segunda-feira, 4 de maio de 2009

Breves considerações sobre a representação da mulher na cultura ocidental

João Marcelo Trindade da Silva
Graduado e Mestre em Letras pela UNESP

A literatura pode oferecer informações características de uma determinada sociedade, considerando que tais sinais são representações, muitas vezes não diretas, que são apresentadas mediante o ponto de vista, ou seja, o pensamento, os valores e as crenças do autor do texto literário. Como a civilização ocidental foi construída incorporando o patriarcalismo, que criou e institucionalizou direitos dos homens de modo a estabelecer formas de dominação sobre as demais parcelas da sociedade, a literatura produzida, principalmente a de autoria masculina, reproduz esta ideologia, na qual a mulher é considerada hierarquicamente inferior e cujas funções essenciais são ser reprodutora da espécie e sexualmente e socialmente submissas:

(...) a história da cultura ocidental se consolidou segundo a tradição do saber masculino. Em função disso, é comum encontrar entre as obras da (...) literatura imagens de mulher estereotipadas segundo o modelo da sociedade patriarcal, caracterizadas pela submissão, pela resignação, pela espera, pelo sofrimento, pela saudade etc. Segundo a crítica feminista, é, sobretudo, a literatura de autoria masculina que tem, ao longo do tempo, representado o emparedamento da mulher nesse silêncio. (ZOLIN, 2001, p. 20.)

O olhar patriarcal discriminatório sobre a mulher e o feminino se afirma na cultura e no pensamento ocidentais, tendo na literatura um veículo de disseminação ideológica eficiente, em função de sua circulação social, que reproduz padrões de comportamento, formas de relações sociais e ideais que inculcam um modelo de feminilidade submisso e passivo a ser seguido.
Contudo, certos fatores como a classe social e a etnia também contribuíram para a formação de uma identidade feminina construída a partir do ponto de vista dominante. A condição econômica e a cor da pele podem promover representações ambíguas e, como exemplo, podemos citar o romance Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marques, no qual, segundo a pesquisadora Cíntia Schwantes,

(...) as mulheres índias, que coincidentemente são pobres, agem pela perdição do protagonista, enquanto as brancas, coincidentemente de classe média, agem para salvá-lo. Se levar em conta o fato de que toda a simpatia do narrador se dirige ao protagonista (homem, branco, rico), conclui-se que apesar de as razões das mulheres índias serem expostas, não há imparcialidade no romance, e elas acabam cumprindo a função de coadjuvantes do antagonista, uma posição que, além de antipática, nem sequer é central. (SCHWANTES, 2002, p. 1.)

Um outro fator que influencia na construção da identidade feminina e na sua representação literária é a divisão de tarefas por gênero, ou seja, homens e mulheres têm funções sociais específicas em virtude das exigências da sociedade que habitam. Em determinado momento histórico-social e econômico, por exemplo, é atribuída a função de trocar as fraldas dos bebês à esposa e, ao marido, não cabia essa função, mas outras, como sustentar economicamente a família. Tais funções atribuídas ao homem ou à mulher se modificam conforme as necessidades sociais num determinado período da história humana.

A imagem feminina construída a partir da ótica dominante foi motivo de investigação e questionamento nos anos 70 e a tese de doutorado de Kate Millet, publicada nos Estados Unidos e intitulada de Sexual politics, contribuiu para que, com a origem da crítica feminista, que considerava a experiência da mulher como leitora e escritora diferente da masculina, se passasse a ler a literatura com o intuito de desconstruir a sua ideologia de gênero, que associava aos sexos masculino e feminino atitudes, valores e comportamentos construídos a partir de um sistema social, cultural, psicológico e literário ao longo do tempo.

Lançar sobre a literatura um olhar investigativo, reflexivo e crítico é o que se propôs fazer a crítica feminista, buscando desconstruir preconceitos no que se refere à mulher escritora, leitora e personagem do texto literário de autoria feminina e masculina.

Num primeiro momento, a crítica feminista analisava as personagens literárias femininas e procurava observar o motivo delas assumirem comumente uma posição secundária no texto. O objetivo era refletir sobre a imagem da mulher e sobre a sua posição social na arte, na literatura, como autora de textos literários e de textos de crítica.

Posteriormente, a crítica feminista recupera e avalia a literatura de autoria feminina, reconhecendo o seu valor artístico, desconsiderado em função dos valores dominantes, marginalizadores do feminino.

Em uma terceira fase, revê as teorias literárias, formadas a partir da experiência masculina. Uma revisão influenciada pelas críticas norte-americana, inglesa e francesa, geradas mediante estudos paralelos realizados nos seus respectivos países. Entretanto, em função da compatibilidade teórica e língua comum, houve uma aproximação entre as teorias inglesas e americanas, ficando a teoria feminista francesa isolada e com um aporte teórico que se revelou, ao longo do tempo, problemático:

(...) a teoria feminista francesa, de orientação psicanalítica, parte do princípio de que a própria estrutura da linguagem depende, para funcionar, do silenciamento do feminino – a experiência feminina, portanto, não é passível de representação (...). Antes ela optou por uma “operação sabotagem” que, desconstruindo a linguagem pelo lado de dentro, abrisse espaço para a representação do feminino. O problema é que implodir a linguagem é a proposta de vários escritores da modernidade, com o intuito de representar um mundo que não cabia mais nos limites da representação realista. (...) Assim, o argumento de que o abandono da lógica, da ordenação cronológica, da representação de molde realista, é uma característica da escrita feminina, encontra-se prejudicado. A saída honrosa das teóricas feministas francesas foi a de afirmar que um texto é feminino não (necessariamente) quando é escrito por uma mulher, mas quando apresenta características femininas. Esse argumento tem uma falha: ele nos leva a considerar que um texto abertamente misógino, como Mafarka, o futurista, de Marinetti, é um texto feminino, ao passo que um texto centrado na experiência feminina, como The Awakening, de Kate Chopin, por seu registro realista, seria um texto masculino. Assim, as contradições dentro do próprio arcabouço teórico feminista francês, aliadas ao isolamento das próprias teóricas dentro da academia, determinou o abandono dessa corrente teórica. Em 1997, Jacques Derrida determinou o fechamento do curso de teoria literária feminista coordenado por Helène Cixous, o maior nome da teoria feminista francesa. (SCHWANTES, 2002, p. 3.)

Se comparada à teoria feminista francesa, a teoria feminista anglo-americana considera a linguagem de uma outra forma, ou seja, defende que, embora ela não seja transparente, é um produto determinado pelas vivências dos sujeitos que a utilizam. Em outras palavras, a teoria anglo-americana dá importância ao funcionamento da linguagem e aos fatores sociais como elementos determinantes na construção das obras literárias.

(...) Assim a escrita de mulheres, não importa se convencional ou revolucionária quanto à forma, independente de suas opções estéticas ou programáticas, será sempre marcada pela experiência de ser mulher numa sociedade falologocêntrica - centrada no falo e nos logos, e, portanto, marginalizadora do feminino (...). (SCHWANTES, 2002, p. 3-4.)

Ao longo da história ocidental, as relações entre homens e mulheres foram marcadas pela dominação do masculino sobre o feminino e, no que se refere ao acesso à educação, à possibilidade da mulher se alfabetizar, o mesmo acontecia. É na Idade Média que as ordens religiosas e sua influência social reforçaram a idéia de superioridade do homem, limitando a possibilidade do ingresso feminino ao campo do saber e ao domínio das habilidades de leitura e escrita, com a justificativa de que tais saberes eram necessidades e competências essencialmente masculinas.

Os representantes da Igreja passaram a ser os responsáveis pelo ensino e se as mulheres quisessem aprender a ler e a escrever teriam de ingressar nos Conventos.

Algumas mulheres, exceções, como as rainhas Marie de France, Eleanor de Aquitaine, Margarite de Navarre, Elizabeth I, da Inglaterra, e Cristina, da Suécia, além de terem acesso à educação, se dedicaram à literatura. Devemos considerar, entretanto, que essas possibilidades, de aprendizado educacional e de expressão artística, foram possíveis devido à condição sócio-econômica dessas mulheres. Em outras palavras, elas eram rainhas, portanto, ricas e com projeção social.

Encontramos na Bíblia, que é um precioso documento literário da cultura religiosa ocidental, referências ao feminino, que serviram de modelos para as representações antropológicas da mulher:

Em Gênesis, 2,18, 25, no que se refere ao matrimonio, “a mulher aceita o marido como Senhor; existia a bigamia masculina, mas não a feminina”. (LOBO, 1997, p. 2.)

Conforme registrado no texto, a primeira mulher, Eva, foi criada a partir de um modelo, Adão. Eva, portanto, é parte de um homem, originada de sua costela e não concebida diretamente por Deus, que criou o homem à sua imagem e semelhança. Nesta representação, ela assume uma posição de inferioridade.

Eva é a extensão de Adão, que é filho de um Deus masculino. Carrega, ainda, a responsabilidade de tê-lo induzido a comer o fruto da Árvore do Conhecimento, acarretando-lhes a expulsão do Paraíso, tendo o homem de trabalhar para garantir a sua subsistência e a mulher de ser submissa e de sentir dor na hora do parto.

Os exemplos citados acima são alguns dos inúmeros que fazem referência à mulher na Bíblia e promovem a reprodução de uma ideologia sobre o feminino que reforça o estabelecimento do masculino como norma e do feminino como desvio.

A mulher, ao longo da história da cultura ocidental, teve identificações diversas: ora era identificada com o mito de “Sofia”, dotada de sabedoria; ora como valente e guerreira, como Joana d’Arc; ora como virgem, dotada de pureza e virtude; ora como bruxa, temida e repudiada pela sociedade, principalmente a Medieval, que a condenava à fogueira; e ora como musa, cuja beleza era digna de exaltação.

Segundo a pesquisadora Luiza Lobo,

a visão da bruxa, feiticeira, deusa, mulher realçada em pureza pelos mitos do marianismo medieval, a musa, exaltada pelo Romantismo, ou a guerreira, figura que surge na literatura do século XX já sem a máscara da mulher disfarçada em cavaleiro medieval ou renascentista (Cruzadas, Joana d’Arc, etc) são facetas de uma afirmação de vida em face da pulsão de morte. Representam uma irmandade que nega o patriarcalismo (...), apresentando a defesa de direitos na lei e liberdade de ação e de experimentação transcendental, para além da censura e no encontro da criação e do prazer. (LOBO, 1997, p. 4-5.)

Concluímos que o pensamento dominante, que marginaliza, oprime e impõe comportamentos e atitudes à mulher, tem a sua ideologia preconceituosa sobre o feminino negada em função dessas mulheres. Embora a representação feminina, no ocidente, tenha sido alicerçada sobre a ideologia patriarcal, cujas características principais são a dominação do homem sobre a Terra e do homem sobre a mulher, encontramos outros bons exemplos de resistência ideológica, como a crítica feminista, que serviram de instrumento de reflexão, crítica, valorização e desconstrução da imagem da mulher desenvolvida mediante a ótica masculina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZOLIN, Lúcia Osana. A república dos sonhos, de Nélida Piñon: a trajetória da emancipação feminina. São José do Rio Preto: 2001. 285 f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Campus de São José do Rio Preto, UNESP.

WANDERLEY, Márcia Cavendish. Imagens da mulher na ficção feminina pós-64. In: Revista mulheres e literatura. Volume 2. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. Disponível em: < http://www.letras.ufrj.br/litcult/revista_mulheres >. Acesso em: 23 de maio de 2004.

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