sexta-feira, 14 de novembro de 2008
Infância e desejo nas vidas secas
Fernanda Coutinho
fmacout@terra.com.br
Professora de Teoria da Literatura da UFC
Vidas secas, o quarto romance de Graciliano Ramos, narra, como se sabe, a trajetória de uma família pelos duros caminhos de um sertão árido. Aí o inverno é hóspede arisco, sem tempo certo para pousar, como que submetido à vontade de um deus caprichoso. Assim, Vidas secas se coloca sob o signo da expectação, e o olhar de ansiedade de seus personagens perscrutando obsessivamente o céu de um azul sem nuvens dá uma primeira dimensão de um viver pontuado em muito pela aspereza. Não é sempre que essas pessoas experimentam o reconforto de buscar o firmamento e encontrá-lo pontilhado de nimbos, nuvens escuras que, liquefeitas na água benfazeja, podem lavar-lhes as preocupações e fazer com que durmam num sonho de desejos satisfeitos.
Fabiano, sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e Baleia conjugam, porém, o anseio pela chuva com a satisfação de desejos que passam pelo crivo da pessoalidade. Esse aspecto reforça no texto o “sentido do humano” (Octavio de Faria), mais do que os reflexos negativos da interminável estiagem.
Na realidade, Fabiano sonha em ser um outro Fabiano: um vaqueiro de verdade, com um pedaço de terra seu e não “um vagabundo empurrado pela seca”. A Fabiano incomoda tanto a errância quanto a existência postiça: o considerar-se plantado em terra alheia. Daí a história de sua vida ser de preferência uma projeção para um tempo quimérico em que ele e sua família estejam a salvo desses percalços.
Sinha Vitória, é sabido, concentra seu ímpeto desejante em um objeto material: uma cama de lastro de couro, em vez da ossuda cama de varas de todas as noites. Baleia, imaginação à solta, sacia seu apetite com um osso cheio de tutano, colorindo seu delírio de morte com a visão de um mundo coberto de preás. Como se situariam, então, os filhos de Fabiano e sinha Vitória, na esfera do querer levando-se em conta que, habitualmente, o desejo da criança é mediado pela vontade dos pais? Os dois meninos são flagrados pelo leitor em brincadeiras simples com toscos bois de barro, objetos que sua imaginação tem o dom de redimensionar até ao limite do infinito. Contudo, a dimensão lúdica para essas crianças, por onde se infiltra o verdadeiro vetor do desejo, ultrapassa a convivência com os seres de faz-de-conta. Nelas a força da vontade patenteia-se na ânsia de penetrar o desconhecido.
Em “O Menino mais novo”, por exemplo, tem-se um registro da fenomenologia do olhar infantil, o qual, munido de lentes de aumento, tende a heroicizar determinadas pessoas de seu espaço de convivência: nesse caso, a criança lança mão da metamorfose e quer virar Fabiano, tentando emular com ele em suas façanhas de vaqueiro, e chegando mesmo a copiar certos cacoetes de seu modo de andar.
Em “O Menino mais velho”, transparece a criança imbuída do ofício de descobrir o mundo, exacerbando-se nela o espírito indagador. Essa particularidade é explicitada, através de seu desejo de reconhecimento como alguém sequioso de apreender a vida. “Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.”
Para a criança, o inferno revestia-se de uma aura de sortilégio, e assim demandaria um exercício de narratividade da parte de sinha Vitória, o que não chega a acontecer. Mais doloroso que isso, todavia, parece-lhe o fechamento ao diálogo, a mediação frustrada da mãe, que não o conduz nem mesmo ao saber, redundando ainda mais no desencantamento da palavra inferno. Se a princípio essa idéia provoca-lhe pensamentos idílicos suscitados pela sonoridade prazerosa do nome, (“Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.”), ao final, o nome tem um rendimento imagético negativo, liberando em seu pensamento um cortejo de elementos desencontrados que têm, porém, sua lógica definida pelo sentimento da insegurança: “O inferno deve estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.”
Graciliano tem para com a infância uma relação de proximidade, ao longo de quase toda a sua obra, porém, no conjunto de sua produção romanesca, Vidas secas é o livro em que o escritor faz uma abordagem pontual dessa idade, especialmente nos capítulos dedicados aos meninos. Esses trechos específicos empreendem, com maior agudeza, uma avaliação dessa idade como um tempo fluido, em que diferentes estágios se sucedem, cada um deles obediente a uma determinada conformação do imaginário. Por outro lado, fica patente no livro a correlação da força desejante, nutriente da vida, com a energia que brota da infância.
Setenta anos após sua publicação, Vidas secas redefine sua atualidade ao fazer os leitores pensarem o mundo como um lugar de desejo, um espaço inquietante, permeado por um inventário de porquês, desafiador e instigante como costuma ser o pensamento dos meninos.
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Um comentário:
"Cachorra Baleia quer preás"
li esse livro ano passado, é simplesmente maravilhoso a simplicidade da linguagem usada por Graciliamo Ramos, que se abstem dos adjetivos e diálogos. o que mais me marcou foi, sem dúvida, a morte da Baleia, pra mim ela é a personagem mais humana da obra, os meninos sequer têm nomes, os demais quase não falam, se limitam a frases monossilábicas, e o nome Fabiano significa "zé ninguém" (pode consultar o Aurélio), e isso não é coincidência.
Queria aproveitar e parabenizar pelo blog. vejo que é pouco comentado, espero que não veja isso como desmotivação, o "problema" é que os assuntos são tão sério e tão bem fundamentados que é difícil acrescentar ou descordar de algo, no máximo um "ficou ótimo".
Já que estou falando demais, queria falar também do Da Hora. num país onde bunda dá tanta audiência, o Da Hora é quase um milagre... se bem que atualmente a televisão alternativa traz muita coisa boa, TV Assembléia tem uma excelente programação cultural.
Vou ficando por aqui, tô no trabalho, e o patrão não pode me flagrar comentando "bloguinhos". Abraços e parabéns.
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