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Escritor e compositor
Amar o perdido
Ler um poema é deduzir referências que o poeta deixa implícitas ou que vamos suprindo por conta própria, como se junto de cada frase do poema houvesse um asterisco remetendo para uma nota ao pé da página – só que a nota está em branco, e cabe ao leitor preenchê-la. Tem um poema de Carlos Drummond de Andrade que parece um dos mais simples, mas sempre me deixou com a pulga atrás da orelha. É o poeminha “Memória” (em “Claro Enigma”), talvez um dos primeiros que li do poeta, pois aparecia manuscrito em fac-símile na Enciclopédia Delta-Larousse, que foi a Internet da minha infância. Diz o poema: “Amar o perdido / deixa confundido / este coração. // Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não. // As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão. // Mas as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão”.
Quatro estrofezinhas, cada uma com quinze sílabas métricas, numa cadência 5-5-5 cujo ritmo implacável é reforçado pelo “ão” com que se encerram. A estrofe inicial não tem mistério: “Amar o perdido deixa confundido este coração”. À primeira vista é o tema da perda da pessoa amada, um dos grandes lugares comuns da poesia lírica. Mas eu penso que CDA se refere a algo mais sutil: o amor que só brota após a perda. Como ocorre com a amante do poema “Caso do vestido” (em “A Rosa do Povo”), que confessa à mulher cujo marido roubou: “Eu não tinha amor por ele / ao depois amor pegou”. Ou então a fórmula que ele estabelece no poema “Perguntas” (também em “Claro enigma”), em que o Poeta vê um “fantasma” no espelho trazendo-lhe recordações da infância e dizendo-lhe, ao se despedir: “Amar, depois de perder”. O que talvez seja a versão drummondiana para outro lugar comum: “eu era feliz e não sabia”.
Amar o perdido confunde o coração do poeta porque insinua a possibilidade de que na verdade só amamos o que não temos. Nosso objeto preferencial de amor é o sonho, a utopia, o inalcançável – ou, mais realistamente, o ainda inalcançado. Somos todos Don Juans a quem a conquista fascina e a posse provoca o tédio. Ou então somos crianças freudianamente impelidas por pulsões de tal magnitude que nada as satisfaz, nem mesmo a conquista do objeto desejado. O desejo que não foi satisfeito hoje nunca poderá ser satisfeito amanhã, porque nesse caso estaremos satisfazendo apenas o desejo de amanhã. Basta ter desejado em vão por um minuto para continuar desejando por toda a Eternidade.
O verdadeiro desejo nunca é satisfeito, porque o que no fundo desejamos é um objeto total, um arquétipo platônico que funde em si todas as possibilidades daquele ser – e o que obtemos na vida real é o objeto real, com suas incompletudes e defeitos. É como desejar o Oceano e poder apenas encher as mãos em concha. Amamos o que é conquistado, mas amamos ainda mais o que não conquistamos, porque é um sonho que não se desvalorizou em realidade.
Nada pode o olvido
A segunda estrofe do poema “Memória” de Carlos Drummond de Andrade (em “Claro Enigma”) diz: “Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não”. É um poema sobre a perda amorosa, à primeira vista muito simples, mas a facilidade de Drummond é enganosa. Seu método criativo parece com o de Paul MacCartney, que dizia: “Eu pego uma idéia simples e vou complicando, vou complicando... Então, quando ela está bem complexa, eu começo a simplificar de novo”. É escusado dizer que a simplicidade que se obtém no final do processo é de caráter distinto da que o artista teve como ponto de partida.
Voltando ao poema, é preciso deixar claro que o poeta se refere ao Olvido, o Esquecimento. Já vi esse poema transcrito por aí com o absurdo erro de dizer: “Nada pode o ouvido...” É o típico caso da contaminação oral da pronúncia, agravado pelo fato de que, enquanto aqui no Nordeste a gente em geral pronuncia “ól-VI-do”, no Sudeste muita gente diz “ôl-VI-do”, o que ajuda a confundir.
Portanto, o Esquecimento nada pode contra o apelo absurdo, o apelo sem significado do Não. Eu sempre empanquei diante deste verso. Por mais que tente analisá-lo, nunca chego a fechar um resultado. É uma verdadeira dízima periódica poética, a gente pode continuar dividindo por todos os “século seculóro”, como diz o matuto, e nunca vai fechar a conta.
O Poeta parece estar dizendo que o Não (a negação, a impossibilidade, a proibição, a ausência, todos os correlatos dessa idéia básica) tem um apelo sem sentido. Esse “apelo” do Não não é uma imagem poética que me diga alguma coisa. Podia ser uma porção de coisas relativas ao Não, mas... apelo? Posso explicar racionalmente o uso dessa palavra, mas um verso, como uma piada, não é para ser explicado, é para ser apreendido num segundo. Se isto não acontece, de nada adianta explicar. O “apelo do Não”, portanto, é uma imagem poética que me entra por um ouvido e sai pelo outro.
Mas enfim – o Poeta nos garante que o apelo do Não existe, e que é algo contra o qual nada pode o Esquecimento, o Olvido. O Não impõe suas próprias regras às quais não podemos fugir, e à luz da primeira estrofe (“Amar o perdido deixa confundido este coração”) podemos aceitar que este Não se refere à perda, à ausência, à impossibilidade de ter ou de continuar tendo. E contra isto, nada pode o esquecimento. É inútil (ou é impossível) esquecer a perda, mesmo que ela seja sem sentido.
Analisar um poema desse jeito é uma coisa chata, que eu comparo com querer interpretar um quadro da Van Gogh analisando a composição química das tintas. A gente só deve fazê-lo quando o poema for opaco, quando a gente não estiver encaixando as frases, quando a conta não bater. Aí, vale parar e tentar ler o poema como se fosse a resolução de uma equação, onde cada linha é um resultado lógico de uma operação invisível que ocorreu na mente do autor entre uma linha e a seguinte.
As coisas tangíveis
A terceira estrofe do poema de Drummond, “Memória”, diz assim: “As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão”. Sendo um poema sobre a perda amorosa, a primeira leitura destes versos refere-se à ausência – nossa mão, que antes sentia a presença de algo concreto, tocável, tangível, não a sente mais. Vejo uma sutileza curiosa no uso desta imagem da “palma da mão”. Porque me parece que o ato de tocar, experimentar, acariciar algo se dá primeiro pelas pontas dos dedos, que funcionam para nós como as antenas de alguns insetos. O tato que temos nas pontas dos dedos é muito mais refinado e mais reconhecedor de diferenças do que a palma da nossa mão. Por que a palma da mão? Porque ela serve, mais do que para tocar, para reter. Para estabelecer a posse. Na informalidade dos bate-papos amorosos vangloriamo-nos dizendo: “Fulana tá aqui, olha, na minha mão” – e estendemos a palma para reforçar. Se algo não pode mais ser sentido na palma da nossa mão, não nos pertence mais.
Essa imagem me lembra os versos de outro poema do mesmo livro (“Claro Enigma”), o belíssimo “Campo de Flores”, onde o poeta diz: “Seu grão de angústia amor já me oferece / na mão esquerda. / Enquanto a outra acaricia / os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura / e o mistério que além faz os seres preciosos / à visão extasiada”. Esta imagem da mão acariciante me evoca os versos sensuais de Bob Dylan em “I Threw it All Away” (“Eu Joguei Tudo Fora”), canção de 1969: “Um dia eu tive montanhas na palma da minha mão / e rios que fluíam o dia inteiro...” E vejam com que delicadeza Drummond passa da mera posse física para a posse em seu sentido mais pleno, a posse da pessoa total e de tudo que ela inclui, ao dizer que a mão não acaricia apenas os “cabelos”, mas também a “voz”, o “passo”, a “arquitetura”...
E tem mais. Observem o duplo sentido da palavra “insensível”. Insensível é aquilo que não sente (“você é uma pessoa insensível”), e também aquilo que não pode ser sentido, imperceptível (“houve uma mudança insensível de temperatura”). Portanto, as coisas que antes eram tocadas com as mãos já não são sentidas – nem sentem. A ausência, como a presença, é um fenômeno recíproco. Tudo que toca é tocado. Toda mão que acaricia é também acariciada no mesmo gesto. E tudo que não podemos sentir também não nos sente.
É como a reciprocidade da dor, registrada em outro poema do mesmo livro, “A Um Varão, Que Acaba de Nascer”: “Este é de resto o mal / superior a todos: / a todos como a tudo / estamos presos. E / se tentas arrancar / o espinho de teu flanco, / a dor em ti rebate / a do espinho arrancado”. Quando a ausência se instaura, não existe mais sofrimento mútuo nem prazer mútuo: apenas a falta de contato entre duas “coisas” que, mesmo tangíveis, mesmo possíveis de alcançar com a mão, não se sentem mais uma à outra.
Mas as coisas findas
O poema “Memória” de Carlos Drummond de Andrade (no livro “Claro Enigma”) se encerra com esta singela estrofezinha: “Mas as coisas findas / muito mais que lindas / estas ficarão”. É uma estrofe perfeita, em todos os sentidos, para fechar este poema sobre a perda e a ausência. Como falei no primeiro comentário, o poema tem quatro estrofes, cada estrofe três linhas, cada linha cinco sílabas. A contagem das sílabas métricas varia de leitor para leitor; eu as leio assim: “Amar o perdido (2-3) / deixa confundido (1-4) / este coração (1-4). // Nada pode o olvido (3-2) / contra o sem sentido (1-4) / apelo do Não (2-3). // As coisas tangíveis (2-3) / tornam-se insensíveis (1-4) / à palma da mão (2-3). // Mas as coisas findas (3-2) / muito mais que lindas (3-2) / essas ficarão (3-2).” A leitura métrica da última linha (que teoricamente seria 1-4, “es – sasficarão”) vira “essasfi-carão”, claramente influenciada pela das duas linhas anteriores, o que não ocorre com a última linha da segunda estrofe, quando isto forçaria um cacófato (“apelu-donão”).
É um poema minúsculo e de grande simetria, mesmo admitindo as variações de ritmo descritas acima. A simetria é reforçada pela reiteração de rimas toantes centradas na vogal “I” nas linhas 1 e 2 de cada estrofe, e na sonoríssima rima em “ÃO” nas terceiras linhas. (Se eu fosse escrever um Decálogo para jovens poetas eu incluiria: “Economize a rima em “ÃO”, a qual, como as armas de fogo, só deve ser usada em casos de absoluta necessidade”).
O poeta fala da perda daquilo que foi amado, mas se consola dizendo que existe algo mais importante do que as coisas lindas: são as coisas findas. “Findas” significa encerradas, terminadas. As coisas que acabaram, ficarão. Vejam que belo paradoxo! Nossa sensação intuitiva é de que se essas coisas se acabaram, não ficaram. Drummond sugere o contrário. As coisas findas ficarão porque provavelmente se cristalizaram, despregaram-se da realidade (que é fluxo, transformação, incerteza) e tornaram-se Forma, Idéia – tornaram-se Memória. Vejam com que segurança o poeta usa este termo no futuro, “ficarão”. Me lembra o que disse Mário Quintana: “Esses que aí estão / atravancando meu caminho / eles passarão / eu passarinho”. É como se dissesse: “eles passarão, eu ficarei”.
Que passarinho é este que fica? Maldo eu que seja o rouxinol cantado celebremente pelo inglês John Keats, no poema “Ode To a Nightingale”, que examino no capítulo “S” do meu “ABC de Ariano Suassuna” (e que examinei em maior detalhe nesta coluna: “A eternidade dos pássaros”, 8.9.2004). É o pássaro imortal que canta o mesmo canto por toda a eternidade. É a memória, que preserva em seu âmbar as coisas findas. Que na ficção científica foi assim definida por Frank Herbert (“Duna”): “Arrakis ensina a mentalidade da faca: cortar aquilo que está incompleto e dizer – Agora está completo porque termina aqui”.
Anexo: O Fazendeiro do Ar (1972) Curta dirigido por Fernando Sabino e David Neves
2 comentários:
Belo blog, gostei do pouco que vi, cativou!
Obrigada por postar, amei descobrir este curta do Fernando Sabino. Gostei muito do blog.
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