Ícone do jazz, o disco “Kind of blue”, de Miles Davis, completa 50 anos e ganha reedição de luxo com dois CDs, incluindo faixas extras, documentário e entrevistas em DVD e um livreto pelo selo Columbia/Legacy, no Brasil SonyBMG. As duas sessões de gravação do álbum foram realizadas em 2 de março e em 22 de abril de 1959 e o disco foi lançado em 17 de agosto de 1959. Miles Davis (1926-1991) encarnou, como poucos, a história da música afro-americana improvisada e sua trajetória é parte integrante e fundamental na evolução da linguagem jazzística ao longo do século 20.
Durante quatro décadas e meia, Miles Davis contribuiu decisivamente com sua música para reformular as noções de harmonia e ritmo, nunca se atendo a rótulos. Por tudo isso, sua música não é fácil de ser codificada ou classificada. Sua influência como inovador e visionário foi decisiva no jazz a partir da segunda metade do século 20, seja no cool, seja no pós-bop, seja no modal, seja ainda na fusion. Mas o certo é que a matriz negra, o blues, sempre esteve presente em sua vida e também que o jazz é uma linguagem musical cuja vitalidade está na essência da transformação. E, aí, o que conta é a sensibilidade do criador e do improvisador, terreno no qual Miles Davis sempre foi mestre ou, mais que isso, gênio.
Para Miles Davis, “a maneira de criar e transformar a música é tentar sempre inventar maneiras de tocar”. Portanto, o instrumentista incorporou ao som cortante e ao lirismo de seu trompete – base de sua concepção rítmica e harmônica – avanços rumo a novos caminhos, elaborando uma música para ouvir e para sentir. Sempre fiel à sua marca fundamental: “Eu toco simplesmente o necessário, nada além; apenas o essencial”.
Miles Davis deixou claro em sua trajetória que o silêncio é tão importante quanto o som. Com seus solos fragmentários – em que a tensão ronda cada fraseado – com as linhas melódicas sendo estendidas ao limite e sempre cercado de grandes instrumentistas, sustentando o clima denso e envolvente de sua música, o trompetista foi um dos criadores mais influentes do século 20. Na autobiografia, lançada no Brasil pela Editora Campus, em meados de 1991, três meses antes de sua morte, Miles revelaria: “Pra eu tocar uma nota, ela tem de soar bem pra mim. Sempre fui assim. E a nota tem de estar no mesmo registro do acorde em que a toquei antes, pelo menos era assim. No bebop, todo mundo tocava muito rápido. Mas eu jamais gostei de tocar um monte de escalas e essa merda toda. Sempre tentei tocar as notas mais importantes do acorde, decompô-lo. Eu ouvia os músicos tocando todas aquelas escalas e nunca nada que a gente pudesse lembrar”.
De 1945 – como integrante do quinteto de Charlie ‘‘Bird’’ Parker – a 1991, Miles Davis construiu sólida carreira musical e fonográfica, interrompida entre 1975 e 1981 para recuperação de um grave acidente automobilístico que o deixou com os dois tornozelos quebrados. Em três décadas, entre 1955 e 1985, Miles consolidou sua trajetória, mantendo a essência inovadora do jazz e articulando novas explorações sonoras.
Por dentro da história
O livro “Kind of blue - A história da obra-prima de Miles Davis” (Editora Barracuda), de Ashley Kahn, é um mergulho fundo em uma das criações mais inventivas do universo jazzístico e um divisor de águas na própria trajetória do trompetista. Prefaciado por Jimmy Cobb, baterista e único músico vivo do sensacional sexteto de Miles Davis que atuou nas duas sessões de gravação de “Kind of blue”, em 1959, o livro revela os bastidores das gravações.
Ashley Kahn, numa manhã de dezembro de 1999, entrou num prédio baixo, quase sem janelas, onde no toldo da entrada se lia Sony Music Studios, um centro de gravação sobre o que um dia fora o depósito da Twentieth Century-Fox Movietone. Quatro meses antes, Ashley Kahn tinha escrito para o New York Times um ensaio sobre a obra-prima da melancolia “Kind of Blue”, de Miles Davis, marcando o 40º aniversário de lançamento do disco. E ali estava a oportunidade única de ouvir a íntegra das fitas master das duas sessões de gravação do histórico disco pela antiga Columbia Records.
Logo que a fita de rolo começou a passar pelo cabeçote, Kahn ouviu as vozes de Miles Davis e de seu produtor Irving Townsend, o som imediatamente reconhecível do trompete de Miles, do tenor de John Coltrane, do alto de Cannonball Adderley, e os demais músicos. “Escutei a harmonia dos riffs começar e parar e fui me aclimatando ao ritmo do processo de gravação. O que eu poderia ouvir ou intuir que revelasse o segredo daquele dia de primavera em que Davis reuniu seu famoso sexteto (Coltrane, Adderley, Bill Evans, Paul Chambers e Jimmy Cobb, com o pianista Wynton Kelly substituindo Evans em uma faixa) numa igreja convertida em estúdio no coração de Manhattan?” Muitas perguntas passavam pela cabeça de Kahn: “O que essa banda conversava enquanto criava música para a posteridade? Aquela seria a voz de Coltrane ou a de Adderley? De que forma – se é que – eles se prepararam? Como era Miles em estúdio? Por que tal take foi interrompido?”.
Para aproximar o leitor do efetivo processo de criação do álbum, Kahn lançou mão da transcrição e da discussão das sessões de gravação. O texto original da contracapa de Bill Evans – “Improvisação no jazz” – foi encontrado “impecavelmente escrito à mão e quase sem edição", assim como as fotografias do engenheiro de som Fred Plaut, jamais publicadas e que mostram as notações musicais de um tema de estrutura modal. Kahn afirma que o trompetista e Evans demonstraram, neste disco, ser dois exploradores musicais unidos por paixões e visões afins: “Eles compartilhavam um lirismo obsessivo e um fluxo melódico que mais sugeria do que manifestamente definia a estrutura musical”. Miles ao falar de Bill Evans demonstra todo o seu sentimento: “Bill possuía aquela chama silenciosa que eu adorava no piano. Da forma como tocava, o som que ele extraía era como silvos de cristal ou água cintilante caindo de uma cachoeira limpa. Red conduzia o ritmo, mas Bill se entregava a ele...”.
Santíssima trindade
Dizzy Gillespie, Miles Davis e Charlie ‘‘Bird’’ Parker encarnaram o Pai, o Filho e o Espírito Santo no bebop, uma verdadeira revolução que lançou as bases do jazz moderno. A linguagem do jazz, a partir do bebop, entre 1944 e 1949, foi alterada radicalmente seja melódica, seja rítmica e harmonicamente, determinando uma ruptura com o tradicional. O jazz passou com o bebop a ser arte e não mero divertimento. Diferentemente do swing, o bebop não servia para dançar, daí sua pouca penetração popular, e mesmo músicos em ascensão, como Bird, Dizzy e Miles, eram atingidos pelo preconceito contra a música negra.
Aos 18 anos, o jovem trompetista negro Miles Dewey Davis III, nascido em Alton, Illinois, pequena cidade ribeirinha do Rio Mississipi, a cerca de 40 quilômetros ao norte de East St. Louis, chegava a Nova York, em setembro de 1944, ainda verde em algumas coisas, como mulheres e drogas, mas confiante em sua capacidade de tocar trompete. O verdadeiro motivo da ida do músico para a Big Apple era procurar Bird e Dizzy, que sacudiam o cenário do jazz com um novo caminho. Assim, Miles foi para Nova York “para sugar tudo que pudesse” de lugares como a Minton’s Playhouse, no Harlem, e muitos outros na Rua 52, que todo o mundo da música chamava de “A Rua”.
“Bird pode ter sido o espírito do bebop, mas Dizzy era ‘a cabeça e as mãos’, aquele que congregava tudo”, disse Miles Davis, que se tornaria a mais nova personagem da Santíssima Trindade do bebop. Estas e muitas outras revelações do mundo e do submundo do jazz estão nas 382 páginas de “Miles Davis - A autobiografia”, livro que provocou impacto devastador quando foi editado nos Estados Unidos no final de 1989. Numa linguagem direta e certeira, como a pegada de um boxeur peso pesado, o livro foi fruto da colaboração entre o trompetista e o jornalista, poeta e professor Quincy Troupe. Contundente e corrosivo, Miles traçou um painel multifacetado do universo jazzístico de 1944 a 1989, permeando cada passagem com uma riqueza de detalhes só possível a quem mergulhou fundo no prazer e na dor que envolviam e vão continuar envolvendo a música.
Miles Davis criou uma música impregnada da essência cultural afro-americana expressa pelo jazz e alinhavada com a matriz negra, o blues. As ideias criativas nunca se esgotaram em Miles Davis. O trompetista advertia: “É preciso ter estilo no que quer que se faça – literatura, música, pintura, moda, boxe, tudo. Como poucos, Miles Davis incorporou a alma da música afro-americana improvisada e sua experimentação sonora é fruto desta vivência e parte essencial da evolução do jazz. Para ele, a música estava sempre mudando. Talvez fosse este seu estilo: o de um homem que nunca teve medo de mudanças
Anexo: So What - gravada em 1958 e editada no ano seguinte. Miles Davis e John Coltrane dividem o palco.
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