sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Faulkner: a forma e a crítica

Sueli Cavendish
sndish@yahoo.com.br
Ensaísta e Tradutora, Doutora em Letras pela UERJ

Oito décadas de crítica vem se acumulando desde que William Faulkner publicou o seu primeiro grande romance, O Som e a Fúria, o romance modernista americano por excelência. Sendo Faulkner um grande mestre da forma, grande parte dessa volumosa crítica tem se dedicado à análise de suas estruturas formais. Nesta comunicação procuraremos sublinhar alguns dos seus aspectos. Pelo prestígio que o autor desfruta entre os franceses, começaremos com a análise de Monique Nathan, diretora da coleção "Escritores de Sempre", publicada no Brasil pela José Olympio. Para ela, em primeiro lugar, é impossível ler William Faulkner sem que um compromisso que nos arrebata por inteiro seja estabelecido. “É preciso ler Faulkner”, diz ela, “não apenas escutando o que falam, mas tornando-se passivamente receptivo, incapaz de discriminação, de opinião ou de incredulidade, auscultando somente a febre anunciadora dos desastres, como se o leitor possuísse, de fato, qualquer vaga presciência nascida daquela longa intimidade com a inconstante gênese dos elementos”.

Avançar no terreno faulkneriano significa também “usar a sua obra como se queira, compreendendo, não compreendendo, parando diante de contradições ou vencendo-as com bravura. O leitor de Faulkner é antes de mais nada uma pessoa que narra a si mesma, histórias acerca de histórias contadas por Faulkner para si mesmo. Tente-se aprisioná-las à lógica ou aproximá-las da luz, e tudo se destroçará.” Convém começar, prossegue a autora, por um “combate à indolência e à facilidade. A imaginação entorpecida, a inteligência obscurecida, a consciência um pouco traumatizada; é preciso conhecer, para depois apreciar a composição anárquica do relato, a desordem de personagens diferentes que tem o mesmo nome, os parênteses monótonos e intermináveis que sobrecarregam o principal com uma carga de chumbo; as acumulações de adjetivos, as falsas alternativas, os enigmas de aparência enganadora, os ‘talvez’ que não introduzem interrogação alguma, os ‘porquês” que jamais se referem à causa primeira, as frases que duram páginas, as páginas que duram horas, as horas que passam mais depressa que o segundo. . . em suma, todos os truques e manhas do que se chamou com muita razão a ‘perversidade narrativa’ de Faulkner.

Um dos mais memoráveis traços da forma faulkneriana, que a autora reconhece, é que através dessa forma ao leitor são delegados privilégios de criador. Ele, leitor, experimenta, recria, dispõe, reconstitui a história segundo a sua conveniência, com a única condição, que aceita, de se encontrar no cerne do relato tão ingenuamente quanto os personagens e o próprio autor. Se Faulkner recusa ao leitor o direito de saber sobre os personagens mais do que estes sabem, conclui-se que a ciência dele, Faulkner, não será muito maior. Ele vem a ser mais conduzido por elas do que as conduz, e sua dificuldade em deixá-las se deve sem dúvida ao fato de ser a sua obra o único meio orgânico, natural, onde ele escolheu viver. A leitura de Faulkner implica assim estar-se sujeito a um imperativo ético e moral Samuel Beckoff considera que Faulkner poderia ser um narrador tradicional de primeira linha se tivesse escolhido ficar no padrão linear de eventos, procedendo de um começo específico para um fim especifico. Tal técnica é claramente evidente na maior parte dos seus contos e em muitos dos seus romances. Mas ele desejava forçar o leitor a um compromisso mais direto com os personagens e os eventos da narrativa. Ainda no que diz respeito à participação do leitor na construção ficcional, Irving Howe sublinha que Faulkner pretendia “saturá-lo" – ao leitor – "nas atmosferas de um mundo imaginado, para forçá-lo a abandonar a postura de um ouvinte passivo e tornar-se um participante ativo lutando, como os próprios personagens de Faulkner, para descobrir o significado nos eventos representados”.

Para converter o leitor em agente ativo no desenrolar da história, Faulkner lançou mão de numerosos "devices"– o fluxo de consciência e o monólogo interior, os múltiplos narradores e a diversidade de perspectivas, o baralhamento de seqüências temporais, um estilo convoluto, ou seja, enrolado para dentro, as justaposições, os vazios e negações, e um novo estilo a cada livro. Em “O Som e a Fúria” utilizou a livre associação com Benjy e Quentin e o monólogo interior com Jason. “Enquanto Agonizo” tem sido chamado de uma cantata para quinze vozes ou quinze variações sobre um mesmo tema, o enterro de Addie Bundren, sobre o qual 15 personagens dizem cada um a sua própria parte de um total de 60 frases narrativas ou fragmentos. Luz de Agosto, embora uma narrativa mais linear, contém três diferentes histórias, compondo, portanto, uma trilogia. Em “Absalão, Absalão!” Faulkner reverteu em grande parte para os elementos do romance gótico. Em “Palmeiras Selvagens” o leitor se depara com narrativas distintas, uma alternando com a outra até que uma assume o significado da outra – uma espécie de diálogo entre duas histórias. Em “O Vilarejo” e “Os Gatunos” ele retorna à “tall tale” americana, e finalmente “Uma Fábula” é a sua tentativa de escrever uma alegoria. O fato é que Faulkner esteve sempre experimentando incansavelmente com a forma romance, e mesmo àqueles que se poderia considerar convencionais, aplicou os desvios, nuances e torções que deles faria especimens únicos da forma.

Cada um dos substantivos comuns numa sentença faulkneriana, diz Cleanth Brooks , tem no mínimo um adjetivo para modificá-lo. Em raras ocasiões Faulkner criará para o estilo mais econômico para criar uma imagem vívida com umas poucas palavras. Com mais freqüência ele utiliza frases e cláusulas qualificativas, ou adjetivos compostos para expressar uma nuance de pensamento ou de sentimento. Em alguns dos romances, particularmente nos últimos, a cascata lingüística ruge – nome sobre nome, adjetivo sobre adjetivo, frases impacientes sobre frases. A sintaxe então se transforma num emaranhado sem saída, uma selva densamente embaraçada de frases e cláusulas, desafiando, intencionalmente, as regras da gramática. Conrad Aiken refere-se a Faulkner como um voluptuoso verbal, um homem com desejo sexual pelas palavras, um apetite insaciável por elas. Quando exauriu o estoque disponível de derivados anglo-saxões e latinos, incluindo muitas palavras antigas que ele trouxe de novo à vida, ele não hesitou em forjar novas palavras juntando duas palavras conhecidas em uma, formando palavras port-manteau ou palavras valise, como Joyce e Gerard Manley Hopkins já haviam feito antes. Às vezes o dicionário ou o significado denotativo de uma palavra não serviam a seu propósito e ele tomava o significado conotativo ou denotativo, novamente operando mais ao modo do poeta do que do novelista. Warren Beck vê mais que mera prolixidade na tendência de Faulkner a empilhar palavras. Séries inteiras de palavras podem ter um lugar definido no estilo peculiarmente analítico de Faulkner. Em sua forma típica elas não são redundantes, conquanto elaboradas, e seu efeito cumulativo, assim como a compressão notável que alcançam é inegável, como na frase “amores passionais, trágicos e efêmeros da adolescência.” Faulkner chegou mais perto que qualquer outro autor de língua inglesa do uso opulento e imperial que Shakespeare fazia das palavras, ao tentar aproximar antigos usos literários – o coro dramático, o prólogo e o epílogo, o solilóquio, – todos eles exigindo um estilo oral e recursos da oratória no qual as palavras jorram sem inibição. O objetivo de tal estratégia, segundo Warren Beck, não é o realismo objetivo, mas a revelação do tema, uma revelação elevada, pelos inesgotáveis recursos e pelo poder de sua linguagem, aos mais altos píncaros da visão imaginativa.

Para Edmund Volpe, grande parte da grandeza de Faulkner se deve ao que ele chama de visão estereoscópica do autor ou a rara habilidade para “lidar com o específico e o universal simultaneamente, para tornar o real simbólico sem sacrifício da realidade.” Pode-se acrescentar a essa habilidade outro grande atributo de Faulkner, “o ouvido estereofônico”, ou a habilidade rara para ouvir os tons específicos da linguagem falada e os meios tons mais sutis da linguagem. De todo modo para Volpi “o próprio esforço para ler um romance de Faulkner força o leitor a um ato de descoberta moral e estética, paralelo àquelas descobertas que seus narradores fazem no ato mesmo de contar as suas histórias”.

Não há dúvida de que o conceito idiossincrático de tempo deste romancista está associado com o modo pelo qual ele modificava as técnicas narrativas. Os personagens de Faulkner são, para Jean-Paul Sartre, desesperançados, porque estão comprometidos com o passado. O ponto de vista de um personagem de Faulkner é descrito por Sartre como o de um passageiro de um trem em movimento olhando para trás. O que ele vê é a paisagem sobre a qual viaja distanciando-se dele. Não há futuro à vista, o presente é um grande borrão; somente o passado é claramente visível enquanto flui diante de seu olhar reminiscente.

Conrad Aiken considera a estrutura das sentenças de Faulkner hiper-elaborada, barroca e involuta: há trilhas de cláusulas, umas após as outras, em aposição indistinta, ou talvez mesmo sem qualquer conexão; parêntesis após parêntesis, o próprio parêntesis contendo um ou mais parêntesis – lembram aqueles ovos chineses coloridos da infância, que quando abertos mostravam ovo após ovo, cada um menor e mais sutil que o último. É como se Faulkner, num gesto de desespero, tivesse decidido tentar nos dizer tudo, absolutamente tudo, toda origem última, ou qualidade ou qualificação, e todo futuro possível em um esforço terrivelmente concentrado: cada sentença vindo a ser, como se pudesse ser, um microcosmo. O que Faulkner busca é um continuum, um meio sem paradas ou pausas, um meio que é sempre do momento, no qual a passagem de um momento para o outro é tão fluida e irreconhecível como na própria vida que ele busca criar. Tudo se encontra imerso e submerso, como se fosse visto por dentro e por baixo. O leitor deve, portanto, ser constantemente puxado para dentro; poderosa e irremediavelmente hipnotizado de tal forma a mergulhar bem fundo nessa correnteza de imagens. Compreendemos a razão para o comprimento e o volteio das frases, assim como para as repetições. As repetições e a ênfase iterativa – como se fosse um canto ou uma evocação – de certas palavras relativamente abstratas tem o feito final de produzirem uma linguagem especial, um conglomerado que o autor usa com impressionante virtuosidade, tornando-se, de fato, para seus propósitos, uma corrente viva de quase milagroso efeito. De um lado a linguagem é extremamente abstrata, cerebral, obcecada com o tempo e o espaço, tortuosa e retorcida, porém sempre com um pulsar vibrante. De outro pode ser esmagadora, opressiva e tirânica, em sua simples expressividade, em seu realismo pujante, como nas cenas da enchente em “Palmeiras Selvagens.”

Obviamente tal estilo torna as coisas mais complexas para o leitor, que deve simplesmente pôr-se a trabalhar e cooperar, a observar a estranha, difícil e laboriosa evolução da idéia em Faulkner. E não será tanto a idéia quanto será a forma, pois tal como em Henry James, que neste aspecto Faulkner tanto semelha, é praticamente impossível fazer em sua obra qualquer distinção entre tema e forma. Pois de fato o que o move mais, tanto em Santuário, O Som e a Fúria, e Enquanto Agonizo, quanto em Luz de Agosto, Absalão, Absalão! e em Palmeiras Selvagens é sua constante preocupação com o romance enquanto forma. Gênio da forma e explorador de suas inesgotáveis possibilidades, é também gênio da invenção, seja de personagem ou de episódio, que cria com uma inventividade das mais ricas, uma abundância tumultuada, uma vigorosa e exuberante vitalidade, que faz toda a ficção contemporânea parecer pálida em contraste. É uma infinita galeria de retratos, todos portadores de uma vitalidade violenta e imediata.

Malcolm Bradbury ressalta que das estratégias faulknerianas resulta uma linguagem criada por meio dos momentos expressionisticamente suspensos entre o movimento e o repouso, momentos de suspensão do tempo, os chamados “still moments”, ou momentos de quietude, que mesclam passado e presente, entre o movimento que avança e o centro estático, a percepção e a coisa percebida. Tais momentos formam o âmago do seu estilo, como neste trecho de “Luz de Agosto”:

“Embora as mulas caminhem sempre pesadamente em hipnose firme e incansável, o veículo não parece progredir. Parece estar suspenso a uma distancia média para sempre e sempre, tão ínfimo é o seu progresso, qual uma conta barata no suave fio vermelho da estrada. Tanto é assim que ao observá-lo o olho o perde quando visão e razão sonolentamente mesclam-se e misturam-se, como a própria estrada, com todas as pacíficas e monótonas mudanças entre escuridão e dia, como um fio previamente medido a ser enrolado em um carretel.”

Esse atrito e contraponto entre movimento e estase, uma marca da prosa poética faulkneriana, agencia forças que operam o seqüestro do mágico instante, o instante da quietude perfeita, suspensão mágica de tempo e movimento, resíduo e reminiscência romântica sob uma nova clave. Um desses momentos privilegiados se encontra, conforme registrado por Richard Adams , em “O Som e a Fúria”, na cena em que Caddy, subindo ao topo de uma pereira com os irmãos postados no solo abaixo a olharem para cima, espia através de uma das janelas da mansão o funeral da avó. Cena que marca, portanto, a primeira experiência da morte para as crianças Compson e simbolicamente a cena originária de criação. É assim que Faulkner descreve a captura artística do movimento em estase: “A vida é movimento. Objetivo de todo artista é capturar o movimento, que é vida, por meios artificiais e mantê-lo fixo de modo que cem anos mais tarde, quando um estranho o vê, ele se move novamente, desde que é vida.”

Finalmente Wolfgang Iser, ao examinar “O Som e a Fúria”, observa no romance uma tendência à intensificação das chamadas negações secundárias, que ocorrem sempre que o leitor, ao descobrir o tema do romance, produz ainda uma negação quando tem de compatibilizar a sua descoberta com sua própria crença. A seqüência dos monólogos dos irmãos Compson cria no leitor um padrão de expectativas que ele tem que abandonar de um monólogo para o outro. Pois cada um dos monólogos mostra que os irmãos são desprovidos de certas faculdades – deficiências que poderiam ser compensadas à medida que se avança na leitura. Assim o leitor pode sentir que a percepção do idiota Benjy apenas requer um grau maior de consciência para estabelecer os meios apropriados de acesso ao mundo; que a consciência de Quentin necessita ser suplementada pela ação, se não quiser desintegrar-se numa multiplicidade obscura de possibilidades; e que Jason necessita moderar suas ações pela observação e pelo auto-exame, se quiser continuar dominando a situação. Embora o leitor espere que a seqüência de relatos termine por balancear as deficiências, na verdade ele descobre que ele é forçado a cancelar suas próprias expectativas, que entram em colapso a cada nova tentativa. É um processo de simultânea criação e cancelamento de expectativas. O cancelamento das expectativas resulta em espaços vazios entre os monólogos, porque as conexões imaginadas não se estabelecem. Esses espaços vazios são de uma natureza estranha, pois eles resistem às tentativas do leitor de preenchê-los com suas próprias imagens mentais. Paradoxalmente, então, esses vazios só podem ser preenchidos com imagens mentais que se auto-cancelam, pois o sentido da conexão é na verdade a falta de sentido. E de fato, aqui se encontra a chave para o significado desse romance: pelo cancelamento contínuo das imagens mentais provocadas pelos vazios, a falta de sentido da vida – que Faulkner indica através da citação do Macbeth que forma o título – a vida é uma história narrada por um idiota, cheia de som e de fúria, que nada significa - torna-se uma experiência viva para o leitor. A negação de suas próprias imagens mentais garante que essa experiência para ele se concretize.

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