quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Orbitação

Carlos Emilio C. Lima
carlosemiliobarretocorrealima@yahoo.com.br
Escritor, Poeta, Editor, Ensaísta e Antidesigner.

Dizem que há uma estátua. Ela é redonda. Mata por sua força. Nos deixa exilados do sol, entramos noite adentro para sempre. Não vemos nunca mais o dia. Dizem que a ponta da asa de um anjo roçou a estátua no lugar onde Alfredo pousara a mão. Ela é duramente feita de ar sintético. Todos os olhos do mundo estão concentrados ali, ou o melhor, a visão de todos os olhos do mundo. Mas a visão para dentro, a visão sangrenta. Impossível entrar na bola. Nem com a diminuição do tamanho. E ela faz um zumbido que obstrui a leveza do sono, a finura imperceptível dos sons. Dos sons de um vôo em delícia até ti. E essa bola gira como um quadrado. Um quadrado de aspereza. Alfredo conhece, é o único, ele pousou a mão no pólo da bola. Ela vinha suspensa, perfeita, atrativa, no silêncio do ar de todas as palavras ela navegava até ele. Ele não se conteve, tocou-a. Só foi notar a transformação nele quando não mais contava com as forças vitais em atração.

E começou a sonhar com formigas voadoras de fogo. Falando pelas asas os esses ferventes de uma agonia. De uma dor gigantesca, de um cansaço antes de todo o seu abismo. Alfredo tinha seu abismo. Ele nascia inexoravelmente e sempre da sensação de prazer que sentia ao ver o gelo, o gelo em cubos. Abria a geladeira todas as noites para gozar, com a ponta da língua, com os pedaços simétricos de gelo. Mas aí ele ouvia o zumbido azul, faiscante de cristas muito agudas nascendo do formigamento gelado na superfície da língua. Era a entrada do abismo. Júlio sempre o encontrava desacordado exatamente depois da bola deixar a casa e sumir para Júlio. Júlio não poderia ouvir a bola que só Alfredo conseguia ver. A cozinha tornava-se branca. Tudo ficava em silêncio branco, gelado, o corpo vermelho de Alfredo soçobrado sobre o solo. Aí vinha o tropel. No momento em que Júlio tocava no corpo de Alfredo vinham os motores. Era terrível. O corpo do amigo se preparava, num quase secreto estremecer, para ser filtrado pelo tropel dos motores. Eram milhares, num enxame, sedentos de sua nudez.

Motores sísmicos sobre a carne, assaltando-a, privando-a do movimento de sangue nas veias, nos ductos, da irrigação da memória. O corpo estrebuchava num imenso gemido, gemido de raízes velhas, desfibradas, lento como um segundo - o corpo chorava porque vinha pelo encarnado das vozes internas, pelo ar encanado do medo, vinha parado navegando por dentro do mar dos ruídos dos motores sucessivos, inevitáveis, feitos de louça e éter, motores-espíritos vertiginosos. E a soma de todos eles era a bola intocável, invisível para Júlio. Dizem todos os sábios a que tivemos acesso que a bola, a tal estátua redonda, é feita de números, que o número oito pulsa no centro como um caracol. Recoberta de palavras numéricas ela esconde a cifra mais verde do amor em seu centro de sucos, de assovios, de gritos. Parece-se com a cabeça de um homem de gelo, gelo que não se desfaz ao sol.

Há evidentes histórias, mordiscações incipientes sobre o tema, trevas de todos os xis zunidores, tudo circula em torno da bola que naufraga ritmicamente Alfredo todas as noites, todos os dias. Júlio, quando ele recobra os sentidos, repete ao amigo sempre as mesmas palavras. Mas Alfredo reconhece que aquelas palavras de Júlio estão saindo de dentro da bola, que tudo que ele lhe diz são frases que escapam do cerne esférico do astro perseguidor. Mas o que Júlio diz, na foice de sua respiração agudíssima, num grito é. Alfredo, pare de contar os números da bola. Esqueça-os, eles não existem. Mas o amigo, ainda com o corpo esquecido, remoto, como se fosse apenas uma voz cintilante de medo adormecendo os membros de susto e tensão, repele o significado da frase, não escuta o que ele diz, sempre sempre se sente dentro da bola que Júlio também de lá iscou as palavras da busca, que o alfabeto é que desenha a própria geometria do cerne da bola. Do cerne de frio agudíssimo da bola, cerne de sangue e de dor abismal.

Embora os móveis do quarto para onde Júlio já levou Alfredo e o deitou sobre a cama não se pareçam de cobre, embora o piso não tenha a consistência da superfície de um sino, tudo soa muito alto, as formas inteiras retorcem-se como se de guizos de estrelas atordoantes, metálicos mecanismos da geometria da bola. A cadeira azul é um relâmpago, a estante de livros desordenados tem todo o peso espesso e asfixiante da escadaria velocíssimamente dolorosa que leva Alfredo ao centro da bola onde somente ele está navegando, no rastro espantoso dos motores-trovões, na base da nuca desse homem de gelo, imenso como o universo, inabordável como o rio mais antigo da Terra, que ainda existe, ainda existe, ele repete para Alfredo e se põe a cantar. Mas os versos também vêm de algum ponto entranhoso da bola, da caverna dos ecos, da caverna dos ecos da cobra. Os motores, saia de perto, os motores estão vindo novamente, sai de perto de mim, não me toque, deixe que eles passem. Eles têm o calor de uma constelação matemática de animais desconhecidos, desconexos cuja forma e aspecto e ser jamais atacará a direção da consciência.

Eles agora vão me possuir numa nuvem de zumbidos, música infinita, fonte que corta todos os sentidos na base, na nu(n)ca desse homem gigantesco. Porque há mais, e Júlio o sabe como o azul sabe as trevas onde mergulha esférico, num grito divino. É que Alfredo sente-se esse homem de gelo atravessando a tona afiada dos céus. Alfredo não possui mais o corpo que tem. Possui um outro, infinito, e dentro de si mesmo é uma outra pessoa composta pela trituração incessante, navegante, de todo o universo, com cidades espantosas no lugar do estômago, com cavalos mergulhando diretamente no mar, assim nesse giro que suas mãos fazem no ar, nessa vontade de toque, nessa sede de espumas no centro do mundo, no centro de si de todos os seres.

E Júlio vê as mãos desenrolando a fita, a fita-língua-cobra do fundo das águas do sexo em espiral que se esconde trêmula no ar e aciona os motores ao ácido movimento de aproximação. A esfera triangular vai ficando redonda de roldanas, em vagas, em trinados, em zunir, os dedos no tê da tábua da cama onde mais uma vez Alfredo se retorce. Dessa vez é a fixação dos dedos na tábua, que se sentem pregos revolvendo com seu aroma de tato aflitivo o côncavo carnoso da bola. Minhas mãos estão no centro, no ponto da dor lancinante de laços e fitas metálicas, revólveres no fim do mar, minhas mãos como revólveres, milhões de revólveres giratórios aos espelhos, frangalhos de aço, explodidos, liqüefeitos, fundidos em fogo onde minhas mãos aparecem e são esse fogo se espalhando no quarto, mariposa de chamas alimentando-se da cortina em volta de ti. Júlio então fica prisioneiro da orbitação de suas mãos em chamas e essas mãos desprendidas do corpo de Alfredo giram em torno da grande cabeça da tontura de Júlio. Ele grita para que o amigo interrompa a loucura das chamas mas suas têmporas estalam e delas saltam duas bolas de aço que tilintam no chão, rescendendo a navios, ao navio dos verbos de ferro, dos verbos rítmicos de tudo que é duro e intransponível.

Um aroma de mel de ferro dispersa-se no ar já mais gélido pois em fogo nos extremos, frio se casa com chamas que não permanecem imóveis. As duas dores cilíndricas de Júlio vão rolando pelo quarto, aos saltos, como se em busca de leito paralisante de plástico, ao passo que ele lê a tira de fogo que permanece em grande velocidade fixa diante de seus olhos pois ali estão, em estampidos de imagens gráficas, as letras da história de fogo e do frio de Alfredo.

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