eram, se muito, uma referência ainda pouco valorizada no discurso de raríssimos intelec-tuais e filósofos brasileiros.

O trabalho de José Guilherme Merquior, Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, publicado pela editora Tempo Brasileiro em 1969, é uma das raras exceções daquela época. Constitui, sem dúvida, o pri-meiro estudo brasileiro envolvendo o "bloco principal" (pelo menos, naquele momento) dos pensadores da Escola de Frank-furt, não havendo registro de nenhum outro de semelhante envergadura, naquela época. Na apresentação desse trabalho, o próprio Merquior aponta que as obras dos autores por ele estudados são em sua maioria desconhecidas no Brasil.

Marcuse chegava também trazido pelos ventos passageiros, mas extremamente relevantes, de uma abertura intelectual no Brasil que, contrariamente ao que se pensa, caracterizou boa parte da década de 1960, mesmo após a instauração do regime militar em 1964. Houve inclusive, principalmente de 1964 a 1968, a aceleração de um processo de abertura em direção às mais importantes correntes da cultura universal. Isso gerou, entre outras coisas, um número significativo de novas traduções de autores e teóricos consagrados. A percepção de um gradual fechamento do regime e da possibilidade de instauração de uma ditadura militar, em moldes fascistas - o que efetivamente acabou acontecendo -, eletrizava boa parte da intelectualidade brasileira. Era preciso abastecer o mercado das discussões políticas e ideológicas com novos autores, novas idéias, novas formas de luta que pudessem fazer frente àquela ameaça que pairava no ar. Tendo como um de seus objetivos principais justa-mente a quebra do monopólio dos manuais soviéticos que aqui circulavam dos quais se extraía uma interpretação já rigidamente fixada pelo PCB e em busca da construção de uma esquerda a altura de seu tempo, muitos intelectuais se engajaram numa luta em favor da inserção/tradução de novos, e por aqui pouco conhecidos, teóricos marxistas como Lukács, Gramsci, Adam Schaff e Marcuse.

Entre a análise e a "grande recusa"

A boa receptividade das obras de Marcuse, por amplos setores da intelectualidade e entre os jovens brasileiros, com ênfase especial para Eros e civili-zação e Ideologia da sociedade industrial, pode também ser creditada a dois outros fatores. Primeiro porque, de todos os membros da Escola de Frankfurt, era o único realmente conhecido e valorizado. Já freqüentava regularmente os meios de comunicação, sendo neles freqüentemente apontado como maître à penser dos "movimentos de rebelião", particularmente entre os jovens, que ocorriam em vários países da Europa. O se-gundo fator que ajudou a boa receptividade de Marcuse foi o fato de que, naquele momento, já havia um crescente desagrado em relação às posições "teóricas e práticas" que emanavam do PCB, que se apresentava como uma espécie de guardião insti-tucional do marxismo e seu "único" porta-voz. O seu caráter ritualizado e burocratizado desagradava a amplos setores da intelectualidade, incluindo boa parte dos seus militantes, que esperavam do partido uma ação mais combativa e direta. Com o endurecimento do regime militar, questionava-se abertamente a timidez dos quadros do PCB em face dessa realidade concreta. Nesse contexto, a idéia de uma "grande recusa" parecia mais adequada ao clima de impaciência revolucionária que se avolumava, do que as teorizações protelatórias de uma ação revolucionária que nunca se efetivava.

Misturada ecleticamente com Mao, Marx, Debray e Althusser, amplos setores da intelectualidade, particular-mente os de esquerda, ignoraram num primeiro momento as in-coerências teóricas que poderiam trazer rejeições in-contornáveis entre esses teóricos. Adotaram-nos "em bloco", como aqueles que seriam capazes de fornecer subsídios teóricos para uma ação eficaz, quer contra a ditadura, identificada ao capitalismo, quer contra o "partidão", portador para eles de uma esclerose senil do marxismo.

O momento seguinte da recepção e apropriação das idéias de Marcuse ocorre logo a seguir à "ação", gerada por uma impaciência que acreditou poder vencer a di-tadura pela luta armada.

O impacto com a duríssima realidade de um sistema social e político, extremamente cruel com qualquer tipo de oposição, principalmente armada, estabeleceu para "as es-querdas" novos limites de pensamento e ação. Uma parte dela voltou-se em direção a outros teóricos como Althusser e Gramsci, que pareciam oferecer perspectivas de análise que permiti-riam uma sustentação da resistência a longo prazo, através de outros mecanismos de luta com a ditadura, cuja retaliação, inexorável, era inteiramente desfavorável às esquerdas.

Uma outra parte se voltou "realmente" em direção à "grande recusa", tomada por eles porém num sentido tão li-teral e próprio quanto absolutamente excludente. Recusavam a ditadura, o capitalismo, a tecnologia, todo o legado cultu-ral anterior, a ciência e, principalmente, recusavam a "razão ocidental". Esta, que no século 18 fora vista como absolutamente necessária e suficiente para dar conta do mundo, ao ser percebida nos anos de 1960 como necessária mas não suficiente, podia, finalmente, ser totalmente descartada. Como não era suficiente, deixara de ser também necessária. Se "o sonho da razão só produzira monstros" até então, era a vez de entronizar a "desrazão" e construir um outro "admirável mundo novo". Surgiram assim os movimentos de contracultura, assumindo no Brasil dos anos de 1970 a sua versão tropicalista, permeada de um romantismo utópico anticapitalista, antitecnológico. Tudo conspirando a favor de um hedonismo que apontava o corpo e suas sensações como objetivo máximo de "libertação". O indivíduo passava a ser visto como a última instância indivisível e fundadora de sentido. Marcuse, sem ser consultado, é então embarcado na stultífera nave da contracultura.

De ideólogo da contracultura a "mercadoria de grande aceitação"

Creio que alguns fatores se combinaram para a transformação de Marcuse em fonte de inspiração para vários movimentos de contracul-tura no Brasil: o primeiro é que as pessoas que compunham os grupos de contracultura se detinham basicamente em somente duas das obras de Marcuse, que eram as mais divulgadas no Brasil, Eros e civilização e Ideologia da sociedade industrial. Ao descontextualizar essas obras do conjunto de reflexões de Marcuse, facilitava-se uma apreensão/interpretação "radicalizada" e "idiossincrática" de muitos de seus conceitos, cuja carga de "ambigüidade" poderia se dissolver - ou pelo menos ser matizada - no confronto com as suas demais obras. Essa ambigüidade de muitos dos seus conceitos, que acredito ser mais aparente do que real, associada à força poética de suas propostas utópicas - Orfeu e Narciso contra Prometeu, a necessidade de uma "nova sensibilidade", a luta contra a repressão, entre outras - deve ter exercido o seu papel nesse processo, de sedução e cooptação de Marcuse como ideólogo de uma contracultura. Não creio, todavia, que realmente, a maioria dos jovens e intelectuais daquela época tivesse "realmente" lido Marcuse, no sentido de uma leitura atenta e reflexiva, capaz de levá-los a compreender a arquitetura das suas reflexões teóricas. Aliás, o próprio Marcuse, naquela época, parece que compartilhava dessa hipótese. Em uma entrevista realizada na França, em 1968, publicada na revista Manchete nº. 863, do mesmo ano, ele afirmou: "Acredito que existem muito poucos estudantes que me leram na verdade..." e atribuía à imprensa e à publicidade criada em torno de seu nome, o fato de ter se transformado numa "mercadoria de grande aceitação".

A isso agrego uma outra hipótese complementar. Na construção do estereótipo que foi esboçado pelos jovens e muitos intelectuais daquela época, numa simplificação de Marcuse e suas idéias, jogou um papel decisivo um fenômeno a que os ingleses denominam jumping to conclusions. Merquior sugere esse termo em seu livro Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, ao criticar a leviandade de boa parte dos intelectuais ou dos que se acreditam como tal, diante de novas teorias. Para ele, é comum ocorrer nesse tipo de intelectual, uma "alegre corridinha do espírito humano rumo às conclusões precipitadas, saltitando para a proclamação a-crítica de redutoras 'idéias gerais', sem se dar ao incômodo de verificar nem qualificar coisa alguma".

Acredito assim, que boa parte da intelectualidade da época, principalmente os jovens, "portava" Marcuse mais do que o lia. Faziam dele, principalmente, um uso emblemá-tico, carregando suas obras, mais do que as dissecando em seus fundamentos. Através delas, eram conferidos signos distintivos de saber, rebeldia e vanguardismo. Conferiam a seus portadores "poder e atualidade", expressos no caráter ostensivo da sua exibição. Os livros de Marcuse talvez oferecessem a muitos de seus portadores, na época, o símbolo de uma fantasia de "engajamento e contes-tação", acalentada pelos intelectuais e jovens daquele tempo.

Marcuse era, portanto, particularmente naquele momento histórico dos anos 1960, moeda corrente no "mercado dos bens simbólicos". Sua inserção entre nós não se deu aí através de um real domado nos limites da razão, que se legitima ao estabelecer julgamentos à luz dos fatos. Defendo, pelo contrário, que a apropriação de suas idéias, bem como o processo de constituição das diversas imagens que compuseram os múltiplos "Marcuses", foram elaboradas sem que o real tivesse exercido hegemonicamente o seu poder. Marcuse foi constituído, principalmente, num hipotético espaço intervalar entre o real - representado aqui pela efetiva publicação de suas obras e o imaginário social, que dele se apropriou reinterpretando-o, permitindo assim o seu uso emblemático.

Marcuse hoje

A última fase da recepção das idéias de Marcuse no Brasil, que basicamente se estende até os nossos dias, vai ocorrer de forma completamente diferente das duas primeiras já descritas.

O período Médici havia sangrado de morte o imagi-nário dos jovens e da intelectualidade nos anos de 1960 e 1970. Teoria e prática haviam passado por um longo e doloroso confronto. Fora necessário descobrir mecanismos para fazer a revolução, articulando reflexão teórica crítica e a prática. As "aventuras do espírito" tinham sido substituídas rapidamente pelas "aventuras da ação" e para atravessar o limite entre o mundo real, amplamente rejeitado, e o mundo imaginário em direção às utopias, só os teóricos da ação passavam a despertar interesse. A prática revolucionária tinha pressa.

Marcuse vai então para certo ostracismo no Brasil, que dura praticamente toda a década de 1970. Ao retornar, no fim dessa mesma década, viu seu papel reduzido a um dos membros "menos relevantes" da Es-cola de Frankfurt. A inserção da Escola como um todo já es-tava aceleradamente em curso e os nomes de Adorno, Horkhei-mer e Benjamin despontavam como seus maiores expoentes, aos quais se juntou logo a seguir Habermas. À Marcuse, a histó-ria desse movimento de idéias conhecido como Teoria Crí-tica reservou um papel de coadjuvante; aquele que, tendo se inspirado nas idéias centrais desse "movimento", correu em trilho próprio, "radicalizando" algumas dessas concepções teóricas.

Marcuse, porém, agora já despojado da aura produzida pela mídia, podia ser também melhor lido e avaliado. Havia já, entre-tanto, muitas e variadas opções teóricas à disposição dos intelectuais, inclusive mesmo dentro da própria teoria crí-tica.

Pode-se também ressaltar que essa última fase de assimilação da Escola e de Marcuse, não mais essencialmente via New Left dos Estados Unidos - onde Marcuse representou figura de proa com predomínio absoluto na primeira fase e boa parte da segunda - foi sucedida por sua vertente "européia", num retorno às suas raízes originais.

Essa também é a época a partir da qual se destaca, cada vez mais, um intelectual brasileiro que pode, sem ne-nhum favor, ser apontado como o responsável pelo processo de disseminação da Escola de Frankfurt no Brasil: Sérgio Paulo Rouanet. Através de seus textos, alguns já publicados aqui no fim da década de 1960 e outros mais que vem produzindo re-gularmente, desde os anos de 1970, se percebe a marca registrada frankfurtiana. A partir de Rouanet expurgou-se, definitivamente, qualquer apropriação irracionalista, fora dos propósitos originais, quer de Marcuse, quer da Escola, como um movimento de idéias. Na obra de Rouanet há, da mesma forma, um sempre renovado esforço de sustentar um debate vivo em torno da Teoria Crítica, quer em relação a seus pressupostos teóri-cos, quer quanto ao seu potencial como desveladora de nossa contemporaneidade.

Resta por fim nos perguntarmos se, nos tempos atuais, onde se tenta drenar toda energia utópica, principalmente dos jovens - tempos em que o neoliberalismo os convida agressivamente a compartilhar de sua miséria espiritual, reduzindo a sua existência a um bom emprego, a um bom salário, para o consumo ilimitado de objetos e pessoas - se Marcuse ainda tem algo a dizer, particularmente às novas gerações.

Creio que sim e o digo de forma enfática. Não compartilho da idéia atual de que a juventude seja, ou já tenha sido, um bloco monolítico. Sempre houve, como há hoje em dia, muitos tipos de jovens. Para muitos deles - e talvez isso seja realmente hoje uma tendência central, que aspira à hegemonia - não somente o pensamento de Marcuse, mas qualquer reflexão crítica é anacrônica e dispensável, pois isso não ressoa bem na lógica da razão instrumental, na lógica do cálculo onde estão imersos. Porém, para muitos outros jovens, em busca de uma lógica do sentido, capazes de perceber com espírito crítico que na lógica simplista, eficiente e dicotômica entre o mais e o menos do capitalismo, há a possibilidade de se pensar a lógica do suficiente, como nos lembrou certa vez André Gorz. Para que isso ocorra, é necessário pensar para além da unidimensionalidade da razão instrumental, em direção a uma "nova sensibilidade", acreditando que o rastro de um sonho não é menos real do que o rastro de um passo. Nesse momento, certamente, Marcuse poderá surgir como excelente interlocutor.

Por outro lado, se em tempos sombrios as teorias valem menos do que os homens, nos advertiu Hannah Arendt, ainda assim Marcuse restará, como pensador íntegro e coerente com sua reflexão até o fim. Ficará em nós como grande filósofo que sabia que suas idéias não faziam parte de um hipotético, de inspiração borgeana, "museu das idéias petrificadas para serem admiradas", mas construía suas reflexões para serem lidas criticamente e ultrapassadas, para se reter delas o essencial e avançar.

domingo, 18 de julho de 2010

A mulher e o índio em Casa Grande & Senzala

André Cervinskis
acervinskis@yahoo.com
Escritor e ensaísta pernambucano

Gilberto de Melo Freyre, que, se vivo, teria 106 anos, recebeu diverso títulos internacionais, publicou diversos outros livros (Guia Prático e Sentimental do Recife, Sobrados e Mocambos, Nordeste, Açúcar, entre outros), mas nenhum deles contribuiu tanto para o consagrar como Casa Grande & Senzala. Este livro, escrito em 1933, representou uma nova visão da sociologia brasileira, quando o Brasil passou a ser visto pelos olhos do próprio brasileiro, de todos que compõem o Brasil: negros, brancos e índios. Sendo o primeiro livro do autor, logo o consagrou como “fundador do Brasil em termos culturais”, como diria Darcy Ribeiro, “ como Cervantes fez com a Espanha, Camões com Portugal, Tolstoi com a Rússia, Sartre com a França”.

Nesse artigo, não me deterei numa análise profunda de temas amplamente conhecidos da obra freyriana, como as relações entre senhor e escravo, a influência do clima , da alimentação e mesmo do perfil do colonizador Português. Vou procurar destacar o enfoque que Freyre deu para os mais excluídos dessa sociedade colonial: as mulheres, tanto as senhoras de engenho quanto as negras e indígenas, e os índios. Especialmente do último, por vivermos um período em que tudo que venha esclarecer sobre as nossas origens indígenas, os hábitos e costumes de nossos primeiros ancestrais, interessa de modo particular.

Seu estilo literário de escrever, incomum para os sociólogos, não conseguiu ser bem digerido pelos intelectuais de sua época. Isso porque todo tratado sociológico tinha que seguir uma metodologia rígida, de imparcialidade. Linguagem seca, sem paixão. Freyre, nesse ponto, mereceu diversas repreensões da crítica especializada, que não conseguia captar o porquê de Freyre valorizar termos chulos: Numa obra como a de Gilberto Freyre, porém, sua língua deve ser simples e nossa, não julgo indispensável que seja chula, impura e anedótica, tal como aparece em tantas de suas páginas. É pouco técnico esse linguajar. Pouco científico. Dá ao livro um aspecto literário que seu assunto e as suas graves proporções não comportam. Freyre magistralmente rompe com tal linguagem ao deixar que suas tendências literárias, de bom prosista e até poeta, interferissem na feitura do texto. Várias são as incursões literárias de Freyre que tornam sua obra mais doce de ser lida: “ Terra e homem estavam no estado bruto. Suas condições de cultura não permitiam aos portugueses vantajoso intercurso comercial que reforçasse ou prolongasse o mantido por eles com o Oriente. Nem reis de Cananor nem sobas de Sofala encontraram os descobridores do Brasil com quem tratar ou negociar. Apenas morubixabas. Bugres.” Ele fugia do caráter científico imparcial. Em todos os estudos sobre o Brasil. De fato, nunca negou, mesmo em seu livro, o amor e nacionalismo extremado que tinha pelo seu país.

Vários mitos foram derrubados com o lançamento de Casa Grande & Senzala. O primeiro deles foi quanto à ineficiência da colonização portuguesa para a formação de um país com maior capacidade de desenvolvimento. (como se alguma colonização, mesmo a estadunidense, tivesse o propósito primordial de fundar um novo país na América!). Gilberto Freyre provou que, graças à sua experiência nas colonizações anteriores, como África e Ásia, além das suas características culturais, como o de se reproduzir com facilidade e seu agrupamento, o português foi o povo que se encaixou para a “civilização’ do Brasil. Graças ao contato com povos distantes, indianos, africanos e mouros, estes constituindo a formação da própria identidade nacional portuguesa, o lusitano acostumou-se às agruras da colonização e se desfez de pudores quanto à união com ‘raças inferiores’ .

O segundo mito que Gilberto Freyre derrubou é o de que o índio era ‘inocente’,‘bom”. O índio idealizado por Gonçalves dias e difundido por José de Alencar não correspondia ao real. Gilberto mostrou ao Brasil a verdadeira cara do nativo da América Portuguesa. Mas não o desvalorizou: mostrou sua contribuição, como ervas, comidas hábitos incorporados ao quotidiano do brasileiro, etc.

O terceiro mito derrubado por Freyre foi o de que o negro se constituiu o lado negativo da formação de nossa identidade. Ressaltou-se muito o caboclo (descendente do português com o índio), mas esqueceu-se o mulato (filho das relações ilícitas dos senhores com suas escravas). Gilberto Freyre provou que a alegria, espontaneidade e integridade do negro muito contribuiu para a formação do caráter do brasileiro. Mostrou a influência de suas línguas (porque foram várias as nações de africanos que par aqui vieram), seus costumes, as comidas os instrumentos adaptados, estudou a religião dos negros, considerada de “ segunda classe’ , enfim, mostrou ser o Brasil negro-índio-português, ou, mais especificamente, caboclo-mulato-cafuso.

O capítulo 2 do livro Casa Grande & Senzala é dedicado aos primeiros habitantes do Brasil, os índios. Este capítulo, como o subtítulo indica, procura mostrar a influência que o indígena exerceu sobre nossa cultura. Analisa a relação que se estabeleceu entre ele e os portugueses, a evangelização da Igreja, os hábitos e costumes que herdamos deles, as ervas e culinária e algumas particularidades.Os críticos, sociólogos e historiadores muito se inclinaram para comentar sobre os negros e suas relações com o senhor de engenho. Mas, quanto aos índios, essa preocupação praticamente não existe.

Primeiramente, Freyre mostra como a realidade do português era bem diferente do espanhol em termos de colonização. Se, ao chegar às Américas, o espanhol se defrontou com uma civilização hierárquica e militarmente organizada, tendo que empreender vigorosa campanha para estabelecer se domínio sobre as terras dos astecas e incas, o português encontrou no Brasil povos vivendo ainda um sistema sócio-econômico pré-histórico, subdivididos em nações muito diferentes umas das outras. Ao contrário dos espanhóis, que estabeleceram com os pré-colombianos uma relação hostil logo de início, com os índios os portugueses procuraram estabelecer trocas e favores, para conquistar sua confiança. Mas logo mostraram a que vieram, e tentaram dominar as terras e os próprios nativos, para escravizá-los. Os nativos se mostraram inaptos para o serviço, além de oferecerem bastante resistência por meio de fugas constantes, e já em l536, há relato da primeira remessa de negros para a América Portuguesa

Os portugueses, imbuídos de uma cultura ainda medieval, tentaram trazer ‘as luzes’ da fé e civilização para os ‘ selvagens’ . Por isso, logo nas primeiras expedições, jesuítas e franciscanos foram enviados com o intuito de catequisar e ensinar ‘ bons hábitos’ aos índios. Cumprindo este papel civilizador, a Igreja contribuiu para o extermínio da cultura, língua e religião dos ameríndios. Os jesuítas, por meio de suas missões, foram os principais agentes dessa doutrinação europeizante. Gilberto critica a posição dos jesuítas, de uma catequese que não levou em conta o respeito aos costumes e tradições indígenas. Estrategicamente concentrando-se nos ‘culumins’ ou crianças índias, os jesuítas pretendiam formar uma nova sociedade cristianizada e esquecida de seus valores ‘ pagãos’ . Por vezes imbuídos do mais genuíno espírito religioso, os jesuítas amoleceram o caráter guerreiro dos indígenas com suas canções decoradas em homenagem a Nossa Senhora, sempre de cabeça baixa, resignados. Mesmo com todas essas críticas, Freyre elogia a unidade nacional que não seria possível se o português não fosse estabelecido com língua padrão. Espalhando-se por todo litoral, adentrando no sertão, os Companheiros de Jesus impuseram o português como idioma comum a nações tão diferentes quanto os jês, tapuios, caetés. Não obstante o esforço de uns poucos, como José de Anchieta, elogiado por Freyre como tendo uma visão de autêntico apóstolo de Cristo, por ter compilado um dicionário tupi-guarani–português, os jesuítas prepararam os índios para serem explorados pelos portugueses ou por eles mesmos nas missões, onde estabeleceram um regime de produção ‘ cooperativo’ , unindo a ação evangelizadora ao trabalho da agricultura. Freyre chega a afirmar a inadaptação dos jesuítas ao estilo de vida dos ameríndios, por prestigiar muito mais o intelecto que o manual. Puxar mais pela memória que pelo braço do indígena. Os franciscanos, ao contrário, amigos da natureza, com um regime de divisão de bens, aproximou-se mais da realidade do evangelizando, e obteve mais sucesso.

Esta religiosidade imposta pelo branco, porém, não sairia ileso do contato cultural com o nativo. Tanto que se estabelece no Brasil um catolicismo mais folclórico, menos ritualístico, cheio de superstições. A própria umbanda, adaptação da religião dos negros à realidade da colônia, possui algumas influências indígenas, como o caboclo e ervas para tirar maus espíritos. De raiz totêmica e fetichista, a religião primitivista dos índios, que levava em conta o culto aos elementos da natureza, teve dificuldade em se submeter ao monoteísmo judaico-cristão. A única aproximação possível foi a veneração aos santos, levando mesmo assim, em conta os rituais próprios dos índios, que reverenciavam suas entidades com festas, sacrifícios, deles recebendo curas e ações sobrenaturais por meio dos pajés ou feiticeiros das tribos. Muitas dessas práticas ainda resistem ao tempo, no Sertão, por meio das rezadeiras, que não deixam de constituir um ritual mágico de pedir a saúde.

Gilberto exalta o índio com feitos antes não reconhecidos. Segundo ele, ‘ a contribuição do indígena (...) foi formidável: mas só na obra de devastamento e de conquista, dos sertões, de que ele foi o guia, o canoeiro, o guerreiro, o caçador e pescador. Muito auxiliou o índio ao bandeirante mameluco, os dois excedendo ao português em mobilidade, atrevimento e ardor guerreiro; sua capacidade de ação e de trabalho falhou, porém, no ramo-rame tristonho da lavoura de cana, que só as reservas extraordinárias de alegria e de robustez animal do africano tolerariam tão bem. Compensou-se o índio, amigo ou escravo dos portugueses, da inutilidade no esforço contínuo pela extrema bravura no heróico e militar. Na obra do sertanismo e de defesa da colônia contra espanhóis, contra tribos inimigas dos portugueses, contra corsários.” (FREYRE 1984:94-5)

Da culinária, herdamos dos índios a cultura de mandioca, praticamente substituindo o trigo no começo da colonização. Dela, se extraía um veneno que, se ingerido, provocava a morte de quem a consumia. O indígena, sabendo disso, processava por meio de técnicas artesanais, a goma de mandioca, que servia para fazer tapiocas, um prato hoje típico do Nordeste. E a farinha, que dava para fazer bolos e comidas salgadas. Também o milho, um cereal totalmente americano, era muito utilizado para diversas utilidades.

Para cada doença, o indígena tinha um chá ou uma bebida especial. Unindo superstição ao conhecimento empírico, os nativos desenvolveram uma medicina natural que hoje em dia tem servido de base para muitas pesquisas médicas, algumas já comprovadas. Ainda hoje, nos mercados populares do país, encontram-se ervas para todos os males, das dores de barriga até a inapetência sexual.

O hábito de dormir em redes apenas atiçou mais a preguiça do europeu, que considerava o Brasil o próprio Éden, onde ele, apartado das famílias de origem, amancebava-se com as índias que desfilavam nuas em sua frente. De todos os hábitos, porém, o do banho diário foi o que mais escandalizou o português. Considerado até prejudicial à saúde, o português com dificuldade se adaptou ao regime higiênico da colônia, cujo calor era causa principal dos quase 15 banhos diários tomados pelos índios que os cronistas coloniais registraram.

Considerado por muito tempo como viril, o índio na verdade se revelou apático sexualmente, segundo as observações de Freyre. Freud explicou que, quando não há atividade sexual, procura-se transferir a energia empregada em outro fim. Em breves palavras, isso seria a sublimação. E é isso que Gilberto constata, quando percebe ser comum, em diversas regiões do Brasil, nações indígenas com danças com objetos fálicos (FREYRE 100). E, por conta disso, concluíram os cronistas, o motivo da submissão e até o gosto que a índia tinha de ser submetida aos impulsos sexuais dos brancos. Encontravam nesse último a virilidade que faltava aos seus companheiros. (FREYRE, 1984: 100.102)

Gilberto vasculha mais e descobre a importância das cores, especialmente o vermelho, como instrumento de profilaxia para algumas doenças, que se supunha provirem dos ‘ maus espíritos’ . A isso, atribui a preferência até hoje do vermelho nas roupas das mulheres do interior, além da presença dessa cor nas nossas manifestações populares, como o reisado e maracatu. Os europeus, sendo dominadores, impuseram sua moral para os indígenas.

Uma das primeiras imposições a que os padres da Companhia de Jesus sujeitaram os indígenas foi obrigá-los a andarem vestidos, com pudor de mostrarem o sexo. O que provocou uma série de epidemias, de doenças de pele a pneumonia, entre as tribos. Sendo um ambiente propício ao estabelecimento de relacionamentos não-convencionais de portugueses e ‘bugras’ , como eram chamadas as índias, os padres apressaram-se em convencer os indígenas sobre a moral da monogamia. O português que aqui chegava, mal-acostumado do contato com as moças árabes, onde o islamismo pregava a poligamia, viu terreno fértil para relaxar na sua conduta e entregar-se a aventuras amorosas com as nativas. O incesto, prática comum entre os índios, que não viam problema algum em juntar tio materno com sobrinha e oferecer mulheres para acompanhar noturnamente os hóspedes, tratou logo de ser erradicado pelos jesuítas. Era um escândalo para os soldados de Jesus tamanha naturalidade.

A estrutura familiar indígena era extremamente patriarcal. As mulheres cuidavam do serviço doméstico, da criação dos filhos e do artesanato. Os homens se preocupavam com o sustento da prole. A educação dos culumins era rígida, embora gozassem de uma infância mais solta e livre que o das crianças européias. Porém, havia uma necessidade muito grande de incutir medo nelas, a fim de não desobedecerem os pais ou se afastarem sozinhas da aldeia e não somente as crianças, mas também as mulheres. Havia entre os indígenas a lenda do Jurupari, que Gilberto acredita ter sido a origem do nosso Bicho Papão.

O hábito de cantar para os meninos dormirem foi outro traço de nossa identidade nacional provinda dos índios. Afirma Freyre: “a mãe selvagem ninava o pequeno, deitado na rede, com palavras cheias de ternura pelo meninozinho que, sob a influência do catolicismo, ia ser idealizado em anjo”. Mas Freyre também constata uma série de rituais que iniciam o adolescente na fase da reprodução. Os meninos cortavam o cabelo, eram segregados das mulheres nas casas secretas, fechada a entrada para as mulheres. Afirma o autor: “Durante a segregação, o menino aprendia a tratar a mulher de resto; a sentir-se sempre superior a ela; a abrir suas intimidades não com a mãe nem com mulher nenhuma, mas com o pai e com os amigos. As afinidades que se exaltavam eram as fraternas, de homem para homem; as de afeto viril. Do que resultava ambiente propício para a homossexualidade’. Homossexualidade que não era vista da mesma forma pelas duas raças; nas tribos, papéis importantes, de magia, curandeirismo e medicina, estavam reservados aos bissexuais ou efeminados; acreditavam serem eles portadores de bons espíritos.

Cedo portanto, os meninos aprendiam a cantar. E esse hábito foi muito bem aproveitado pelos jesuítas, que procuraram ensinar o catecismo e as orações básicas, como ave-maria e pai-nosso, adaptadas, por vezes na própria língua indígena, em forma de música. Ora, encontraram amplo terreno de influência, assim, sobre os pais, que aprendiam as canções dos filhos e eram evangelizados por eles, com um modelo inverso à catequizarão tradicional.

Até nossos jogos de azar e brincadeiras infantis, envolvendo animais, seriam provenientes dos índios. Num clima de irmandade, que mereceu até o elogio de Padre Cadinho, os meninos jogavam e se divertiam, sem xingar um ao outro nem a seus pais. Como diria Gilberto: a verdade é que, ao contrário do que se observa noutros países da América e da África de recente colonização européia, a cultura primitiva – tanto a ameríndia quanto a africana – não se vem isolando em boles duros, secos, indigestos, inassimiláveis ao sistema social do europeu. Muito menos estratificando-se em arcaísmos e curiosidades etnográficas. Faz-se sentir na presença viva, útil, ativa, e não apenas pitoresca, de elementos, de elementos com atuação criadora, no desenvolvimento nacional. Nem as relações sociais entre as duas raças, a conquistadora e a conquistada, aguçaram-se nunca na antipatia ou no ódio cujo ranger, de tão adstringente, chega-nos aos ouvidos de todos os países de colonização anglo-saxônica e protestante. Suavizou-as aqui o óleo lúbrico da profunda miscigenação, quer a livre e danada, quer a regular e cristã sob a bênção dos padres e pelo incitamento da Igreja e do Estado.

Em relação às mulheres, o livro Casa Grande & Senzala também inova, ao dar destaque a alguns hábitos culturais das mulheres indígenas e negras, construindo um perfil sociológico dessas classes sociais no Brasil colonial. Começando pela mulher indígena, nossa primeira mãe por ser o primeiro cruzamento de nossas raças, nos diz Gilberto: à mulher gentílica (indígena), temos que considerá-la não só a base física da família brasileira, aquela em que se apoiou, robustecendo-se e multiplicando-se, a energia de reduzido número de povoadores europeus, mas valioso elemento de cultura, pelo menos material, na formação brasileira. Por seu intermédio enriquece-se a vida no Brasil de uma série de alimentos ainda hoje em uso, de drogas e remédios caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança, de um conjunto de utensílios de cozinha, de processos de higiene tropical – inclusive o banho freqüente ou pelo menos diário, que tanto deve ter escandalizado o europeu porcalhão do século XVI.

A mulher negra também não foi esquecida, por meio do elogio à mãe preta, negra escolhida para ser ama de leite do senhorzinho: “quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam as vontades: meninos tomavam-lhe bênção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa, quem as visse anchas e enganjentas entre os brancos da casa, havia de supô-las senhoras bem-nascidas; nunca ex-escravas vindas da senzala.

Mas não era qualquer escrava que poderia ser mãe-preta e gozar, portanto, desse privilégio; havia alguns critérios: a negra ou mulata para dar de mamar a nhonhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno, cuidar-lhe da roupa, contar-lhe histórias, às vezes substituir a própria mãe – é natural que fosse escolhida dentre as melhores escravas de senzala. Dentre as mais limpas, as mais bonitas, as mais fortes. Dentre as menos boçais e mais ladinas – como então se dizia para distinguir as negras já cristianizadas e abrasileiradas, das vindas há pouco de África; ou mais renitentes no seu africanismo.

Mesmo a mulher branca não foi esquecida por Freyre, quando nos revela despotismo dos pais e dos maridos sobre a filha ou esposa, mostrando a dificuldade que havia, para elas, de realizarem aventuras amorosas. Dificuldades, mas não impossibilidades. Deste modo, Freyre lança o olhar sobre a mulher branca que, ao mesmo tempo dominadora, era excluída do sistema que valorizava o homem e não ficava, política e socialmente, numa posição diferente do negro e do indígena.
Por tudo que foi exposto, podemos identificar a preocupação de Gilberto Freyre em mostrar para nós, num época de preconceitos acadêmicos e sociais, figuras tão esquecidas da História oficial durante séculos: o negro e o índio. Este último com mais veemência, pois que vivemos a época do resgate de nossas raízes, quando comemoramos o encontro das três raças que formou o que hoje chamamos Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro: l984.
Fonseca, Edson Nery. Casa Grande & Senzala e a crítica de 1933 a 1943. Recife: Cia. Editora de Pernambuco, l985.
Melo Franco, Afonso Arinos. Uma obra rabelaisiana. In: Casa Grande & Senzala e a crítica de l933 a 1943. Organizada por Fonseca, Edson Nery . Recife: Cia. Editora de Pernambuco, l985.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Tudo novo de novo




Rodrigo C. Vargas

A convergência entre a segurança física e a lógica reaparece de quatro em quatro anos como se nunca tivesse acontecido. É o debate esclerosado entre metodologia da posse e a do trabalho. O vulto físico e lógico coexistindo sob o mesmo manto mercadológico onde quando esticado, sobra os discursos antagônicos de um lado e as praticas siamesas do outro. Esse é o destino político. Tanto é assim que todas as revoluções fortemente comprometidas com as mudanças resultaram na continuidade da opressão física sob a forma do Estado, e lógica travestida de sociedade.

Encontrar uma saída? É simples, o mundo político não acompanha as rápidas mudanças do mundo tecnológico. Ficamos divididos entre o que está por acontecer e o ontem. Foi assim com Lula, Obama e será com qualquer outro líder carismático. E o pior, para esse ano ainda amarga o triste fim de Policarpo Quaresma: a loucura lúcida. Nos candidatos que sobraram não há nem mesmo carisma.

Além desse vazio histórico, ainda há um bom motivo para ficarmos alerta. Todos começam pelo fim. O que interessa mesmo é para eles descarte. Programas sérios e bem detalhados que demonstram a capacidade de organizar idéias e de colocá-las em prática, não é isso o que veremos. Quando as campanhas caírem de braços dados com a imagem, será difícil notar. O circo é arranjado para desnortear o inimigo, no caso você que está lendo agora e que irá votar. É um tipo de estratégia (Sun Tzu) que não te deixa pensar.

Como dizia Fernando Pessoa, pensar é agir. Não adianta ingressar em nenhum grupo que gagueja o futuro onde tudo é dividido. O mundo dos palanques precisa ser rápido. Não tão quanto aqueles que roubam e não aparecem, mas como aqueles que criam e não são lembrados.

O melhor a fazer é votar, mas antes disso busque a literatura de cada um e esqueça a propaganda eleitoral, até mesmo por que ela é gratuita.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Walter Benjamin e a tarefa da crítica




Márcio Seligmann-Silva
m.seligmann@uol.com.br
Doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e professor de Teoria Literária na UNICAMP

Para a posteridade, a enorme produção de Benjamin significou o estabelecimento de um marco no pensamento e na crítica

Olhando retrospectivamente para o século 20, podemos dizer que Walter Benjamin (1892-1940) de fato realizou um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como ele formulou em uma carta a seu grande amigo Gershom Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira o objetivo de "ser considerado como o primeiro crítico da literatura alemã". Este reconhecimento na época era na verdade muito tímido, restrito a um pequeno círculo de leitores especializados. Hoje este círculo cresceu a ponto de podermos com razão falar de um "reconhecimento" de sua posição privilegiada como crítico.

Benjamin estava ciente, como ele escreveu na mesma carta, que para tornar-se este "primeiro crítico" era necessário "recriar a crítica como gênero". Este gênero encontrava-se então na Alemanha desprezado, não era considerado como sério. No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise naquela época, era a "ditadura da resenha como forma de pesquisa crítica". Ele mencionou então, como um contra-modelo do passado, as "Características" dos irmãos Schlegel. Como um dos caminhos para a saída da crise da crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre a abordagem filológica e uma autêntica reflexão crítica. Este termo indicava para ele uma reflexão tanto no sentido de uma teoria das formas, como de uma teoria da história.

Sem falsa-modéstia ele escreveu então que se a situação da crítica alemã estava se transformando, isto ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, de fato, Benjamin então, com 38 anos, já fizera bastante para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, seu "O conceito de crítica de arte no romantismo alemão" (1919) e o "Origem do drama barroco alemão" (de 1925, publicado em 1928), como compusera uma profunda análise das Afinidades Eletivas de Goethe (1922), além de mais de cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo sobre literatura alemã e francesa. Com o fracasso de seu plano de entrar para a Universidade, ele se entregara de corpo e alma a este projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente derivada desta mesma situação precária, significou o estabelecimento de um marco no pensamento e na crítica.

Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu em primeiro lugar o conceito de crítica no seu sentido kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. Neste ponto seu pensamento já se aproxima do dos românticos Schlegel e Novalis que cobravam da filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de experiência. Com estes autores ele via na crítica um medium-de-reflexão . Trocando em miúdos, assim como os românticos viam na "romantização" do mundo um projeto de superação das barreiras entre o universo criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto estético como político. O ato da crítica era visto por ele como um meio de crítica de todo o sistema cultural e de sua base econômica. A partir de seu encontro com o marxismo de Lukács, isto tornou-se cada vez mais patente em seus ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se identificou tão rapidamente com o marxismo de Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin,vinham de uma profunda relação com o romantismo alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas de geração, justamente porque ao invés de "superar" seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda sua vida. Se ele tenta nos anos de 1930 demarcar uma posição contra este seu romantismo, é justamente porque ele não conseguiu superá-lo totalmente.

A crítica de Benjamin era, portanto, antes de mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava em cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía uma auto-reflexão (ele sempre refletia sobre sua própria atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na sociedade). Em segundo lugar, destaca-se uma leitura detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada (que era sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico, mas sim de seu próprio "Ideal a priori", nas palavras de Novalis). Em terceiro lugar, encontramos uma reflexão sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin, dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu muitas vezes (como no livro sobre o barroco e no seu ensaio sobre o narrador, de 1936) o tema da teoria dos gêneros literários. Em quarto lugar, nota-se sempre uma reflexão crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele, sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado "tal como ele aconteceu". Por fim, e articulando todos os níveis anteriores, devemos destacar a teoria da história de Benjamin com a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto liberais como marxistas, que acreditavam em um avanço constante e positivo do devir da história. Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história como acúmulo de catástrofes.

Contra o positivismo daqueles que pregavam (inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin demonstrou que não existe um campo "fora" do político. A arte e sua crítica são medium-de-reflexão não apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a sociedade. Neste sentido, ele extrapolou programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da arte. Sua atividade crítica não pode ser inteiramente compreendida, se não levarmos em conta seus seminais textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito (lembremos sobretudo de seu "Crítica da violência, crítica do poder", de 1921, que influenciou Carl Schmitt), assim como a sua crítica do que ele denominou de concepção "burguesa", ou seja, instrumental, da linguagem (recordemos seu "A tarefa do tradutor", também de 1921, e do artigo de juventude "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens", de 1916). Além disso, Benjamin refletiu também em vários importantes ensaios críticos sobre questões como a (atualíssima) da coleção e do colecionismo (vejam seus trabalhos sobre Eduard Fuchs, de 1937, assim como seus textos sobre coleção de brinquedos e de livros). Seus escritos voltados para a recordação de sua infância (Crônica berlinense e Infância em Berlim) são profundamente inovadores, na medida em que desconstroem criticamente os modelos da autobiografia e introduzem uma modalidade da auto-escritura mais fragmentada e voltada para uma "topografia da memória".

O fundamental dentro do universo das críticas de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto para as obras que eram publicadas na sua época (como as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, Brecht etc.), ou para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma crítica que era, ao mesmo tempo, teoria da literatura. É este talvez o legado mais importante de sua produção crítica: ele mostrou a infecundidade da crítica apenas filológica, assim como a limitação da crítica meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica. Crítica para ele só existia enquanto capacidade de se articular (delicadamente, ou às vezes, como todo o peso histórico exigido por seu objeto de análise), a imanência da obra com a reflexão histórico-crítica. As mostras mais eloqüentes desta concepção são a introdução "crítico-epistemológica" do seu livro sobre o drama barroco alemão, e as reflexões que acompanham as notas de seu trabalho que ficou inconcluso sobre as passagens de Paris.

Benjamin escreveu no seu último texto, dedicado à crítica da noção de progresso, que "nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie". É interessante ler a tradução do próprio Benjamin dessa famosa passagem das suas teses "Sobre o conceito da História": Tout cela [l'héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en même temps, de la barbarie. Com Benjamin aprendemos que cultura é a partir de meados do século 20 toda ela como que transformada em um documento e, mais ainda, ela passa a ser lida como testemunho da barbárie. Esta noção é essencial, porque com este autor vemos não apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, como também a afirmação radical de um modo de interpretar esses documentos. Sua teoria da história e da cultura descortina o passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda inscrição deve-se associar um modo de leitura e de interpretação, de outro modo teríamos um arquivo literalmente morto. O elemento político domina todos os momentos do trabalho no arquivo, da seleção, passando pela conservação e pelo acesso, chegando à leitura dos documentos. A história para Benjamin, como é conhecido, é aproximada do modelo do colecionador e do Lumpensamler, o catador de papéis. O historiador deve acumular os documentos que são como que apresentados diante do tribunal da história. Em Benjamin, a cultura como arquivo e memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao qual Benjamin opõe sua visada da cultura como documento e testemunho da barbárie. Seu projeto de historiografia calcada no colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus objetos do falso contexto para inseri-los dentro de uma nova ordem comandada pelos interesses de cada presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do catador (que se volta para o esquecido e considerado inútil) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que guarda uma assombrosa força de germinação.

Derrida e a defesa da honra da razão

Juvenal Savian Filho
juvenal.savian@unifesp.br
Doutor em Filosofia pela USP, diplomado em Teologia pela UPS-Roma, especialista em Filosofia Medieval, professor da Graduação e Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo

Ao romper as fronteiras entre a literatura e a filosofia, a problemática da escrita tornou-se o núcleo do pensamento de Derrida

Curiosa e instigante, no imaginário filosófico contemporâneo, é o "personagem" Jacques Derrida. Ele aparece como "o desconstrutor", e essa imagem tem sua razão de ser, pois, iniciando sua vida filosófica pela via da fenomenologia de Husserl, Derrida não deixou nunca de estudar a tradição clássica - de Platão a Heidegger -, mantendo, porém, uma relação muito complexa com ela, afinal, o que interessava ao filósofo nascido na Argélia era mostrar que essa tradição se alimenta justamente daquilo que ela não mostra. Tal abordagem crítica diante de toda e qualquer prática ou teoria é o que Derrida chamava de "desconstrução".

Todavia, a desconstrução derridiana não significa destruição, mas um modo de desfazer uma estrutura para fazer aparecer seu esqueleto. Em outras palavras, ela equivaleria ao "refazer" algo, no sentido em que se fala, comumente, de "refazer" um caminho: alguém que refaz o caminho de outro não abre propriamente a senda já batida, não faz um caminho novo, mas refaz a mesma via ao andar por onde o outro andou. A analogia serve para mostrar o que Derrida considerava imprescindível: desmontar as experiências humanas para compreendê-las, assim como se desmonta uma edificação ou um artefato para expor suas estruturas, sua nervura e seu esqueleto.

Se fosse apenas isso, a desconstrução reduzir-se-ia a um mero procedimento de conhecimento por análise, ou mesmo por "refacção", e, nisso, não teria muito de original, visto que mesmo alguns neotomistas, muito antes da publicação de A Escritura e a Diferença e de Da Gramatologia, já falavam da necessidade de "distinguir para unir", retomando métodos assaz clássicos na história do pensamento ocidental (haja vista a infinidade de distinctiones registradas em obras medievais). Ao contrário, a descontrução visa, sobretudo, expor - como dizia Derrida - a precariedade ruinosa de uma estrutura formal que não explica mais nada, não sendo nem um centro, nem um princípio, nem uma força, nem mesmo a lei dos eventos, no sentido mais geral do termo.

Assim, a desconstrução, como tal, não se reduz a um método (como um método que reduzisse o composto ao simples), nem a uma análise, e, nesse sentido, ela transcende mesmo a decisão crítica ou a ideia crítica. A desconstrução, portanto, também não é negativa, apesar da imagem negativa que dela se fez na cena filosófica, a despeito das palavras de Derrida, para quem a desconstrução deve vir sempre acompanhada de uma exigência afirmativa e mesmo de amor.

Em todo caso, a desconstrução, por razões mais ou menos óbvias, fez grande sucesso, e, historicamente, apareceu num contexto dominado pelo estruturalismo. Tal contexto talvez forneça uma das razões de seu sucesso, porque ela se apresenta como um gesto estruturalista e antiestruturalista ao mesmo tempo, na medida em que sua superação do estruturalismo se dá pelo fato de ela não admitir como determinada e definitiva nenhuma compreensão, nem nenhuma estrutura. A sorte da filosofia, assim, não estaria lançada.

Talvez o núcleo do pensamento de Derrida, ou um dos elementos do núcleo, seja a problemática da escrita, uma vez que ele rompe as fronteiras (sempre mal delimitadas, diga-se de passagem) entre a literatura e a filosofia. Duas fontes por ele mesmo reconhecidas são Mallarmé e Maurice Blanchot, em sua busca do que ele designava como a direção em que um evento literário atravessa e ultrapassa a filosofia. No dizer de Mallarmé, certas "operações", certos simulacros literários ou poéticos, às vezes, dão a pensar aquilo que a teoria filosófica da escrita desconhece, ou mesmo aquilo que ela proíbe com violência. Derrida extrai daí que, para analisar a interpretação tradicional da escrita, sua conexão essencial com a essência da filosofia, da cultura e mesmo do pensamento político ocidental, é necessário não se fechar nem nos pretensos limites da filosofia nem nos da literatura: "para além dessa partilha pode se anunciar ou se apresentar uma singularidade da marca que não seja ainda nem linguagem, nem palavra, nem escrita, nem signo, nem mesmo o 'próprio do homem'. Nem presença, nem ausência, para além da lógica binária, oposicional ou dialética. Desde então, nunca mais se oponha a escrita à palavra; nenhum protesto contra a voz; analisei somente a autoridade que lhe emprestamos, a história de uma hierarquia".

Ora, essa problematização das fronteiras entre filosofia e literatura, encorpada pela prática da desconstrução, custou a Derrida, em certos contextos, a fama de "demolidor" ou de pseudofilósofo que atenta contra a capacidade cognitiva da razão. Assim, apenas para dar um exemplo, vale lembrar que o meio em que Derrida começara sua atividade intelectual era bem determinado, ou, se se preferir, bem "intimidado" (no dizer dele mesmo) pelo marxismo e pela psicanálise, que reivindicavam o caráter de "ciência" com uma violência proporcional à dificuldade que ambos tinham para provar sua cientificidade. E isso era considerado como uma espécie de antiobscurantismo, o "iluminismo" do século 20. Derrida, porém, sem atacar o espírito iluminista, procurou, discretamente, não ceder à intimidação, e decifrou certa metafísica subjacente ao marxismo e à psicanálise, sob uma forma que não era somente lógica ou discursiva, mas terrivelmente institucional e política.

Nesse mesmo contexto, falava-se muito do fim da filosofia. Para alguns, isso implicava que era tempo de passar à ação; para outros, "filosofia" não era senão sinônimo de um mito, o mito de uma etnia ocidental. Derrida, então, teve a coragem de anunciar um "enclausuramento da metafísica" (clôture de la métaphysique), o que, sem sombra de dúvida, continua supondo a afirmação de que não se pode operar senão no interior do campo da razão. Não haveria exterioridade à razão, e o enclausuramento da metafísica não significaria o seu fim, mas, como dizia o filósofo (num certo tom hegeliano), significaria a potência retida de uma combinação ao mesmo tempo esgotante e infatigável. Esse enclausuramento não teria a forma de um círculo ou de um limite além do qual se poderia saltar para fora, rumo a uma prática não filosófica, por exemplo. Ao contrário, para Derrida, o limite da filosofia é singular, e sua apreensão não se dá nunca sem certa reafirmação incondicional. Ele costumava dizer que, mesmo que não se possa nomear diretamente a filosofia como "ética" ou "política", ela termina por tratar das condições de uma ética ou de uma política, e de uma responsabilidade de pensamento que não se confunde estritamente nem com a filosofia, nem com a ciência, nem com a literatura como tais.

Desse ponto de vista, ainda que seja possível discordar, sob muitos aspectos, do pensamento de Derrida, não se pode negar que, desde sua primeira fase fenomenológica até o fim de sua vida, ele foi um defensor da honra da razão. Uma prova histórica desse dado vem certamente da conferência por ele proferida em Nice, no ano de 2002, na abertura do 29º Congresso da Associação das Sociedades de Filosofia de Língua Francesa, reunido em torno do tema "Futuro da Razão - Devir das Racionalidades".

Nessa conferência, Derrida serve-se de uma metáfora para retratar o fracasso iminente da razão: um capitão, quando prevê um naufrágio ou um desastre, decide encalhar o navio para salvá-lo. Assim estaria a razão: encalhada. Prevendo seu próprio fim, ela se encalhou, afinal, nossos contemporâneos, perdidos no mundo globalizado e inebriados pela tecnociência (sobretudo aqueles beneficiados pelo apartheid global), não distinguem mais "razão" de "racionalidade" e vão tomando, conforme os interesses técnico-econômicos, as diferentes formas de racionalidade, engendradas pelo dinamismo próprio da razão, como se fossem a própria razão e a esgotassem. E o que é pior: das várias racionalidades contemporâneas, nosso mundo escolheu a mais perniciosa para identificar com a razão, qual seja, a racionalidade programada, tecnocientífica, como se a verdade da experiência humana fosse dada pelo número de informações "objetivas", matematizáveis, obtidas pelos métodos científicos.

Para Derrida, o melhor caminho para salvar a honra da razão - e, assim, desencalhá-la -, é lembrar que o mundo ocidental nasceu do espírito da razão, valorizando o conhecimento total. No dizer de Derrida, "precisamos, sim, conhecer; precisamos conhecer mais e o melhor possível", o que, entretanto, não equivale a um elogio ingênuo da racionalidade programada. A prova disso é o seu argumento contra a clonagem humana, pois, no seu dizer, em nome da singularidade humana, do amor e do incalculável, a clonagem deve ser recusada. Na verdade, para ele, todo tipo de clonagem deveria ser esquecido, pois o incalculável e o imprevisível são condições para o exercício livre da razão. Numa palavra, haveria duas condições para o exercício da razão: a liberdade e a amizade. E justamente essas duas condições seriam atacadas pela racionalidade tecnocientífica.

A saída? Continuar a desconstrução e ver que uma ética fundamentada apenas na ideia iluminista de "dever" não é suficiente para atender às necessidades do humano. Com base nisso, pode-se pensar numa espécie de hiperética, aberta às diferentes formas de captar a verdade da experiência humana, como são a fé e a crença, a estética etc. E isso não significa irracionalismo, pois, na base dessa atitude, há uma crítica racional e uma tentativa da própria razão no sentido de desencalhar-se.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O poeta da dúvida


Isabela Boscov
iboscov@abril.com.br
Jornalista, editora de cinema

Ingmar Bergman, o diretor que fez o cinema se impor como uma forma de pensamento e de poesia

Ingmar Bergman já tinha uma dúzia de filmes lançados na Suécia quando, em 1957, se projetou de forma meteórica no panorama mundial. Nesse único ano, ele fez duas obras-primas do cinema. Em O Sétimo Selo, um cavaleiro interpretado por Max von Sydow volta das Cruzadas e encontra sua terra tomada pelo desespero e pela Peste Negra. Abordado pela Morte, ele tenta postergar o momento inevitável por meio de um jogo de xadrez com a figura encapuzada – e ganhar tempo para encontrar, sem grande sucesso, provas de que os homens merecem viver. O Sétimo Selo mesmerizou platéias em todo o mundo e anunciou um novo cinema, ambientado nas paisagens mais desoladas da alma. Poucos meses depois, Bergman lançou Morangos Silvestres, no qual um velho professor envereda pelas trilhas de sua memória – que, novamente, o conduzem sempre para mais perto da morte. O diretor tinha então apenas 39 anos. Mas é seguro dizer que, até seu duplo feito, a angústia do fim nunca havia sido tratada pelo cinema de forma tão decisiva e incisiva. O cineasta, porém, ainda teria muito a dizer a esse respeito – uma meia centena de filmes, mais inúmeras produções para a televisão e para o teatro. Nas duas últimas décadas, afastado da câmera, Bergman vira sua influência retroceder e, aos poucos, se dissipar. Na manhã da segunda-feira passada, contudo, ela subitamente recuperou sua nitidez. Ingmar Bergman, que completara 89 anos em 14 de julho, morreu durante o sono, em seu refúgio na ilha báltica de Faro – e levou consigo a hipótese de um cinema que escape às convenções de gênero e possa se impor como uma forma de pensamento e de poesia.

A ascensão de Bergman deu-se no fim dos anos 50, quando o cinema de autor, representado por nomes do porte de Federico Fellini e Michelangelo Antonioni, se revelara a grande força criativa da época. Sua obra, contudo, tinha um forte cunho religioso, além de uma severidade que contrastava vivamente com boa parte da produção do período. Bergman tinha uma ligação profunda com a tradição cinematográfica escandinava, que fez dos encontros entre luz e escuro, e entre terra e mar, tão dominantes em sua paisagem, também o seu principal espaço psicológico. Auxiliado por seu diretor de fotografia, Sven Nykvist (morto no ano passado), Bergman esquadrinhou esse espaço como ninguém antes ou depois dele. Na sua primeira fase, da qual a figura alongada e os traços austeros de Max von Sydow foram o maior emblema, Bergman tratou principalmente do vazio que se interpõe entre o homem e Deus. A esse momento é que pertencem O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. Sua segunda fase foi ainda mais brilhante. Depois de uma cirurgia, o diretor descobriu que havia perdido o medo da morte. Seu vazio, então, se transferiu para outro domínio: o das relações humanas. Von Sydow foi substituído por um ator de aparência mais terrena – Erland Josephson –, e a distância de que Bergman passou a tratar é aquela que homens e mulheres, pais e filhos ou irmãs e irmãos tentam vencer. O que só conseguem fazer, em geral, quando desejam se ferir.

"Eu sempre soube atrelar meus demônios à minha carroça. Eles continuam me atormentando, mas eu os obrigo a me ser úteis", disse Bergman. Essa, de certa forma, é a razão pela qual ele deixou muitos admiradores, mas nenhum pupilo de fato, a despeito dos esforços de John Cassavetes e Woody Allen: seus demônios simplesmente eram mais potentes que os da maioria dos mortais. Na visão de Bergman, até buscar o amor é uma forma de redenção que quase sempre termina em mais danação. Em Gritos e Sussurros, três irmãs, uma delas à morte, tentam obter alguma conciliação, mas só fazem se dilacerar ainda mais. Em Sonata de Outono, o encontro entre uma mãe e uma filha é uma batalha de ressentimentos em que só vence quem perder mais. Em Cenas de um Casamento, de 1973, talvez sua obra máxima, o espectador acompanha a lenta e crudelíssima derrocada do casamento de Johan e Marianne, interpretados por Josephson e Liv Ullmann. Em seu último filme, Saraband, feito para a televisão há quatro anos, foi a Johan e Marianne que o diretor decidiu voltar. Mas o amor dos dois foi reduzido a uma presença tênue. O que está vivo, no filme, é o rancor, em especial aquele que palpita entre Johan e seu filho sessentão. Liv Ullmann, uma das várias mulheres com quem o diretor foi casado e sua musa mais constante, teorizou que Bergman teria feito Saraband para exorcizar um pouco da dor de haver perdido um de seus nove filhos sem ter feito as pazes com ele. É típico do diretor, porém, que essa expiação tenha chegado à tela em forma de franqueza brutal, em que expor o ódio é um tributo mais genuíno do que ceder aos lamentos da memória.

"Toda a minha vida criativa provém de minha infância", disse Bergman. "A razão por que apreciam o que faço é que eu sou uma criança e assim me dirijo à platéia." Filho de Erik, um pastor luterano, e de Karin, uma mulher que oscilava de forma atordoante entre o calor e a frieza, Ingmar aprendeu desde muito cedo a vasculhar a fisionomia dos dois em busca de sinais do que estaria por vir. Por exemplo, a rejeição por parte da mãe ou a ira do pai, que acarretava castigos terríveis – como trancar o filho num armário escuro ou espancá-lo e então obrigá-lo a beijar sua mão –, relembrados em detalhes pungentes em seu último trabalho cinematográfico, Fanny e Alexander, de 1982, no qual rememorou sua infância traumática e, com ela, obteve seu maior sucesso comercial. Essa habilidade de Bergman em ler rostos rendeu-lhe a reputação de que seu olhar era uma lente que tudo via, e tornou-o o mestre maior do close-up. Não o close-up glamouroso de Hollywood, mas um close-up que despia seus atores (e mais ainda suas atrizes) de todas as máscaras e defesas. "Durante boa parte de minha vida, menti e menti. Quando estava rodando Noites de Circo, em 1953, eu me dei conta de que a mentira era como uma sujeira sobre meus filmes, e que a partir dali eu deveria dizer a verdade todos os minutos da minha vida", contou certa vez. Até onde se sabe, Bergman se manteve fiel à decisão. Quando não mais se sentiu capaz de se expor, retirou-se para a Ilha de Faro e se isolou. Sua volta foi sempre uma hipótese. Desde segunda-feira, porém, o território que ele desbravou com coragem ímpar – o território da dúvida, no qual os seres humanos são obrigados a existir – está oficialmente sem um explorador à altura de mapeá-lo.

sábado, 10 de julho de 2010

Em busca do encanto irreal




Guilherme Ignácio da Silva
guiproust@yahoo.com
Professor de francês da Unifesp e doutor em literatura francesa pela USP

A voz que emana de Proust é uma voz estranha, que adentra pela vida e não vai explicar mais nada

"Ontem, fui me deitar às dez porque estava com muita dor de cabeça" - imagine alguém que, talvez ao telefone, ou na mesa do almoço, te informasse sobre esse detalhe de sua vida recente. Pensando em um contexto sem muitas tensões, nem muito interesse pelo aprofundamento dos sentimentos, você talvez acolhesse essa notícia com aquele mínimo de simpatia por alguém que, é provável, deve ter tido sua quota de sofrimento necessária para levá-lo a deitar-se tão cedo.

Com um É mesmo!?... você provavelmente procuraria manifestar um pouco daquele interesse sonolento que as vicissitudes da vida alheia costumam despertar em nós. E, como é de hábito as pessoas estarem sempre um pouco insatisfeitas com a vida sem, entretanto, deixar de se apresentar despertas no dia seguinte, vocês terminariam o almoço ou o telefonema já sem se preocupar com aquele triste detalhe da noite anterior.

Antes de vermos o caso da primeira linha de Proust, imaginemos a situação oposta a essa, que seria talvez o envolvimento total das duas pessoas na discussão dessa questão para elas tão grave: ter tido uma terrível dor de cabeça e ter decidido ir deitar-se cedo. Isso podia ser, por exemplo, sintoma de uma recaída em um problema gravíssimo do passado - a perda ainda não superada de uma pessoa, um assalto violentíssimo, a iminência de uma demissão, enfim, fatos que desencadearam outrora aquela dor de cabeça acompanhada de insônia. Mesmo assim, as pessoas envolvidas se preocupariam em encontrar um meio de voltar à estaca zero de tensão (e, no caso, poder dormir normalmente, não tão cedo e sem recorrer aos analgésicos).

Imagine, então, uma pessoa absolutamente desconhecida, ou melhor, apenas uma voz, que, numa noite dessas, adentrasse seu quarto e sussurrasse perto de seu ouvido: "Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo". Haveria, é claro, a estranheza absoluta de passar a ouvir vozes. Mas, antes que essa voz viesse cochichar enigmas em seu ouvido, foi você mesmo quem lhe abriu a porta da casa e a acolheu em seu quarto.

Aí, nesse caso, resta apenas a estranheza da mensagem que ela vem transmitir: o que significa durante muito tempo? Um mês, um ano, uma década? E cedo? Seriam dez horas, como no caso do amigo do almoço? Mais cedo, talvez? Por quê? Por causa de uma dor de cabeça? Um estado de depressão? Só por causa do sono mesmo?

É essa a voz que emana de Em busca do tempo perdido. Essa voz estranha que adentra nossas vidas não vai nos explicar mais nada. Em vez disso, sem que você pergunte, ela passará a dar detalhes sobre a velocidade do fechamento de seus olhos antes de adormecer e o descompasso entre o que continuava pensando e o que vivera naquele brevíssimo instante...

"Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: Adormeço."

O que está dito acima é algo tão singelo e corriqueiro que provavelmente ninguém o diria: alguém adormece tão depressa que não se dá conta de que já adormeceu. Prova desse descompasso entre o fato (adormecer) e a percepção dele está no pensamento que o assalta depois:

"E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; (...)."

Alguém adormece, melhor dizendo, uma parte da mente de alguém adormece e depois essa parte é despertada pela outra que, ignorando o fato ocorrido, chama a atenção para a necessidade de que ele enfim ocorra. Mas ele já aconteceu...

O leitor de Em busca do tempo perdido pode passar por detalhes dessa introdução, compreendendo-os sem se colocar conscientemente a pergunta de seu significado. Ou, pelo menos, sem formular em palavras o que constitui a beleza de certos trechos: encantado pela música fascinante que emana da prosa proustiana, ele avança para o próximo parágrafo.

Quem se perguntaria, por exemplo, quais são os tempos verbais dos parágrafos iniciais do livro? Estão todos no passado? Quais verbos estão no presente? Por que e quando esses verbos aparecem?

Não é à toa que o narrador vai atribuir um valor comunicativo muito superior à música, quando comparada às palavras: a música dá a entender de imediato o que o cansativo raciocínio frasal leva muito tempo para formular.

"(...) eu me perguntava se a música não era por acaso o exemplo único do que poderia ter sido - se não tivesse havido a invenção da linguagem, a formação das palavras, a análise das idéias - a comunicação entre as almas. Ela é como uma possibilidade que não teve prosseguimento, a humanidade tendo tomado outras vias, a da linguagem falada e escrita." (A Prisioneira, pp. 246-247).

A escrita de Proust lida o tempo todo com imagens e incorpora a esse esforço de comunicar com palavras algo que talvez as próprias palavras não sejam capazes de transmitir, uma maneira de se estabelecer a comunicação entre as almas de que a invenção da linguagem se desviou.

"Na música há visões que é impossível exprimir e quase proibido contemplar, uma vez que, quando, no momento de adormecer, recebemos a carícia de seu encanto irreal, nesse mesmo momento, em que a razão já nos abandonou, os olhos se fecham e, antes de poder conhecer não apenas o inefável, mas também o invisível, adormecemos." (Idem).

Há grande semelhança entre esse trecho sobre a natureza da música e o que Proust realiza em seu livro: nele também contemplamos visões que é impossível exprimir e quase proibido contemplar. Há nele uma mensagem reconhecível e radicalmente estranha: mensagem da verdadeira Literatura. É o que se pode perceber caso prossigamos "ouvindo" as primeiras linhas do livro.

Ouvimos de início detalhes do descompasso entre a velocidade do fechamento dos olhos rumo ao sono e a lentidão da percepção consciente de passar a dormir. Dormindo, ele não cessara de pensar no que, momentos antes, lera. Mas o conteúdo do livro integrara-se a seus sonhos e tornara-se ele próprio!...

"(...) durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-(lhe) que era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V."

Essa crença na não separação entre o tema das leituras e si mesmo "sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava (sua) razão, mas pairava como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa."

Um pouco adiante, fala-nos de uma experiência erótica um tanto particular: o prazer de estar com uma mulher, formada durante o sonho pelo calor que emana da própria coxa dele: "meu corpo, que sentia no dela meu próprio calor, procurava juntar-se-lhe, e eu despertava." Mesmo sabendo que ela é uma criatura de sua própria mente, "o resto dos humanos se (lhe) afigurava como coisa muito remota em comparação com aquela mulher que eu havia deixado momentos antes."

Mas, em torno dele, há apenas "o caleidoscópio da escuridão", o silêncio da noite pontuado pelos "estalidos orgânicos das madeiras", o quarto, do qual não é mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo volta a se integrar. Dormindo novamente, ele retrocede "a uma época para sempre transcorrida de (sua) primitiva existência" e acorda tentando fugir das brincadeiras agressivas do tio-avô, que tenta puxá-lo pelos cachos.

Mais adiante, nos fala de experiências mais radicais, quando se abolem todas as lembranças pessoais e as promessas de prazer erótico:

"Quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde (se) achava no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo de um animal."

Proust talvez tenha sido um dos maiores leitores de As flores do mal, justamente por nos ensinar a admirar a beleza e a exatidão de palavras inusitadas em alguns poemas de Baudelaire. É o caso do poema "As velhinhas", que integra o ciclo de "Quadros parisienses" - ali, o poeta da metrópole goza de prazeres clandestinos ao contemplar o trânsito das velhinhas, daquelas que chama de "destroços de humanidade maduros para a eternidade":

Uma, por sua pátria na desgraça exercitada,
Outra, que o marido sobrecarregou de dores,
Outra, pelo filho Madona traspassada,
Todas poderiam fazer um rio de sua lágrimas!


Proust comenta:

"Exercitada é admirável, sobrecarregou é admirável, perfurada é admirável. Cada palavra pousa sobre a idéia uma dessas belas formas sombrias, brilhantes, nutritivas."

Na época das leituras instrumentalizadas, das teses de doutorado com fins comprobatórios, da aplicação de fórmulas de análise, que frescor poder se extasiar, como o faz Proust, diante de um simples particípio passado (exercitada, traspassada) ou de um mero verbo no pretérito perfeito (sobrecarregou)!

O escritor André Gide, em um texto de homenagem ao livro que, anos antes, recusara editar, pedia permissão para uma confissão: "Posso confessar uma coisa? Toda vez que me acontece de voltar a mergulhar nesse lago de delícias, permaneço em seguida vários dias sem ousar retomar a pluma, não podendo mais admitir - como acontece durante o período em que uma obra-prima exerce sobre nós seu império - que haja outras maneiras de se escrever bem, não vendo mais no que você chama de pureza de meu estilo do que mera pobreza."

E, a certo momento desse texto elogioso à obra de Proust, ele também exclamava:

"Você é extraordinário, meu caro Proust!"2

Um dos prazeres de se deixar conduzir pela voz que nos guia no mundo labiríntico de Em busca do tempo perdido é poder exclamar a cada parágrafo, a cada linha, a cada palavra: Mas que livro! Como Proust é admirável!

A vida que freme no fundo de um animal é extraordinário; estalidos orgânicos das madeiras é magnífico; a indistinção entre o leitor e o tema do livro que lê é perfeito! A cena erótica em que o corpo que sentia no dela (seu) próprio calor é inacreditável de tão bom!

NOTAS

1 PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard, 1954.
2 GIDE, André. "Lettres à Angéle: A propos de Marcel Proust". In: Incidentes. Paris: Gallimard, 1924.

Ensaio - A terceira margem da arte

Jorge Coli
jorgecoli@uol.com.br
Crítico de arte e professor titular em História da Arte e da Cultura, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

Proust tem como essência a semelhança e a aparência. Por elas vê as artes, procurando captar o que há de comum entre as formas. Mas que lugar é esse que a preposição "entre" indica? Não há apenas dois lugares, o de uma imagem e de outra imagem, o de uma aparência e de outra aparência. Há um terceiro lugar, uma terceira margem do rio, onde o semelhante se funde no semelhante, onde a analogia se metamorfoseia em fusão.

Proust frequentou o Louvre na juventude e fez viagens a Veneza, Pádua, Holanda e Bélgica. Essas atividades são testemunhos de um contato intenso com as obras reais que descobria, mas não significam uma presença reiterada diante das mesmas obras. Sua familiaridade com a arte vinha de um outro modo: por meio de reproduções, sobretudo fotográficas.

Charles Swann, o personagem principal da saga, prepara-se para contemplar uma escultura e uma igreja medieval na cidade imaginária de Balbec, que aparece no terceiro volume de Em Busca do Tempo perdido, O Caminho de Guermantes. Preparou-se antes, por meio de reproduções dessas obras. Quando está prestes a se deparar com o original, fica em estado de efervescência, mas logo desencanta. Diz ele: "O que vi, até agora, eram fotografias dessa igreja e, desses Apóstolos, dessa Virgem do pórtico, tão célebres, apenas as moldagens. Agora, é a própria igreja, é a própria estátua, elas, as únicas: é muito mais. Era menos, também, talvez". A estátua real é menos verdadeira que a estátua construída pelo espírito. Inserida na banalidade do cotidiano, é a escultura autêntica, a obra de arte única, que perde a sua aura.

Isto pressupõe uma idéia complexa: a obra de arte não se reduz à sua existência material. Essa materialidade tornou-se uma espécie de lastro que pode ser substituído, muitas vezes, pelas representações materiais — a fotografia, a moldagem — e pelas representações do espírito, pela memória. O espectador termina por intuir as intuições, que brotam na matéria, mas existem fora dela.

A fotografia incorpora a semelhança da obra; não é a obra, mas faz parte dela. Proust nos leva para um caminho reflexivo diverso do que o filósofo alemão Walter Benjamin toma em seu conhecido texto A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. O conflito entre valor de culto e valor de exposição, que interessa Benjamin, é dissolvido por Proust numa síntese que, primeiro, não se importa com a ideia de exposição enquanto "exposição às massas" e que, em seguida, trata o objeto artístico em sua substância de cultura, que encarna uma espécie de "essência real".

No caso de Proust, não existe aura perdida pela reprodução técnica da fotografia, nem culto do original, nem cuidado com o que seria uma divulgação em ampla escala da imagem. Não existe condenação alguma das reproduções mecânicas, mas a constituição de uma verdade surgida da obra, capaz de fecundar as experiências (incluindo aqui a experiência fotográfica), que terminam por conduzir à verdade da obra.

Em tal campo de fusões, uma prática frequente que se encontra na obra de Proust é a relação de semelhança entre os seres existentes e as obras de arte. De todas, a mais conhecida é a da semelhança que Swann estabelece entre Odette de Crécy e uma figura de Botticelli, Séfora, no afresco da Capela Sistina. Proust, ele próprio, conhecia essa imagem não por tê-la visto de fato, pois nunca estivera em Roma, mas por uma reprodução de uma cópia.

Swann gostava de descobrir semelhanças entre pessoas e personagens pintados pelos grandes artistas. Notável é a passagem em que ele encontra, na Paris do início do século 20, figuras representadas pelo italiano Benozzo Gozzoli (1421-1497), em sua Adoração dos Magos. O narrador supõe três hipóteses para essa prática. A primeira é que Swann teria remorsos por limitar sua vida a mundanidades e sentia-se perdoado pelos grandes artistas por eles terem incorporado em suas obras esses rostos que traziam com eles um sabor moderno e fútil. Além disso, o protagonista, tomado pela frivolidade das altas rodas, poderia gostar de encontrar numa obra antiga alusões antecipadas a indivíduos contemporâneos, como se fossem antecedentes aristocráticos. Por fim, Swann percebia, nas características individuais, uma significação mais geral: elas criavam um descompasso entre a representação e o representado. Essas figuras, segundo o livro, surgiam "desenraizadas, libertadas na semelhança de um retrato mais antigo com um original que não o representava".

Odette e a figura de Botticelli se sobrepõem. Proust escreve: "Essa semelhança conferia a ela uma beleza, tornava-a mais preciosa. Swann se acusou de ter desconhecido o valor de um ser que teria parecido adorável ao grande Sandro, e felicitou-se pelo fato de que o prazer que ele tinha ao ver Odette encontrasse uma justificação na sua própria cultura estética. (...) A palavra de 'obra florentina' trouxe um serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, fazer adentrar a imagem de Odette num mundo de sonhos onde, até então, ela não tinha acesso, e onde ela se impregnou de nobreza".

Swann põe, sobre sua mesa de trabalho, uma reprodução da filha de Jetro como se fosse uma fotografia de Odette. No romance, ela é uma espécie de prostituta de luxo que, se descobre à leitura da obra, esteve na cama de um grande número de personagens. Essa semelhança previne também, como diz o narrador, os desgastes possíveis dos afetos. Odette incorporara-se à eternidade de uma obra de arte.

Essa eternidade não some, mesmo quando a obra foi destruída. Há um caso em que a história se torna proustiana. O autor descreveu com veneração os afrescos de Andrea Mantegna (1431-1506) em Pádua. Eles ruiram em bombardeio da Segunda Guerra Mundial. Não desapareceram: restam-nos cópias, fotos, obras por eles influenciadas, descrições, como as do próprio Proust. No universo proustiano há um contaminar-se contínuo dentro do qual assemelhar é conhecer e reconhecer. São processos que escapam da solidez "real" do mundo para alcançar uma intensidade etérea.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Maiakóvski e a ficção científica

Bráulio Tavares
btavares13@terra.com.br
Escritor, roteirista e compositor

A comemoração dos 80 anos da morte de Vladimir Maiakóvski tem trazido aos suplementos culturais em geral novas traduções e adaptações dos seus poemas. Suas peças de teatro também têm sido lembradas, tendo novas montagens no palco ou merecendo estudos críticos. Um aspecto pouco conhecido da obra do grande poeta é a sua ligação com a ficção científica. Os poetas futuristas russos flertaram com o Futuro, literalmente, em numerosas obras. Maiakóvski foi exposto à FC como qualquer garoto de sua época. Em seu texto autobiográfico “Eu Mesmo”, ele diz, falando de sua época de curso ginasial: “Leio Julio Verne. O fantástico em geral”.

Fantástico que teria influência em duas de suas peças principais. A primeira, “O Percevejo” (“Klop”), de 1929 (há uma tradução brasileira recente da Editora 34, São Paulo). Nela, a primeira parte descreve o casamento do burocrata Prysipkin e a destruição de sua casa por um incêndio. A segunda parte se passa no futuro, em 1979, quando escavações no local onde ficava a casa descobrem Prysipkin ainda vivo, congelado num bloco de gelo. A partir daí, seguem-se as costumeiras situações satíricas em que um personagem, como o “Dorminhoco” de Woody Allen, acorda num mundo futuro e dá origem a uma infinidade de mal-entendidos. No final, Prysipkin acaba sendo confundido com um inseto, o percevejo do título, e trancafiado num jardim zoológico.

A segunda peça futurista foi “O Banheiro” (“Banya”) de 1930, em que um cientista inventa uma máquina do tempo e precisa de financiamento do Estado soviético para finalizá-la, ao mesmo tempo em que é perseguido por uma espécie de espião industrial britânico que pretende roubar a idéia para a viagem no tempo. Quando a máquina é posta em funcionamento, traz para o presente uma “mulher fosforescente” vinda do futuro. Ela anuncia que o socialismo é triunfante e que levará para o futuro todos os que comungam do seu verdadeiro espírito; e quando a máquina parte, deixa para trás, no presente, todos os burocratas que tinham passado o tempo inteiro dificultando as coisas para o cientista.

Na Revolução Soviética, o futuro era real para esses artistas que viviam a construção de uma projeto de Utopia (que havia na cabeça deles), de construção da sociedade ideal, e ao mesmo tempo a tragédia de ver essa Utopia desfigurada pela violência, pela burocracia e pela visão tacanha dos políticos. “O Percevejo” salta de um 1929 corroído pela ganância dos burocratas ignorantes para um 1979 insuportavelmente asséptico, que para os críticos lembra “Nós”, o clássico da FC escrito em 1920 por Yevgêni Zamiátin. O livro de Zamiátin circulou clandestinamente até sua tradução em 1924 (a primeira edição oficial em russo só ocorreu em 1952). Sua descrição de um Estado totalitário e cerebralista influenciou o “1984” de George Orwell, e também o teatro de Maiakóvski, cujo entusiasmo pela Revolução não o impediu de perceber desde cedo o abismo stalinista para onde ela marchava.

A tempestade Maiakovski


Felipe Fortuna
felipefortuna@felipefortuna.com
Poeta e ensaísta

O que pensar de uma tempestade? Vladimir Maiakovski (1893-1930), o maior poeta russo da era soviética, se expôs, como uma força da natureza, a todo tipo de contradição: buscou destruir o passado literário, mas ao final defendeu a tradição dos grandes poetas de seu país, como Alexander Pushkin e Andrei Biéli. Apresentou-se como o escritor do futuro – do apogeu da máquina, da eletricidade e do urbanismo –, e se viu emaranhado na burocracia e nos equívocos que sucederam na União Soviética, após a Revolução de 1917. Como a tempestade, o poeta foi excessivo e intenso na vida e na obra, mas decidiu interrompê-las em pouco tempo: suicidou-se com um tiro aos 37 anos incompletos. Como deve ser no caso de um grande poeta, a biografia Maiakovski: o Poeta da Revolução (tradução de Zoia Prestes; Record; 559 páginas; 68 reais) trata tanto da arte longa quanto da vida breve, ambas atravessadas não apenas pela Revolução Russa, mas também por uma guerra mundial e pelo dogmatismo sanguinário de Joseph Stalin. Embora sempre simpática ao autor de A Plenos Pulmões, a biografia produzida por Aleksandr Mikhailov (1922-1994), crítico especializado em poesia russa do século XX, não deixa de apontar o dilema torturante de que Maiakovski jamais pôde escapar: poesia ou política?


Tinha razão o escritor Kornei Tchukovski: "É muito difícil ser Maiakovski". Forças contraditórias agiram sobre o poeta na arena política e cultural soviética. Seu otimismo quanto ao futuro da URSS e a vitalidade com que expunha a utopia de um "estado-comuna" – sem burocratas e sem elite – acabaram produzindo poemas panfletários, inferiores. A maior admiração política do poeta era o revolucionário Vladimir Lenin, morto em 1924. A biografia mostra de que modo o poeta enalteceu o líder político: "apesar de mostrá-lo humano, apresenta-o livre de todas as fraquezas, numa auréola de santidade". Havendo sempre manifestado interesse em encontrá-lo para conversas e leituras de poemas, escreveu a ode Vladimir Ilich Lenin, sob o impacto da morte do líder, na qual lamentava: "Temo / que o mausoléu / e as funções protocolares (...) / possam esconder / a simplicidade de Lenin". Mas, em que pese a oficialidade desses poemas próximos de peças de propaganda partidária, além de textos de "encomenda social", Mikhailov observa o "dualismo na consciência" do escritor – dualismo que desencadeou sua tragédia. Um sintoma dele é a peça satírica O Percevejo, cujo alvo principal é a estrutura burocrática do stalinismo. Escrito em 1929, um ano antes do suicídio do poeta, O Percevejo é a face melancólica e exausta de quem havia escrito, em 1915, o longo poema Uma Nuvem de Calças, notável em seu otimismo e na sua crença revolucionária.

Escrito sem jargão e sem aparato de notas, o livro de Mikhailov também se apresenta como painel de época. Maiakovski surge como figura central do futurismo. Em 1912, com Bofetada no Gosto Público, o escritor, nascido na Geórgia, divulgou o manifesto de um movimento que tinha, inicialmente, propósitos destrutivos. Ao condenar a tradição lírica dos que faziam odes ao luar e cantavam as paisagens do interior, o poeta levou a extremos a idéia de engajamento. O biógrafo é preciso na sua observação: o futurismo de Vladimir Maiakovski e de seu grupo é um fenômeno russo, marcado por tradições nacionalistas e com tendência à valorização dos sentidos e dos sons das palavras, bem como pelo propósito de se dirigir a milhões de pessoas. O poeta ingressou, assim, numa via experimental e de vanguarda: insistia que a nova arte deveria provocar uma "alteração do olhar", já que as coisas haviam sido transformadas pela vida urbana. Versos e palavras eram abruptamente cortados para valorizar formas novas, como na imagem cubista. Antes mesmo de ser poeta, Vladimir Maiakovski descobrira em si talento para o desenho, que demonstrou nos milhares de cartazes produzidos tanto para a divulgação da poesia como para a ação revolucionária. Todo esse conjunto inovador se somava ainda ao gosto do poeta pela declamação em grandes auditórios e por apresentações anárquicas em que surgia com uma escandalosa camisa amarela. Para muitos detratores, ele era o "valentão da periferia", o "saqueador futurista" com "vozeirão de arrombador".

O leitor brasileiro conta com considerável acesso à obra de Maiakovski, apesar das dificuldades da língua original. Estão a seu alcance Minha Descoberta da América (Martins), relato de uma viagem do poeta monoglota, sempre nervoso no estrangeiro, com passagens marcantes pelo México e pelos Estados Unidos. Ou Poética – Como Fazer Versos (Global), que traz a síntese de seu pensamento estético, com o imperdível capítulo "Os operários e os camponeses não vos compreendem". Mais importantes são as coletâneas Poemas (Perspectiva), na criativa tradução de Boris Schnaiderman, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, e Antologia Poética (Leitura), organizada e traduzida por E. Carrera Guerra e hoje somente encontrada em sebos. Esses dois livros capturam um pouco das melhores qualidades literárias de Maiakovski: a busca de comunicação direta com o leitor, sem que para isso haja rebaixamento da linguagem; e a crença no futuro (que ele sabe inapelavelmente urbano). O essencial são os versos, como sabia o próprio Maiakovski e o afirmou em Eu Mesmo: "Eu sou poeta. É o que me faz interssante".