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Contista e cronista
Manuel Bandeira, já velhinho, com muita dificuldade, saiu de sua casa para boate Zum-Zum. O fato impressionou muitos dos que ali se faziam presentes. Era 10 de dezembro de 1964. Vinicius de Moraes acabara de chegar de Paris e há muito demonstrava sua insatisfação com a carreira diplomática, ainda mais tendo de representar um regime autoritário. Tempos difíceis, mas não o suficiente para estragar o momento histórico vivido na rua Barata Ribeiro, na cidade do Rio de Janeiro. Numa noite antológica, assistiu-se ao encontro de Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi, acompanhados pelo Conjunto de Oscar Castro Neves e a inédita aparição das meninas do Quarteto em Cy, sob a direção magistral de Aloysio de Oliveira. O sucesso foi tanto que o show permaneceu em cartaz por cinco meses, voltando em 1965 e 1966, e sendo devidamente registrado no LP Vinicius/Caymmi no Zum-Zum. Nada menos do que isto para tirar de casa o poeta Manuel Bandeira.
Estas aparições de Vinicius de Moraes, no entanto, não eram vistas com bons olhos pelo Itamaraty, principalmente na figura do embaixador Manoel Pio Corrêa – diplomata severo que ocupou o cargo de Ministro das Relações Exteriores, interinamente, por quase um ano, até ser designado para a embaixada brasileira em Buenos Aires, em 1967. O embaixador considerava a carreira diplomática incompatível com a de showman, e passou a exercer severa vigilância num homem difícil de ser dominado. Além dos shows, Vinicius começara a assinar crônicas sobre música popular no Diário Carioca e na revista Fatos & Fotos, o que provocou mais ainda a ira dos diplomatas “ranzinzas”. Mesmo após algumas outras tentativas do Itamaraty, não houve jeito de fazer com que Vinicius se acostumasse “a passar longas horas perdido nos labirintos do Estado”.
Em 13 de dezembro de 1968, dia em que foi decretado o ato institucional nº 5, Vinicius de Moraes subiu ao palco do Teatro Vilaré, em Lisboa, juntamente com o parceiro Baden Pawell, e declamou Pátria minha, ao som do Hino Nacional Brasileiro, entrecortado por doses de um bom uísque. Pouco tempo depois, já em março de 1969, a Comissão Câmara Canto (criada pelo AI-5) inclui Vinicius de Moraes entre os “bêbados, boêmios e homossexuais” a serem banidos do serviço público. Por fim, em maio do mesmo ano, Vinicius foi aposentado compulsoriamente da carreira diplomática, através do célebre bilhete (desaparecido) do Presidente Costa e Silva a Magalhães Pinto. Vinicius de Moraes tomou conhecimento de sua exoneração por meio de uma carta-telegrama, que leu boiando em sua banheira. Nenhuma lágrima foi derramada.
Por muito tempo, os arquivos a respeito dos processos de aposentadorias compulsórias de diplomatas pelo AI-5 permaneceram guardados no Itamaraty, inclusive os de Vinicius de Moraes. De acordo com os papéis, o Poetinha-Camarada não era tratado por suas ideologias ou aspirações políticas, mas pelo seu comportamento desbunde, muitas vezes imprevisível. O tempo, aos poucos, encarregou-se de corrigir certas grosserias. Em 14 de agosto de 1998, a Juíza Maria Teresa Carcomo Lobo, da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, concedeu anistia post-mortem ao compositor Vinicius de Moraes. E, no dia 08 de setembro de 2006, finalmente, Vinicius de Moraes foi celebrado como o mais novo embaixador brasileiro, numa homenagem do próprio Itamaraty. Na noite em que foi decretado o AI-5, à saída do Teatro Vilaré, alguns lisboetas salazaristas indignados com as palavras ferozes de Vinicius contra a ditadura, tentaram fechar a porta dos fundos, por meio de uma manifestação barulhenta. Alguém lhe pediu para não cometer a loucura de enfrentar os jovens baderneiros, mas Vinicius não se faz de rogado; encarou-os e clamou os versos de seu Poética (1), de 1950: “De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo./ A oeste a morte/ Contra quem vivo/ Do sul cativo/ O este é meu norte./ Outros que contem/ Passo por passo:/ Eu morro ontem/ Nasço amanhã/ Ando onde há espaço:/ – Meu tempo é quando”. Nesse momento, alguns rapazes lançaram ao chão, diante do diplomata Vinicius de Moraes, seus casacos, sobretudos e paletós, formando, assim, o tapete por onde passaria, de cabeça erguida, o poeta Vinicius de Moraes.
Anexo: Canção felicidade executada no programa Ensaio da Tv Cultura
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