quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Baile de máscaras

Edward Pimenta
edwardpimenta1974@gmail.com
Jornalista e escritor

Livro inacabado de Truman Capote usa nomes falsos para satirizar socialites e celebridades. Com o recurso, o autor ressuscita o "roman à clef" do século 17

Truman Capote se tornou Truman Capote quando publicou A Sangue Frio, em 1966 - uma eletrizante reportagem literária sobre o assassinato brutal de uma família no Kansas. Depois disso, Truman Capote nunca mais foi Truman Capote. Abusou do álcool e das drogas, a qualidade de seus textos baixou vertiginosamente, e o autor passou a criar teorias absurdas para justificar seus sucessivos fracassos. Dentre as tentativas malogradas que Truman Capote empreendeu para voltar a ser Truman Capote destaca-se o romance inacabado Súplicas Atendidas, que acaba de ser lançado no Brasil. A foto que ilustra a capa da edição brasileira - que você pode ver aí ao lado - foi tirada no antológico baile de máscaras que o escritor americano promoveu para celebrar o sucesso de A Sangue Frio. Na época, vivendo seu auge, ele assinou um contrato com a editora Random House para escrever um retrato de tintas proustianas da alta sociedade americana. Esse livro - Súplicas Atendidas - só viria a público nove anos mais tarde, em pílulas. O romance começou a ser publicado em capítulos em 1975, na revista americana Esquire. Capote, no entanto, interrompeu a empreitada logo no começo. Apenas em 1987, três anos após a morte do escritor, os capítulos foram reunidos num livro - que só agora ganha edição brasileira.

Quando os primeiros textos saíram na Esquire, Súplicas Atendidas provocou furor. O romance estava longe de apresentar os altos padrões proustianos pretendidos pelo autor. Parecia-se mais com o baile de máscaras de 1966 - e este era exatamente o motivo da celeuma em torno da obra. No livro, Capote retratou várias figuras conhecidas da sociedade americana, mas com nomes falsos. Apesar do artifício, os retratados se reconheceram - e estrilaram. O caso mais terrível foi o da socialite americana Ann Woodward, que havia matado o marido e criador de cavalos William Woodward Jr. O episódio teria sido um acidente, e a arma, um rifle de caça. No livro, Capote conta essa história, muda o nome da personagem para Ann Hopkins e diz claramente que ela é uma assassina. Transtornada, a Ann Hopkins verdadeira suicidou-se com uma overdose de antidepressivos. O casal formado pela atriz Nedda Logan e o escritor e diretor de cinema Joshua Logan também é retratado desfavoravelmente. Num diálogo entre duas sociliates, uma delas pergunta: "Como foi a festa dos Logan?". A outra responde, ironicamente: "Ótima, para quem nunca tinha ido a uma festa antes". Possessa, Nedda disse: "Aquele serzinho desprezível e sujo [Capote] nunca mais vai colocar os pés nas minhas recepções".

A principal inspiração de Capote em Súplicas Atendidas foi exatamente esta: as festas que ele passou a frequentar depois que se tornou uma celebridade. "O que esperavam de mim? Eu sou um escritor e uso qualquer coisa que estiver ao meu alcance. Todas essas pessoas pensavam que eu estava lá apenas para entretê-las?", disse Capote na época. O romance tem como protagonista o fictício P. B. Jones, que, como tudo no livro, não é tão fictício assim. Alpinista social, ele é uma espécie de alter ego "lado B" do autor. Algumas celebridades da época aparecem retratadas com nomes verdadeiros, e Capote é igualmente impiedoso com elas. A escritora Dorothy Parker e o ator Montgomery Clift - que já haviam morrido quando os capítulos do romance saíram na Esquire - aparecem em algumas cenas. Em uma delas, Dorothy, na presença de duas atrizes, se derrete diante da beleza de Clift e, enquanto acaricia o rosto do ator, usa termos chulos para se referir ao fato de o astro hollywoodiano ser provavelmente homossexual.

A Chave

Além de provocar confusão na alta sociedade americana, Capote ressuscitou, com Súplicas Atendidas, o gênero do roman à clef. O termo designa livros em que personagens reais aparecem com nomes trocados, e o leitor necessita de uma chave (clef, em francês) para entender o que se passa. Trata-se de uma tradição que remonta à França do século 17, na qual os integrantes dos salões literários queriam apimentar suas histórias com a inclusão de representações ficcionais de pessoas conhecidas da corte de Luís 14. Como literatura, o grande problema do roman à clef é que muitas vezes o jogo de identificar quem é quem se torna mais atraente do que o livro em si. O que não impediu que muitos autores de talento e prestígio tenham usado o recurso de esconder personagens reais sob nomes falsos em suas obras.

Ao analisar a obra do alemão Thomas Mann, o crítico George Steiner observa que o músico Arnold Schoenberg é claramente o modelo do protagonista de Doutor Fausto, Adrian Leverkuhn - e Steiner diz ver ecos do filósofo Theodor Adorno no demônio que, no livro, rouba a alma do compositor. Os romances Um Gosto e Seis Vinténs (1919) e O Destino de um Homem (1930), do escritor britânico Somerset Maugham, retratam veladamente passagens das vidas do pintor Paul Gauguin e dos romancistas Thomas Hardy e Hugh Walpole. Um tipo mais comum de roman à clef pode ser encontrado em livros como Contraponto (1928), de Aldous Huxley, e Os Mandarins (1954), da francesa Simone de Beauvoir, nos quais os personagens disfarçados são imediatamente reconhecidos, mas apenas por um círculo de intelectuais próximo aos autores. No primeiro caso, são os escritores britânicos D. H. Lawrence e Middleton Murry, que detestou se ver retratado como o inescrupuloso editor Denis Burlap. No segundo, aparecem, entre outros autores, o francês Jean-Paul Sartre e o americano Nelson Algren - respectivamente marido e amante de Simone, que também retrata a si própria no livro.

No Brasil, um dos primeiros romans à clef é A Conquista (1899), de Coelho Neto, uma representação da vida boêmia e literária do Rio de Janeiro durante a campanha da abolição da escravatura. Personagens históricos aparecem sob nomes ligeiramente alterados: Octavio Bivar, por exemplo, é o poeta Olavo Bilac. Mais recentemente, o romance Valsa Negra (2003), de Patrícia Melo, expõe os tumultuados bastidores da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que já foi dirigida por seu marido, o maestro John Neschling. Em nenhum desses casos, no entanto, se chegou ao nível de ironia e indiscrição de Truman Capote.

O autor de Súplicas Atendidas era colaborador da revista Interview, de Andy Warhol, e ambos conheciam bem o interesse da época pela vida pessoal das celebridades. Nesse contexto, um roman à clef era a salvaguarda de que ele precisava para expor à apreciação pública a vida pessoal de figuras ilustres. A jornalista Tina Brown, que editou em épocas diferentes as duas principais revistas do jornalismo literário americano - The New Yorker e Vanity Fair -, teceu críticas a Súplicas Atendidas, dizendo que o autor, ao recorrer ao roman à clef, havia perdido a chance de fazer uma boa reportagem de não ficção, na linha de A Sangue Frio.

Trata-se de uma crítica pertinente. Súplicas Atendidas, no entanto, tem, sim, virtudes literárias, assentadas no humor e na poderosa verve de Capote. A história e os personagens se sustentam mesmo que o leitor de hoje não tenha mais a chave para desvendá-los. Um bom exemplo é a descrição da primeira vez em que um velho homossexual do ramo dos cosméticos avista um garoto que deseja: "Ao ver Denny, ele deve ter se sentido como um colecionador de porcelana que entra num bricabraque vagabundo e descobre um conjunto 'cisne branco' de Meissen: o espanto! O calafrio da ganância!". O achado é típico de um escritor hábil como Capote, que abusa de charme e malícia como recursos de estilo.

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