Airton de Farias
airtondefarias@yahoo.com.br
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará
Há décadas existe na historiografia certa polêmica sobre o local, a data e a quem caberia a "fundação" de Fortaleza e do Ceará. De início, uma historiografia mais antiga considerou a atual Barra do Ceará como o local onde "nascera" a capital cearense, atribuindo o "feito" não a Pero Coelho e a seu forte de São Tiago, mas a Martim Soares Moreno e ao forte de São Sebastião – daí, inclusive, o livro Iracema, de José de Alencar, no qual os "amores" do "Guerreiro Branco" Martim e a Índia teriam dando "origem" aos cearense, numa visão romanceada.
Nos anos 1960, entretanto, essa concepção foi questionada pelo livro Matias Beck – Fundador de Fortaleza, de Raimundo Girão. O importante historiador cearense, baseado em argumentos lógicos e sólidas fontes, apontou que o núcleo colonizador de Martim Soares Moreno na Barra do Ceará não teve maiores conseqüências – o forte de São Sebastião fora conquistados pelos holandeses em 1637 e destruído pelos indígenas em 1644; para Girão, o núcleo original da cidade estaria, sim, no forte Schoonenborch, construído em 1649 por ordem do capitão flamengo Matias Beck – os holandeses então dominavam Pernambuco e estendiam seus domínios mais para o norte. Foi em torno do forte – reconquistado em1654 pelos portugueses e renomeado para Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, no local onde hoje se encontra a 10 Região Militar – que surgiria ESPONTANEAMENTE a atual capital cearense.
A tese de Girão provocou enorme polêmica, sendo ardorosamente combatida pelos conservadores e católicos, os quais não viram com bons olhos a tese da primazia holandesa, não pela nacionalidade em si, mas por um principio de civilização, pois, caso aceita esta nova visão histórica, se atribuiria a um evangélico, um calvinista, a “fundação do povo cearense”. O tema ainda sucinta tantos debates, que se comemora como data de aniversário da capital, não a da construção do forte, mas a da elevação do povoado à condição de vila, em 13 de abril de 1726, um episódio, portanto, “católico e português”.
Passamos ao largo dessas polêmicas sobre “descobridores”, “fundadores” e coisas afins! Na realidade, as tentativas de conquistas feitas por portugueses e holandeses entre 1603-54 não deixaram marcas importantes, não sendo possível falar de um marco zero para a cidade em datas anteriores. Além disso, lusos e flamengos não vieram ao Siará Grande para fundar uma cidade, mas para explorar a terra, o que foi feito, aliás, com a morte de milhares de nativos. Fortaleza surgiu espontaneamente, não sendo fruto da ação intencional de uma única pessoa. Preocupar-se com um dia exato para ser o “ponto zero” de um país, estado ou município não passa de uma ação burocrática e um mito de origem; como criação histórica de longa duração, os países, estados e cidades não são construídos propriamente num ato fundador e heróico, mas na sucessão do tempo e com esforço anônimo de várias gerações.
O Ceará como o conhecemos hoje é o produto da fusão de vários povos, sociedades e cultura, e do trabalho, do esforço, da dor e da alegria de milhares de pessoas ao longo dos séculos – assim, não podemos dizer que no século XVII o estado já lá estivesse, a esperar as naus dos europeus para ser “descoberto”. O Ceará para ser e existir precisava ainda de muito para acontecer: duras lutas, guerras, confrontos, aqui e ali uma traição, uma derrota, uma frustração, uma façanha, uma epopéia; necessitou-se de audácia, força, criatividade e bastante, bastante trabalho.
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