Sandra Ciccone Ginez
sanset_10@yahoo.com.br
Poeta, Contista e Jornalista
Eles falam pelas minhas costas. Falam pelas costas. Tecem as falhas do meu caráter. Teatro ou pintura do embate de minhas histórias, com presença psicológica na disposição dos elementos visuais, com a simbologia de um animal ou objeto. Uma cena de cinema, um caveirão e um corpo caído, uma pichação de muro em que se recostam viciados.
Quando o ser A e o ser B se juntam, não são diferentes de C ou D, que falariam pelas costas de A ou B.
Eu, Djin, não gosto de elevadores de duas saídas. Entram tambores com lençóis infectados. Aparelhos. Se der sorte, sobe vazio. Levo um café em copo de isopor para o acompanhante do quarto. Algum parente meu. Bombons, biscoitos, desculpas para sair do quarto. Conversa mole e aprisionamento. Um gosto de coisas finitas. O balcão de enfermagem está deserto e os três painéis de alarme, mudos. No descanso de tela do computador vem escrito: “Feliz Dia das Crianças”. Um ventilador faz o movimento do não. O tempo ficou esquecido.
"No fundo de uma cama”, ela disse. Esse pequeno espaço pantanoso. Submergível. Um milésimo ao dia. Os acontecimentos são para quem vem de fora. Faces coradas. A escolha no armário traz um tom de verão, algumas flores, ou a abstração da cidade. Estive na aula de literatura do outro lado da avenida. Estourei o tempo para o meu turno. A cabeceira de minha mãe. Na grande entrada do hospital, porta automática, hall com piano, jardim interno, identificação e crachá, imagino a voz longínqua da mãe reprise de uma tomada cinematográfica:
“Só agora você chega? Qual escritor maldito capturou esse professor, que por sua vez contaminou os alunos, para fazer você se atrasar?”
A mãe quer ir da cama para a cadeira de rodas e passear no jardim interno.
“Vou por um xale”, digo.
“Não, ta calor”, diz a irmã.
“Mas esfriou”.
“Ela sente calor”.
“Ela não deveria se expor por causa da baixa resistência”.
Me rendo. Me rendo às polêmicas inúteis e constantes. Ao avanço das enfermidades incontroláveis. Não, às enfermidades não. Cubro suas pernas inválidas com um lençol e deixamos o quarto. A recomendação nos alcança no corredor:
“Cuidado para não prender o lençol na roda”.
Seguro o rascunho do dia anterior com o acréscimo de algumas linhas. Ela fala da tia X que não veio e da Y que veio. E de como a tia Y administra mal as questões financeirofamiliaremotivas.
Enfermeiros sabem muito. Puxa, estica, vira e esvazia. Ouvem atentos sobre os agravamentos ou recuos de um sintoma e, pacientemente, não respondem as questões que deveriam ser dirigidas aos doutores, enquanto desprezam as luvas de látex na lixeira.
“Quanto tempo vai demorar pra eu voltar a andar?”
Eles sabem de doentes e não de doenças. Ela gosta dos enfermeiros bonitos. A beleza a engana. A faz pensar que há harmonia na Terra, que células, neurônios e sistema circulatório estão relacionados simetricamente com as coisas belas e externas. Que existe a mimese. A contaminação para o bem. Tudo fluirá com aberturas de luz depois da tempestade, uma criança abrirá o presente com olhos resplandecentes, orgasmos virão (em mulheres mais jovens do que ela) em ondinhas intermináveis.
doutor por saber das doenças sorri mais frio, mais breve, com os contornos dos sorrisos, mais lodosos. Por saber delas enrola e desvirtua a conversa.
“Enfermeira, quando virá o doutor?” Pergunto.
O Dr. F pouco entra no quarto. Está há 13.000 pés. Destino? A recepcionista não disse. Vai adquirir mais conhecimento e aproveita pra levar a família. A TV pequena transmite alguma coisa que não prende o interesse de uma mosca. Se existissem moscas em hospitais. Levanto-me e olho entre as ripas largas e permanentes da janela. Janela anti-suicídio. Vejo o jardim externo, a avenida, e o outro lado da avenida. Eu teria alguns anos a menos. Estaria com o professor H esperando o voo para a terra do escritor importante. Visitaríamos o café que ele freqüentava. Estaríamos felizes com nossa pouca bagagem e ligeiramente embaraçados por nos conhecermos tão pouco. 13.000 pés dariam um jeito. Entra a moça da limpeza, faço uma aproximação forçada.
"Oi, vou recolher o lixo.”
A mãe quer virar de lado e aperta o alarme. Eles demoram e ela fala mal da enfermagem de A a Z.
"Cheguei, vamos lá?”
“É você, linda! Que bom, não agüentava mais.” Eles tentam distraí-la relatando o mundo exterior. Dizem que haverá uma manifestação hoje. Dizem que...Nada importa lá fora.
Em outros momentos anima-se com os pequenos prazeres. Um plano improvável de visitar uma cidade. Outras cores nas paredes. O sabor dos molhos que acompanham pastas ou folhas amargas. Hoje faz sol. Sou devota de Apolo. Ela espera um temporal de ventos que destelham. Escurecimentos, uivos, encharcamentos. (Um homem entra na estreita loja de importados. Desvia de cacarecos e marcas de perfume e depara-se com a moça que observa os dinossauros. Ela mata o tempo enquanto a chuva não cessa. Um de seus ombros sustenta os cabelos amontoados, o outro apenas a umidade. Esbarrões e amassamentos. Clientes casuais acabam comprando). Um bônus imaginativo de experiências.
Hospícios, hospitais, presídios. Pequenas ilhas ladeadas de cidade. Ilhas com características que se confundem. O doente está preso, o louco está doente. Ilhas desertas de areias e luares. Ela terá alta. Não que esteja curada. É um intervalo entre os ciclos. Terei uma briga com K, L e M para conseguir uma vaga para o próximo ciclo. Incompetência deles. É com jeitinho que se consegue, eu esqueço. Os pragmáticos nunca entenderão a alma dos revoltados. Aí, eu, Djin, irei levá-la mais uma vez à ilha dos enfermos com euforia incomum para estes tempos. Euforia pela conquista de uma vaga. Euforia que não cabe na realidade.
Navegamos pela cidade até o apartamento. A tia que vive com ela teve um descontrole. Difícil transformar a rotina dos dias saudáveis. O doutor U errou com a mãe lá no começo. No cartão de visita estavam relacionados todos os seus títulos. Disse que a cirurgia traria de volta a sensação das pernas. Os homens disseram para a tia N desde quando era muito jovem, e disseram. No amor e nos negócios. Talvez ela tivesse ouvido os seus próprios dizeres. É toda nervos que se retesam e expandem para além das fronteiras do corpo e da convivência. Trabalho de alpinista este meu de retirar do abismo o estigma da família. A queda da casa.
Coleciono recortes de eventos. O escultor, a peça, a palestra, o vernissage. Passam as horas, os dias, jogo os recortes vencidos e seleciono outros. Um mar de apelos. Retomo o meu lugar nas linhas que crescem no ritmo das tardes lentas de uma cabeceira. Linhas que diriam. Linhas de voo.
sanset_10@yahoo.com.br
Poeta, Contista e Jornalista
Eles falam pelas minhas costas. Falam pelas costas. Tecem as falhas do meu caráter. Teatro ou pintura do embate de minhas histórias, com presença psicológica na disposição dos elementos visuais, com a simbologia de um animal ou objeto. Uma cena de cinema, um caveirão e um corpo caído, uma pichação de muro em que se recostam viciados.
Quando o ser A e o ser B se juntam, não são diferentes de C ou D, que falariam pelas costas de A ou B.
Eu, Djin, não gosto de elevadores de duas saídas. Entram tambores com lençóis infectados. Aparelhos. Se der sorte, sobe vazio. Levo um café em copo de isopor para o acompanhante do quarto. Algum parente meu. Bombons, biscoitos, desculpas para sair do quarto. Conversa mole e aprisionamento. Um gosto de coisas finitas. O balcão de enfermagem está deserto e os três painéis de alarme, mudos. No descanso de tela do computador vem escrito: “Feliz Dia das Crianças”. Um ventilador faz o movimento do não. O tempo ficou esquecido.
"No fundo de uma cama”, ela disse. Esse pequeno espaço pantanoso. Submergível. Um milésimo ao dia. Os acontecimentos são para quem vem de fora. Faces coradas. A escolha no armário traz um tom de verão, algumas flores, ou a abstração da cidade. Estive na aula de literatura do outro lado da avenida. Estourei o tempo para o meu turno. A cabeceira de minha mãe. Na grande entrada do hospital, porta automática, hall com piano, jardim interno, identificação e crachá, imagino a voz longínqua da mãe reprise de uma tomada cinematográfica:
“Só agora você chega? Qual escritor maldito capturou esse professor, que por sua vez contaminou os alunos, para fazer você se atrasar?”
A mãe quer ir da cama para a cadeira de rodas e passear no jardim interno.
“Vou por um xale”, digo.
“Não, ta calor”, diz a irmã.
“Mas esfriou”.
“Ela sente calor”.
“Ela não deveria se expor por causa da baixa resistência”.
Me rendo. Me rendo às polêmicas inúteis e constantes. Ao avanço das enfermidades incontroláveis. Não, às enfermidades não. Cubro suas pernas inválidas com um lençol e deixamos o quarto. A recomendação nos alcança no corredor:
“Cuidado para não prender o lençol na roda”.
Seguro o rascunho do dia anterior com o acréscimo de algumas linhas. Ela fala da tia X que não veio e da Y que veio. E de como a tia Y administra mal as questões financeirofamiliaremotivas.
Enfermeiros sabem muito. Puxa, estica, vira e esvazia. Ouvem atentos sobre os agravamentos ou recuos de um sintoma e, pacientemente, não respondem as questões que deveriam ser dirigidas aos doutores, enquanto desprezam as luvas de látex na lixeira.
“Quanto tempo vai demorar pra eu voltar a andar?”
Eles sabem de doentes e não de doenças. Ela gosta dos enfermeiros bonitos. A beleza a engana. A faz pensar que há harmonia na Terra, que células, neurônios e sistema circulatório estão relacionados simetricamente com as coisas belas e externas. Que existe a mimese. A contaminação para o bem. Tudo fluirá com aberturas de luz depois da tempestade, uma criança abrirá o presente com olhos resplandecentes, orgasmos virão (em mulheres mais jovens do que ela) em ondinhas intermináveis.
doutor por saber das doenças sorri mais frio, mais breve, com os contornos dos sorrisos, mais lodosos. Por saber delas enrola e desvirtua a conversa.
“Enfermeira, quando virá o doutor?” Pergunto.
O Dr. F pouco entra no quarto. Está há 13.000 pés. Destino? A recepcionista não disse. Vai adquirir mais conhecimento e aproveita pra levar a família. A TV pequena transmite alguma coisa que não prende o interesse de uma mosca. Se existissem moscas em hospitais. Levanto-me e olho entre as ripas largas e permanentes da janela. Janela anti-suicídio. Vejo o jardim externo, a avenida, e o outro lado da avenida. Eu teria alguns anos a menos. Estaria com o professor H esperando o voo para a terra do escritor importante. Visitaríamos o café que ele freqüentava. Estaríamos felizes com nossa pouca bagagem e ligeiramente embaraçados por nos conhecermos tão pouco. 13.000 pés dariam um jeito. Entra a moça da limpeza, faço uma aproximação forçada.
"Oi, vou recolher o lixo.”
A mãe quer virar de lado e aperta o alarme. Eles demoram e ela fala mal da enfermagem de A a Z.
"Cheguei, vamos lá?”
“É você, linda! Que bom, não agüentava mais.” Eles tentam distraí-la relatando o mundo exterior. Dizem que haverá uma manifestação hoje. Dizem que...Nada importa lá fora.
Em outros momentos anima-se com os pequenos prazeres. Um plano improvável de visitar uma cidade. Outras cores nas paredes. O sabor dos molhos que acompanham pastas ou folhas amargas. Hoje faz sol. Sou devota de Apolo. Ela espera um temporal de ventos que destelham. Escurecimentos, uivos, encharcamentos. (Um homem entra na estreita loja de importados. Desvia de cacarecos e marcas de perfume e depara-se com a moça que observa os dinossauros. Ela mata o tempo enquanto a chuva não cessa. Um de seus ombros sustenta os cabelos amontoados, o outro apenas a umidade. Esbarrões e amassamentos. Clientes casuais acabam comprando). Um bônus imaginativo de experiências.
Hospícios, hospitais, presídios. Pequenas ilhas ladeadas de cidade. Ilhas com características que se confundem. O doente está preso, o louco está doente. Ilhas desertas de areias e luares. Ela terá alta. Não que esteja curada. É um intervalo entre os ciclos. Terei uma briga com K, L e M para conseguir uma vaga para o próximo ciclo. Incompetência deles. É com jeitinho que se consegue, eu esqueço. Os pragmáticos nunca entenderão a alma dos revoltados. Aí, eu, Djin, irei levá-la mais uma vez à ilha dos enfermos com euforia incomum para estes tempos. Euforia pela conquista de uma vaga. Euforia que não cabe na realidade.
Navegamos pela cidade até o apartamento. A tia que vive com ela teve um descontrole. Difícil transformar a rotina dos dias saudáveis. O doutor U errou com a mãe lá no começo. No cartão de visita estavam relacionados todos os seus títulos. Disse que a cirurgia traria de volta a sensação das pernas. Os homens disseram para a tia N desde quando era muito jovem, e disseram. No amor e nos negócios. Talvez ela tivesse ouvido os seus próprios dizeres. É toda nervos que se retesam e expandem para além das fronteiras do corpo e da convivência. Trabalho de alpinista este meu de retirar do abismo o estigma da família. A queda da casa.
Coleciono recortes de eventos. O escultor, a peça, a palestra, o vernissage. Passam as horas, os dias, jogo os recortes vencidos e seleciono outros. Um mar de apelos. Retomo o meu lugar nas linhas que crescem no ritmo das tardes lentas de uma cabeceira. Linhas que diriam. Linhas de voo.
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