terça-feira, 20 de outubro de 2009

Rimbaud, um poeta maldito e aventureiro

Gilfrancisco Santos
gilfrancisco.santos@ig.com.br
Jornalista, pesquisador e professor universitário

Adolescente de inaudita precocidade, quase muito cedo Arthur Rimbaud (1854-1891) manifestou uma rebeldia absoluta contra toda ordem: família, religião e sociedade. Aos dezessete anos se entusiasmou com o espírito revolucionário da Comuna e aos vinte deixou de escrever. Iniciava uma vida aventurosa que terminou na Abissínia, dedicando-se ao tráfico de armas, marfim e ao que tudo indica, de escravos. Sua influência foi considerada resistível, todavia ensinava a dispor livremente dos elementos que proporciona a realidade para expressar a mensagem ideal que cada poeta leva em si.

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O jovem Rimbaud, um prodígio ao tipo do inglês Chatterston, porém mais poeta, antes dos vinte anos de idade produziu versos que encantaram Paul Verlaine (1844-1896). Juntos, pôs-se a boemizar pelo mundo. Este gênio precoce, alma irritada e violenta, atravessou a literatura como um meteoro. Deixou de escrever aos vinte anos e abandonou a Europa. Jan Nicolas Arthur Rimbaud, nasceu a 20 de outubro de 1854 em Charleville, nas Ardenas, ao norte da França, próximo à fronteira Belga, sendo filho de Vitalie Cuif filha de proprietários rurais e Fréderic Rimbaud, capitão de infantaria, que abandonou a família quando Rimbaud tinha seis anos que se viu às voltas com a severidade de sua mãe e a vida parada da província. Aos dez anos já escrevia os primeiros poemas e sonhava em viajar pelo mundo, ocorrendo somente sete anos depois quando conhece Paris e logo entra em contato com os escritores e artistas. Data desta época sua amizade com Verlaine e juntos viajam pela Bélgica e Londres.

Aluno exemplar, Arthur desperta a admiração se seus colegas e professores, principalmente por conquistar quase todos os prêmios escolares. Em 1866, devido a sua precocidade, seus professores permitem que ele salte uma série sem cursá-la, e três anos depois recebe o primeiro prêmio do Concurso Acadêmico com o poema em versos latinos, Jugurtha, publicado juntamente com mais dois outros no Moniteur de L’ Enseignement Secondaire. Começa também a compor seus primeiros versos franceses os quais são publicados em janeiro do ano seguinte no número-2 da Revue pour tous. Em maio, Rimbaud tenta publicar alguns poemas na Segunda série do Parnasse Contemporain, em julho começa a guerra franco-prussiana e os franceses sofrem as primeiras derrotas e a 29 do mês seguinte, na esperança de ver a queda da monarquia, ele vende os livros que recebera dos prêmios e compra uma passagem no trem de Paris. Entretanto, o bilhete só lhe dá o direito ir até Saint-Quentin, mas ele prossegue até Paris onde é preso por falta de treze francos, permanecendo vários dias na cadeia.

Rimbaud retorna a casa no final de setembro e a 7 de outubro viaja para Charleroi, onde espera arranjar emprego de jornalista. Desiludido da possibilidade, segue para Bruxelas e Douai, confiando ao poeta e amigo Paul Demeny cópia de vinte dois poemas. Em 1871 sua cidade é ocupada pelos alemães e a 25 de fevereiro, com o dinheiro da venda de um relógio, foge pela terceira vez em direção a Paris, onde permanece por quinze dias e regressa a pé até Charleville. Nessa época, o poeta assume o propósito de não trabalhar e vive pelos cafés e pelas ruas a escandalizar os burgueses, interpelando os padres e assustando a todos. Aconselhado por amigos, retorna a Paris em setembro, onde se instala em casa dos sogros de Verlaine, que o apresente ao círculo literário Les Villains Bonshommes, e assusta aos membros com seu talento.

Ambos passam a freqüentar os cafés do Quartier Latin e retornam a beber, além de fazerem uso do haxixe e do absinto. De volta a Roche em princípio de abril de 1873, começa a escrever o Livro Negro ou Livro Pagão, que será mais tarde Un Saison en Enfer, e a pedido de Verlaine vai morar em Londres, mas este o abandona partindo para Bruxelas, deixando-o praticamente na miséria. A 10 de julho estavam juntos mais uma vez, instalados no Hotel de Coutrai, quando Verlaine dispara dois tiros contra ele, sendo que uma das balas atinge no punho e temendo um novo disparo, Rimbaud pede ajuda a um guarda que o prendeu e isso lhe valeu dois anos de prisão na Penitenciária de Mons, período no qual passou do paganismo à fé católica.

Entre 1874-1878 Rimbaud realiza várias viagens, seguindo para Londres com o poeta aventureiro Germain Nouveau, onde dá lições de francês em vários colégios ingleses e escoceses. No ano seguinte segue para Milão e Brindisi onde adoece, sendo obrigado a retornar à terra natal e passa a estudar línguas principalmente o espanhol. Rimbaud chega em abril de 1876 a Viena e acaba sendo expulso do país, partindo em seguida para a Holanda onde se engaja no exército colonial, recebendo um soldo adiantado, para desertar três meses depois. Visitando Bremen e Hamburgo no ano seguinte, ele se emprega como intérprete do circo Loisset e percorre a Suécia e Dinamarca, e pela Segunda vez é repatriado pelo consulado francês. Na primavera de 1878 de novo em Hamburgo, tenta empregar-se numa firma importadora de produtos coloniais para ser enviado ao Oriente, mas sem êxito consegue somente no final do ano numa firma francesa, que tinha filial em Chipre e lá contrai tifo sendo necessário retornar para casa.

Durante o ano de 1880, Rimbaud exerce várias funções e viaja para o Egito, onde começa sua aventura africana, após buscar trabalho em todos os portos do Mar Vermelho. Rimbaud emprega-se na firma Viannay, Mazerau, Bardley et Cie, que opera em Adem principalmente no comércio de café e couro, com um contrato por três anos (alimentação e alojamento), e imediatamente é designado para abrir uma filial em Harar, aonde chega vinte dias depois de ter viajado a cavalo através do deserto da Somália. Além dos trabalhos de agente comercial, Rimbaud inicia por conta própria a realizar expedições para adquirir marfim e peles, tornando-se explorador de regiões desconhecidas.

Em 1884, vive em companhia de uma jovem abissínia, que desenvolve seus conhecimentos das línguas da região, pois pretendia retornar à França quando estivesse bem rico. Enquanto isso, sua obra já era publicada na França na coleção Les Poètes Maudits, com seis poemas inéditos, e em fins de 85 desfaz sua sociedade com Bardley e associa-se com Pierre Labatut estabelecido em Ankober, para uma arriscada empresa: traficar armas e munições, destinadas a Menelik, na Etiópia, que juntamente com o apoio dos italianos, pretendia lutar pela independência do país, sob o domínio dos ingleses. Na França, mais uma vez o amigo Verlaine publicava seus versos inéditos, As Iluminações, na revista La Vogue que o apresenta como falecido.

Devido aos grandes lucros obtidos, Rimbaud expande o negócio para a exportação de ouro, marfim, peles e café, e entre agosto de 1888 a maio de 1891, foram anos de bons negócios. Suas economias superam as expectativas. Em fevereiro, sua perna direita apresenta problemas, fazendo-o sofrer bastante, passando várias noites em claro, até embarcar a 9 de maio para a França, aonde chega à Marselha após treze dias de sofrimento, sendo internado no hospital de Conception. Lá, os médicos diagnosticam câncer no osso e resolvem amputar sua perna. Em julho retorna ao conforto do lar, porém não consegue fixá-lo e, decidido a retornar à áfrica, chega novamente a Marselha após trinta horas de viajem e dá entrada no hospital, morrendo no dia 10 de novembro, aos 37 anos, sendo enterrado quatro dias depois em sua terra natal, conforme desejo de sua mãe.

Nesses tumultuados trinta e sete anos, nenhuma fase foi objetivamente mais ousada e aventurosa que a daqueles cinco anos em que escreveu a totalidade de seus poemas. A sua volta a sociedade se transforma, e uma crise de autoridade se acentua na incerteza política e social, restando-lhe a cultura e a flacidez de seus valores, a rotina pacífica dos costumes esclerosados, a inércia amedrontada dos ofendidos, os reajustes da moral burguesa, de suas normas, de suas regras mesquinhas, articulando-se para uma terceira república. Nesse quadro o enfant terrible, deflagra a sua custa, uma revolução particular. Revolução feita com o corpo e com a palavra, que se fundem no mesmo frêmito criativo.

No século XX, a influência de Rimbaud se espalhou pela literatura universal, especialmente depois que os surrealistas o apontaram como seu maior precursor. A personalidade de Arthur Rimbaud no entanto não pára de crescer e encontra terreno fértil no existencialismo sartreano e no fragor irracionalista da juventude contemporânea, na redescoberta do corpo, na tempestuosa busca da totalidade do humano; ao se invocar o nome de um pioneiro, o do poeta Rimbaud estará inscrito em toda a sua extensão, entre os extremos da inocência e da loucura.

Poucos poetas são tão mal compreendidos quanto Rimbaud. Cristaliza-se pouco a pouco diversos modos de interpretá-lo: uns se detêm nos passos de sua vida, movidos seja pelo fascínio, seja pela repulsa; outros se perdem na obra que é no entanto pequena, desnorteados pelas inovações que transitam de um pós-romantismo em versos clássicos (baudelairiano), até além das fronteiras do prospecto surrealista. Outros ainda, reparam drasticamente vida e obra do poeta, achando que o primeiro houve o poeta, depois o aventureiro, pois um e outro não teriam nada em comum. Sua obra literária é tão singular como sua biografia e encontra-se numa das últimas fronteiras da literatura, numa zona de mistério que continua a dimensão lírica de Baudelaire e antecipa o surrealismo do século XX. Ela está no interior de um universo fantasmagórico que não admite nenhuma análise radical, porém o ritmo e os efeitos sonoros do verso, parece transmitir algo de mistério e de magia verbal. Rimbaud em sua solidão indomável, cruza a história da poesia, sem sabermos de onde vem e para onde vai, ou como o considerava Paul Claudel (1868-1955), um místico em estado natural.

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Vênus Anadiômene – Arthur Rimbaud

Como de um verde túmulo em latão o vulto
De uma mulher, cabelos brunos empastados,
De uma velha banheira emerge, lento e estulto,
Com deficits bastantes mal dissimulados;

Do colo graxo e gris saltam as omoplatas
Amplas, o dorso curto que entra e sai no ar;
Sob a pele a gordura cai em folhas chatas,
E o redondo dos rins como a querer voar...

O dorso é avermelhado e em tudo há um sabor
Estranhamente horrível; notam-se, a rigor,
Particularidades que demandam lupa...

Nos rins dois nomes só gravados: CLARA VÊNUS
- E todo o corpo move e estende a ampla garupa
Bela horrorosamente, uma úlcera no ânus.

Dorminhoco do Vale – Arthur Rimbaud

Era um recanto verde onde um ribeiro canta,
pendendo às ervas seus farrapos de cristal
e rebrilhando ao sol que, loiro, se levanta.
Era um pequeno e verde e luminoso val.

Sobre a erva um soldado, a boca aberta, inclina
a fronte nua sobre os verdes agriões.
Dorme. E sobre o seu leito estende-se a neblina
e vai chorar a luz seus meios clarões.

Os pés nos juncos, face pálida e risonha,
parece uma criança adormecida; e sonho...
Aquece-o, Terra-Mãe! e acalenta-o com jeito!

Mãos sobre o seio, em cruz, dorme tranqüilamente;
nem beijos da luz, nem os perfumes sente...
E dois cravos de sangue abrem-lhe sobre o peito.

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