quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Uma cultura de mercadores

Gustavo B. N. Costa
arqgustavocosta@hotmail.com
arquiteto e urbanista, mestrando em filosofia pela UFC

O pensamento básico de uma cultura de mercadores. – Vemos agora surgir, de várias maneiras, a cultura de uma sociedade em que o comércio é a alma [...]. O mercador sabe estimar o valor de tudo sem produzi-lo, e estimar-lhe o valor segundo a necessidade dos consumidores [...]; “quem e quantos consomem isso?” é sua grande pergunta. Esse gênero de estimativa ele emprega instintivamente e incessantemente para tudo, também para as realizações da arte e da ciência [...]: em relação a tudo o que é produzido ele pergunta pela oferta e pela demanda, a fim de estabelecer para si o valor de uma coisa [...]: é disso que vocês, homens do próximo século, estarão orgulhosos: se os profetas da classe mercadora tiverem razão em colocá-lo na sua posse! Mas eu tenho pouca fé em tais profetas. (Nietzsche. Aurora §175, 128).

Fortaleza é uma cidade de contrastes. Da reflexão sociológica ao jargão de senso comum, a frase tem marcado as opiniões sobre nossa cidade nas últimas décadas. De fato, sendo a cidade a conformação no espaço de uma sociedade, Fortaleza pode ser compreendida como marcada por relações capitalistas de produção e por uma profunda desigualdade sócio-econômica cujos frutos são a segregação e a exclusão, manifestas na forma de uma cidade dividida entre uma “área nobre” e uma periferia. Perpassando a ambas, homogeneizando esses contrastes, uma crescente apropriação do espaço público pelo privado, tendo como corolário uma avassaladora especulação imobiliária e um profundo desrespeito pelo que é de todos – e “por isso mesmo” de ninguém: “portanto”, apropriável (inferência própria da lógica burguesa). Saímos do público e entramos na era dos “espaços privados de uso comum”.

Mas se os contrastes afligem Fortaleza, atingem também a outras, senão a todas as cidades. Por que então Fortaleza? O que tem de mais (ou de menos) essa cidade, que faz com que os contrastes se mostrem de forma tão explícita? Um breve comentário sobre nossas origens talvez possam apontar o caminho.

Muito embora sua fundação tenha ocorrido no distante ano de 1726 – como entreposto comercial com Pernambuco, Portugal e depois com a Inglaterra – seu desenvolvimento real só veio a acontecer bem recentemente, a partir do último quartel do séc. XIX, com o aumento da demanda pela exportação de algodão. Cidade jovem, portanto, Fortaleza parece não ter tido tempo suficiente para absorver e incorporar a importância de seu patrimônio – histórico e natural – na formação do que se poderia chamar propriamente de tradição, nem de sua relevância para a constituição de uma cultura e o reconhecimento de si como um povo, e não um amontoado de pessoas. Sem querer fazer apologia às tradições – também é prejudicial tê-las em excesso – importa-nos enfatizar o “lastro”, ou ainda a “quilha”, que representam frente à tsunami capitalista. Pela falta desse “lastro”, habitamos uma cidade que não tem qualquer “crise de consciência” em – exemplo mais que sugestivo – implantar o seu Mercado Central de costas para o riacho que lhe deu origem. Este mesmo, mero efluente de despejos e águas servidas.

Só isso, no entanto, não bastaria para explicar a peculiaridade, nem tampouco seus problemas. Com vocação comercial, Fortaleza é também uma cidade de mercadores. E como tal, reflete em si as características da “burguesia comercial” que a dirige. Dos comerciantes portugueses aos mestiços oriundos do interior, passando pelos sírio-libaneses que aqui aportaram (e de lá nada trouxeram), alguns pontos em comum, além do “empanzinamento” que caracteriza o seu tipo físico: a preocupação quase que exclusiva em ganhar o máximo possível, com o mínimo de custos; a redução de tudo o que é público em privado (e com isso torná-lo vendável); o respeito ao outro apenas enquanto “cliente em potencial”.

Como a maioria de seus comerciantes, Fortaleza é uma cidade mesquinha e gananciosa. Como fachada, no entanto, aparece a marca de uma “cidade cordial, que recebe bem seus visitantes” – se forem turistas, claro... Como costumamos dizer: “costume de casa vai à praça”. Então sejamos honestos: se são bem tratados, é porque são bons consumidores. Do contrário, seríamos cordiais também com nossos concidadãos – enquanto concidadãos, e não clientes – e não o somos. Das caixas de som com músicas a um volume e gosto insuportáveis, das buzinas constantes, condicionadas ao menor reflexo, até a conta de restaurante dividida aos centavos com máquinas de calcular, descarregamos no outro toda a arrogância e “má-educação” que acumulamos no trato com aqueles a quem podemos vender algo. Como resultado, temos uma cidade que parece disposta a vender a si própria, enquanto a sociedade vende as suas crianças.

Tradição incipiente e burguesia voraz. E entre ambas um poder público que – com planos diretores que combinam má-elaboração e não-aplicação, com uma fiscalização que oscila entre corrupção e impotência (por liminares mais que suspeitas) – só tem reforçado o quadro atual. Resultado: já não temos uma cidade pitoresca, acolhedora, “bela”. Criamos em seu lugar uma metrópole agressiva, insuportavelmente quente, pouco arborizada e imprópria a pedestres e ciclistas. Do pseudo-gótico em concreto armado de uma catedral anacrônica aos pastiches pós-modernos de um centro cultural desproporcionado; das construções improvisadas às irregulares, implantadas entre ruas estreitas e congestionadas; das vias mal projetadas aos semáforos sob viadutos e em rotatórias: vivemos em uma cidade feia, muito feia, é preciso admitir. Diríamos até, motivo de piada.

Não nos parece difícil, então, compreender porque não conseguimos lidar com problemas que nos parecem tão próximos e preocupantes. É porque, afinal de contas, eles não nos preocupam tanto assim. Pelo menos enquanto não afugentar nossa “clientela”. Afinal, o comércio é nossa alma. Fazendo nossas as palavras de Nietzsche, criamos, legitimamente, uma cultura de mercadores.

4 comentários:

Giovanni Beviláqua disse...

Parabéns pelo texto, Gustavo !
Grande abraço !

Anônimo disse...

Gustavão! Gostei aí do tsunami capitalista. Infelizmente esta é a realidade da nossa cidade, mas acreditamos que um dia poderá ser melhor. Pelo menos é o que esperamos.
Um abraço!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Um verdadeiro tapa na cara, meu caro :( É nessa cidade que nossas filhas irão crescer!? Que triste...que triste...