segunda-feira, 22 de novembro de 2010

McCartney: reflexos

Rodrigo C. Vargas

A música com os Beatles assumiu o papel que antes pertencia à literatura, o de liderar os miseráveis. Até aquele ponto, a música transitava entre duas possibilidades: pequenos grupos primitivos e a elite wagneriana. O rock feito por aqueles garotos mudou o percurso dos mitos. Era possível ser um. Mesmo assim, algo permaneceu. O fenômeno da cópia dos cabelos compridos e dos terninhos aconteceu também com os jovens europeus do ano de 1774. Inspirados na obra Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, vestiam-se como a personagem do livro, calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul. A arte sempre influenciou a vida das pessoas.

Essa noite um evento aproximou algo que para mim nunca existiu. Acabei de ver pela televisão Paul McCartney em São Paulo e suas letras me convenceram que não há como medir gênios, como também não há como não compará-los. Arrisco. McCartney compôs provavelmente as letras mais tocantes do último século. Sua sensibilidade lembra o poeta francês Arthur Rimbaud. Apesar de estarem separados pelos estilos e por um século, os dois se encontram incontáveis vezes naquilo que fizeram ou continuam fazendo de melhor, surpreender a memória afetiva de muitos.

Rimbaud foi abandonado pelo pai quando tinha seis anos. McCartney perdeu a mãe aos 14. Aos 13 anos Arthur publicou seus primeiros versos e já era considerado um poeta. Aos 17 Paul já era um Beatle. Verlaine atirou duas vezes. Lennon foi assassinado. Fatos que margearam suas experiências externas, obras incríveis.

Vênus Anadiômene – Arthur Rimbaud

Como de um verde túmulo em latão o vulto
De uma mulher, cabelos brunos empastados,
De uma velha banheira emerge, lento e estulto,
Com deficits bastantes mal dissimulados;

Do colo graxo e gris saltam as omoplatas
Amplas, o dorso curto que entra e sai no ar;
Sob a pele a gordura cai em folhas chatas,
E o redondo dos rins como a querer voar...

O dorso é avermelhado e em tudo há um sabor
Estranhamente horrível; notam-se, a rigor,
Particularidades que demandam lupa...

Nos rins dois nomes só gravados: CLARA VÊNUS
- E todo o corpo move e estende a ampla garupa
Bela horrorosamente, uma úlcera no ânus.


Eleanor Rigby – Paul MacCartney

Eleanor Rigby
Apanha o arroz na igreja onde um casamento foi feito
Vive em um sonho
Espera na janela
Vestindo o rosto que ela guarda em um jarro perto da porta
Para quem é isso?

Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas vem?
Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas são?

Padre McKenzie
Escrevendo as palavras de um sermão que ninguém ouvirá
Ninguém chega perto
Olha para seu trabalho
Remendando sua meias à noite quando não há ninguém lá
O que ele protege?

Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas vem?
Todas as pessoas solitárias
De onde todas elas são?

Não são apenas palavras. Dizem algo que por mais que eu reconheça não fazer parte de mim, está lá. Remoendo e cuspindo pequenas lágrimas invisíveis aos olhares, cortantes. Homens maiores que seus defeitos e menores que suas qualidades. A única diferença entre eles é o fim. Rimbaud desistiu da literatura e morreu ainda jovem, aos 37. McCartney, bem, let it be.

2 comentários:

Ilana Ramos disse...

Ótimo texto! Lindíssima a comparação de Paul com Rimbaud, Rodrigo. Embora a vida de Rimbaud ter sido mais suja, sem a classe inglesa de Paul, os dois sabiam brincar com as palavras como poucos.
Aproveita o que você tem de melhor, moço.
Beijão.

Mayanna Serpa disse...

Gosto do seu jeito de escrever, a forma que une pessoas, que são diferentes e iguais ao mesmo tempo, gosto de como as deixa bem mais proximas quase que sendo complementos uma da outra e inspirando cada uma em seu tempo! Muito legal e muito atrante a forma de ressaltar pensamentos e nos fazer pensar ainda mais sobre coisas e pessoas. PS: Deixe de ser chato com a minha pessoa hehehehehehehe