João Batista de Brito
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Critico de cinema
Como é sabido, há muito tempo a palavra estilo deixou de designar apenas os aspectos formais de uma obra e passou a incluir todos os elementos de conteúdo. Se não antes, ao menos no tempo da modernidade, entendeu-se que, ao produzir, o artista não desenvolve só uma técnica: ele funda todo um universo ficcional, e, se seu estilo é forte, esse universo vai se impor como próprio, particular e inconfundível. Dentro dele, entre temas, personagens e cenários, o artista transita à vontade, sem se incomodar de, a cada nova manifestação, ser redundante. Aliás, com o artista de estilo forte, a redundância é mesmo desejável.
Para ficar no âmbito do cinema, pensemos em Kurosawa, Hitchcock, Fellini, Bergman, Ford, Allen...
Pois bem, uma pergunta interessante que poderíamos formular aqui seria a seguinte: o que aconteceria se um cineasta de estilo forte resolvesse fazer um filme que, em tudo, contradissesse o seu universo ficcional? A pergunta parece mera conjetura, mas não é, e para demonstrá-lo remeto o leitor-espectador à filmografia de Frank Capra (1897-1991), um dos cineastas de estilo reconhecidamente forte do século XX.
Como os cinéfilos lembram, no universo ficcional de Capra o Bem prevalece. Democrática, humanitária, positiva, a sua visão do mundo é essencialmente otimista e, clara, límpida, direta, faz a decantação da vida, como um dom divino, o mais elevado de todos. O seu valor supremo é o amor, em detrimento de bens materiais, intelectuais, ou de outra ordem. Os seus são filmes “de mensagem”, e a mensagem parece ser sempre eufórica: a de que vale a pena viver, pois, como proclama o título original de um de seus filmes mais típicos, “a vida é maravilhosa”.
Ora, para quem está familiarizado com tanta euforia, jamais ocorreria que Capra pudesse rodar um filme de horror! E, no entanto, ele rodou. Refiro-me ao pouco conhecido “Este mundo é um hospício” (“Arsenic and old lace”, 1944), uma comédia sombria e mórbida onde o crime é a tônica, um hábito comum que os personagens praticam a torto e a direito, com um prazer doentio e incontrolável.
Para enganar o espectador, o filme começa com casamento. Mas, ora, no dia em que contrai matrimônio, o crítico de teatro Mortimer Brewster (Cary Grant) dá uma passadinha na casa das tias, duas senhoras que alugam quartos para hóspedes, e lá, em plena sala de estar, o espantado sobrinho descobre, num baú ao pé da janela, o quê? Sim, um cadáver. Para seu espanto, ele fica sabendo, da boca das tias, que aquele cadáver é só o item de uma longa série. No porão da casa estão enterrados mais onze, todos hóspedes executados pelas tias, com “veneno e vinho”: “arsenic and old lace” (vide título original). Bondosas, as tias só matam velhinhos que, segundo elas, já estão no fim da vida e recebem delas, o grande favor de morrer com charme e elegância.
Os funerais no porão são efetuados por um terceiro tio, este reconhecidamente maluco, que assume a personalidade do presidente Roosevelt. Convencido pelas duas irmãs de que se trata de vítimas de uma epidemia, sente-se na obrigação de enterrar os corpos no porão, que, na sua geografia de maluco, equivale ao longínquo Panamá.
Quando Brewster está indignado de pertencer à tal família, eis que chega um irmão que ele não via desde a infância. Com cara de Boris Karlov, esse Jonathan (Raymond Massey) é um psicopata com um currículo de crimes bem maior que os das domésticas titias. A propósito, ele traz um cadáver a tiracolo, que, para indignação das donas da casa, incorpora aos depostos no “Panamá”, aumentando o número de doze para treze.
O único normal da família, Mortimer, metido entre assassinos incuráveis, não pode fazer muito, e a presença eventual da polícia só faz complicar as coisas, obrigando-o a, para desviar a atenção policial do fatídico “Panamá”, também se fazer de mentecapto e assassino.
Não vou contar o resto da estória, mas, como se percebe, estamos bem distante do benfazejo e inocente universo capriano, e – alguém poderia afirmar – bem mais próximo dos tons mórbidos de um Hitchcock. Sem coincidência, tudo acontece na noite do Halloween, e ao lado da residência das tias se localiza o cemitério de Brooklyn, constante ponto de referência da câmera, embora o “Panamá” caseiro – quiça para soar mais terrível -- nunca seja mostrado.
Para tentar colocar o filme no seu contexto autoral, talvez seja importante considerar o elemento cômico. Não apenas por se tratar de uma comédia, mas porque, em Capra, normalmente o cômico nunca é irônico, ao passo que aqui, o é. Tanto assim que, para muitos, “Este mundo é um hospício” seria a resposta irônica de Capra ao nazismo e suas idéias de extermínio coletivo.
O que sem dúvida perdura de Capra em “Este mundo é um hospício” é, inevitavelmente, a qualidade. O filme tem o mesmo ritmo acelerado e sufocante de sempre, a mesma maestria na direção de atores e o mesmo domínio na condução da narrativa, e nesse sentido, é, sim, um autêntico Capra, ainda que com o delicioso paradoxo de ser “um Capra macabro”.
Anexo: Trailer de Este mundo é um hospício (Arsenic and old lace) de 1944
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