segunda-feira, 26 de abril de 2010

E Shakespeare criou o mundo




Jerônimo Teiveira
jeronimoteixeira@abril.com.br
Jornalista

A obra do poeta abrangeu virtualmente todo o conhecimento de sua era de inovações. Um livro recém-lançado examina uma faceta proeminente dessa rica literatura: sua dimensão econômica. O autor de Rei Lear, afinal, morreu rico

O adjetivo "comercial", quando usado para qualificar um romance, uma música, uma peça de teatro, carrega conotações depreciativas. O senso comum consagrou a noção de que o grande artista não se vende, de que sua obra deve mirar apenas a imaterial consagração dos séculos. A qualidade discutível da maioria dos best-sellers e blockbusters ajuda a reiterar esse preconceito – que, no entanto, é facilmente desmontado com um único exemplo histórico: William Shakespeare. O autor de Hamlet e Rei Lear foi um dos mais populares dramaturgos de seu tempo. E seu sucesso não foi acidental: sua carreira nos palcos de Londres, na virada do século XVI para o XVII, foi fruto de investimento cuidadoso e bem planejado. Ele não foi apenas ator e dramaturgo: foi um empreendedor do teatro. Ao morrer, na provinciana Stratford-upon-Avon, em 1623, Shakespeare era um homem rico. A dimensão econômica de sua vida e obra está bem esmiuçada em um livro que acaba de ser lançado: Shakespeare e a Economia (tradução de Pedro Maia Soares; Jorge Zahar; 232 páginas; 36 reais) traz dois ensaios – um de autoria do brasileiro Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, e o outro do americano Henry Farnam (1853-1933), professor de Yale e pioneiro dos estudos econômicos sobre Shakespeare – que examinam o alvorecer da economia de mercado na Inglaterra ao tempo do bardo, e o modo como a nova realidade capitalista se imprimiu em sua obra.

Não deve surpreender que os cálculos de juros, a depreciação monetária e outras realidades comezinhas do mundo financeiro tenham ingressado na literatura de Shakespeare. Como nenhum outro escritor anterior ou posterior, o autor de Macbeth concentrou virtualmente toda a imaginação e todo o saber de seu tempo na vasta síntese artística que é seu teatro. Da filosofia política de Maquiavel ao conhecimento miúdo de flores e ervas, da geografia das províncias inglesas à navegação pelo Novo Mundo, Shakespeare abarca tudo e todos. Sua obra, que expandiu a literatura inglesa e a imaginação humana, é antes de tudo produto do imponderável gênio individual – mas também é fruto de uma conjunção de circunstâncias históricas favoráveis. Quando nasceu, em 1564, Elizabeth I, última monarca da dinastia Tudor, ocupava o trono havia seis anos. Ela instaurou uma relativa paz religiosa no país até então violentamente dividido entre anglicanos e católicos, consolidou o poderio naval inglês e estabilizou, pelo menos em parte, um sistema financeiro combalido pela inflação. A corte também se tornou uma grande incentivadora das artes, incluindo o teatro. Nicholas Rowe, biógrafo de Shakespeare que escreveu no século XVIII, afirmou que a rainha teria encomendado ao dramaturgo a peça As Alegres Comadres de Windsor, pois desejava ver o bonachão Falstaff, personagem de Henrique IV, figurar em uma comédia. A anedota é provavelmente apócrifa – não ficaram registros documentais das predileções teatrais de Elizabeth.

James I, que assumiu o trono inglês depois da morte de Elizabeth, em 1603, seguiu incentivando as letras e as artes. A chamada Bíblia do Rei James – uma tradução ecumênica das escrituras, comissionada pelo monarca – é considerada um dos pilares da língua inglesa moderna (ao lado, é claro, da obra de Shakespeare). O rei também estendeu sua proteção à companhia teatral de que Shakespeare era sócio. A King’s Men, como então passou a se chamar, atuava no legendário Teatro Globe, mais popular, com ingressos baratos para os pobres que se dispunham a ver as peças em pé, e no Blackfriars, recinto fechado que atendia a um público de maior poder aquisitivo. A patronagem do rei era mais política do que financeira, como mostram os números levantados por especialistas que Gustavo Franco apresenta em seu ensaio: da receita total de 1 925 libras que a companhia de Shakespeare arrecadou no período de 1603 a 1608, as apresentações na corte responderam por apenas 50 libras (para se ter uma ideia do que isso representava então, considere-se que um artesão ou um professor ganharia entre 15 e 20 libras por ano). O grande milagre cultural do tempo de Shakespeare era o público, que acorria em massa para ouvir os monólogos metafísicos do príncipe Hamlet ou as maquinações perversas de Iago. Em uma Londres de 250 000 habitantes, estima-se que 30 000 – mais de 10% – frequentavam os teatros nos fins de semana. "O autor mais erudito de todos os tempos era popular. Essa é uma experiência histórica extraordinária, que ataca de frente a mitologia do antagonismo entre arte e mercado", disse Gustavo Franco.

O economista compara os atores e empresários do teatro de então a grandes aventureiros como o navegador Francis Drake, que se arriscavam nos mares para pilhar navios espanhóis e portugueses: eram todos investidores de risco (aliás, Shakespeare retrata com acuidade os empreendimentos marítimos e suas incertezas na peça O Mercador de Veneza). Essa nova atmosfera de aventura e risco imprime-se até na linguagem do poeta, rica em metáforas econômicas. Em Shakespeare, há sempre mais do que a primeira leitura sugere. Tome-se, por exemplo, o final do soneto 144: "Até que o anjo do mal expulse o anjo do bem". O sentido parece transparente: mesmo quem não acredita em anjos sabe bem que criatura é essa. No entanto, o verso pode incluir um trocadilho financeiro: o "anjo" era uma das várias moedas circulantes no caótico sistema monetário que Elizabeth herdou dos antecessores. O "anjo mau" seria a moeda ruim, que teve seu metal raspado, expediente comum em uma época na qual o peso da prata poderia pagar mais do que o valor nominal da moeda.

A par do surgimento da economia de mercado, outras tantas revoluções transcorriam ao tempo de Shakespeare – examinadas com rigor em uma impressionante biografia intelectual do poeta lançada no ano passado na Inglaterra: Soul of the Age, de Jonathan Bate, professor da Universidade de Warwick. Em 1579, por exemplo, o geógrafo Christopher Saxton publicou o primeiro mapa preciso da Inglaterra e do País de Gales, o que deu a seus habitantes um novo sentido de pertencimento à nação. O mapa do universo também mudava: o astrônomo Thomas Digges – enteado de um amigo de Shakespeare – começava a divulgar na Inglaterra o modelo heliocêntrico de Copérnico. Bate examina as implicações políticas da ideia de que a Terra orbita em torno do Sol, e não o contrário: acreditava-se então – e essa ideia tem eco em algumas peças de Shakespeare, como Troilus e Créssida – que a ordem política, com o monarca no centro do estado, espelhava a ordem celeste. Mexer nesses modelos era mexer com o poder. Não estranha que a legitimidade dos reis e a possibilidade de que a coroa seja usurpada estejam em causa em tantas tragédias de Shakespeare.

Não se sabe como o vírus da lite-ratura e do teatro terá contagiado o provinciano Shakespeare. Ao contrário de dramaturgos contemporâneos como Christopher Marlowe, ele nunca frequentou uma universidade. Não conviveu com a cultura de questionamento e inovação que então fermentava em centros como Oxford. Provavelmente inspirado pelo realismo político (outros diriam: pelo cinismo) de um Maquiavel, Marlowe criou heróis humanistas, contestadores da religião e da ordem monárquica – mas monstruosamente egoístas, como o protagonista da tragédia Fausto, que acaba engolido pela boca do inferno. Shakespeare, observa Bate, era mais conservador: o novo homem que emerge de suas peças ainda respeita a estabilidade da velha ordem. Mas sua obra é mais densa e rica do que a de qualquer contemporâneo – e do que a de qualquer sucessor. Shakespeare não foi superado pelo mundo que nascia então: ele ajudou a criá-lo.

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