quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O incômodo poético de Lynch: um gênio autoral sobrevive no cinema americano

Chico Lopes
franlopes54@terra.com.br
Escritor e crítico de cinema

Vejo filmes sem cessar por necessidade profissional e por paixão. Por uma fixação acentuada (e sempre crescente, à medida em que vejo e revejo os filmes) pelo cinema americano dos anos 30, 40 e 50 (meus ídolos máximos são Wilder e Hitchcock), costumo deixar de narizes franzidos gente de nova geração, pós-Spielberg, que acha meio excessivo meu culto ao passado. Mas, há muito tempo sou devoto e espectador deslumbrado, sistemático, de um diretor norte-americano surgido nos anos 80: David Lynch.

David Lynch entrou em minha vida, como na de muita gente, em 1987, com “Veludo azul”. O filme foi muito comentado, muito visto e revisto, mas, se me perguntarem por que me parece tão grande e essencial, não sei bem que responderei. Tentarei traduzir, em palavras, aquele passeio entre Jeffrey (Kyle MacLachlan) e Sandy (Laura Dern) pela noite da cidadezinha de Lumberton, quando, andando pelas ruas, estão na verdade andando em ondas de som da trilha sonora de Angelo Badalamenti (que, para mim, tornou-se tão importante quanto Bernard Herrmann, com suas trilhas para Hitchcock, no cinema clássico).

Lynch nos dá o céu, as árvores, a noite. E está tudo lá, por alguma misteriosa razão – a vibração enigmática, terrível, cruel, essencial, de todo o filme, de toda a vida. Uma árvore batida pelo vento, agitando-se silenciosamente. Fomos precedidos pela abertura em que uma cortina de veludo amassado, azul-cobalto, se contrai, palpita e pulsa, e, à altura do passeio, ficamos com o azul-negro profundo da Noite.

Como Lynch consegue esses momentos? Mistério de Mestre. Os arrepios que sabe provocar em nós parecem os mais decisivos, os mais fundos. Cutuca-nos em alguma zona de vulnerabilidade extrema, como se nos fizesse roçar as paredes uterinas contra as quais nos debatemos para encontrar uma fresta, uma pequena janela para os mistérios tremendos que há lá fora. Estamos encapsulados em alguma jaula cósmica, esperando o dia em que romperemos as grades. Mas, tememos o Horror da desmesura, que poderemos conhecer nesse mesmo dia. Para onde irão nossas precárias identidades?

Com seu gosto pela Pintura, pela Música e por um Cinema que não se curva ao comércio senão de uma maneira muito própria, visceralmente original, esse cineasta, nascido em Missoula, Montana, em 1946, é ícone indiscutível para alguns e desafeto para muitos. Há gente que o considera maneirista, charlatão e criador de enigmas baratos. Lynch, acredito eu, dá de ombros. Isso é apenas a sua persona publicitária. A de Hitchcock, a uma certa altura, era tão comercialmente desfrutável e discutível que ninguém achava que o Mestre do Suspense era o que era, autor de grande cinema.

Doce veludo mortuário

“Veludo azul” é ainda seu filme-referência, por parecer condensar todos os seus temas, toda a sua estética. Mas o Lynch anterior, de “Eraserhead” e do mais acessível “O homem-elefante”, vinha incubando aqueles temas, aquelas imagens perturbadoras, para jornadas de cinema comercial que, na verdade, incomodam porque são é autorais, num híbrido desafiador para a indústria, para Hollywood, para todos. “Veludo azul” é um entroncamento de paradoxos, de forças tenebrosas e dúbias doçuras, alguma coisa como o encontro de Edgar Allan Poe com Sandra Dee, testemunho de que Lynch soube encarnar o melhor de Hitchcock, de Buñuel, do cinema “noir” e dos melodramas de Douglas Sirk nos anos 50, fazendo, iconograficamente, a fusão do realismo sombrio do pintor Edward Hopper com os quadros otimistas e rosados da América de Norman Rockwell. Ele fez Bosch entrar em cena, no interior da América careta. O fragmento de veludo mordido por Frank (Dennis Hopper) é um fragmento de céu da Virgem, algo de maternal que o perturbado seqüestrador de Dorothy (Isabella Rossellini) precisa, para dar à sua estrutura psíquica inteiramente cambaleante algum peso de equilíbrio. Ele precisa, literalmente, mamar na mãe que espanca e avilta. Naquele pedacinho de pano moram o Sexo e a Morte. E de símbolos assim o filme está cheio. E quem esquecerá do que Lynch fez com o rock-balada “In dreams”, de Roy Orbison, tornando aquele sentimentalismo todo uma coisa decididamente sinistra?

O sucesso da telenovela “Twin Peaks” perturbou a condução lógica da carreira de Lynch, e o fez parecer desafiador demais para os padrões de cinema americano. Os prêmios de Cannes para “Coração selvagem” (1990) não o livraram da maldição – ao contrário: pareceram acentuá-la, e o filme “A estrada perdida” (1997), radical, pareceu um salto kamikaze, incerto, mesmo para o seu público, habituado aos seus desafios. Para muita gente, nesse intervalo meio límbico do diretor, Lynch era só a lembrança de um “Veludo azul” que afetara a todos no final dos anos 80.

A depuração e o aprofundamento

Mas, quando ele volta, volta em grande forma. Pouca gente viu muita coisa em “História real”, de 1999, e pareceu, aos admiradores de um Lynch mais agressivo, que ele sucumbia ao esquema do tradicional filme de família com a intragável “lição de vida” perpetrada por “ordinary people” que é endêmico na América. Mas, que grande pequeno filme “História real” é!

Richard Farnsworth, que se dispõe a ir visitar o irmão doente em um estado muito distante, cruzando estradas com um carrinho de cortar grama, é um personagem muito forte. A simples chegada de uma chuva e a necessidade de Farnsworth guiar seu carrinho para um abrigo lateral, filmada com lentidão, rende uma cena de uma singeleza de levar às lágrimas.

E em 2001, com “Cidade dos sonhos”, Lynch se depura, Lynch se aprofunda. Esse é talvez o filme mais genial, desafiador e artístico feito no cinema americano nesse início de milênio tão comercial e desidratado. Dá-nos a sensação de uma coisa poderosa, desesperadora, comovente como uma grande elegia contemporânea de um modo que os outros filmes, mesmo os muito empenhados, jamais conseguem ser.

É a história de Hollywood pelo lado de dentro: as dobras reais de um tecido necrosado que sempre se apresenta coberto de lantejoulas. Duas mulheres, a dupla do “Persona” de Bergman dentro de um aparente filme “noir”, e muito belas, Naomi Watts e Laura Harring. Recapitula-se “Crepúsculo dos deuses”, de Wilder, na estrada de Mulholand

Drive, que Lynch considera esquisita, sinistra, bem a seu modo. Recupera-se a “Gilda” de Rita Hayworth, numa operação de empréstimo de identidade que é absurdamente bem feita: colhe-se do espelho uma fantasia, e não há nada, nada neste mundo, que possa garantir a sua estabilidade.

O filme é espantoso, um poema de identidades que se pulverizam e desembocam na morte. Um sonho de fama e estrelato é sua chave aparente, mas, quantas coisas podem ser vistas! Só não o são por quem fica esperando uma solução que o filme não entrega.

Só não o são pelos cegos que esquecem que o cinema é para ser mais sentido que entendido, e que entender, santo Deus, não é assim tão importante – pode ser uma faculdade acessória apenas, e o é, quando nos deparamos com labirintos que exigem de nós, mais do que inteligência, uma certa disposição emotiva e ética de espécie mais rara.

O fato é que uma organicidade superior percorre essa história, mas não é visível para todos. Vai das imagens das duas heroínas olhando para o céu de Los Angeles com as palmeiras em silhuetas até a última cena, quando a mulher de azul pede silêncio no alto do camarote do clube idem.

E alguém já filmou uma mulher morta, como Lynch, naquela cena do encontro do cadáver? O mau cheiro é, ao mesmo tempo, poesia, estamos diante da carniça de Baudelaire: encontrou-se a realidade, desmontou-se um sonho enorme. Mas um romantismo desenfreado segue pulsando, como se o Sagrado não houvesse sido perdido. E temos o homem mais monstruoso do mundo, situado atrás de uma lanchonete à qual se chega pelos muros vulgares, em meio ao lixo, dono da chave do mundo glamouroso que a heroína quer. Um pacto fáustico que poucos parecem ter notado. Ele é o senhor da caixinha azul que se abre com uma chave azul (voltamos ao veludo) que, como a de Pandora, guarda todas as desgraças do mundo. Ele, que só por ser visto pode matar, é o eixo de Hollywood...
Lynch foi capaz de grandes coisas, e continuará sendo. Fazendo o cinema americano de melhor qualidade das últimas décadas, sendo autor e incomodando a indústria. Filma agora um misterioso “Inland Empire”, e podemos esperar o que nos apronta em silêncio. No silêncio de seu clube memorável, onde um simulacro de cantora tomba cantando um rock-balada despedaçado e é recolhida como um boneco de mola que deu o que tinha que dar.

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