Uma das poucas vantagens do chamado processo de globalização é que, ao impor um discurso hegemônico, provoca uma reação. Enquanto a elite cinematográfica brasileira faz de tudo, na tentativa de conseguir uma parcela ínfima do mercado, a maioria reage e luta com as armas disponíveis, com destaque para uma arma de baixo custo chamada “bom senso”. À medida que aumentam as formas de controle das chamadas "indústrias de consciências" e a hegemonia dos produtos audiovisuais norte-americanos, crescem também, na mesma proporção, as possibilidades de transgressão, de afirmação das artes e culturas diferenciadas. Em todo o mundo, como reação às tendências do mercado, busca-se a independência, a originalidade, a profundidade, a radicalidade, as novas posturas políticas, as novas estéticas e as novas éticas. Se a cultura de mercado, fácil, rasteira, sem odor e sem inquietações representa o espectro nefasto da globalização, as sociedades que sofrem com esse processo brutal de dominação terminam por gerar anticorpos contra a doença e estabelecem novos paradigmas. No Brasil, esta reação, pouco a pouco, já se inicia nas artes: na música, no teatro, na dança, na literatura, no cinema. Não obstante estes movimentos transformadores, a situação geral no Brasil ainda é de subdesenvolvimento, como uma tragédia mental, e os tesouros mais preciosos, as manifestações da cultura dos povos do Brasil são desprezadas pela mídia, ignoradas pelos artistas mais importantes e jogadas no lixo da história pela incultura de uma elite que se perdeu da nação e de si mesma.
Tenta-se, no Brasil, livrar-se das culturas populares como quem se livra de uma peste. As mais belas e sofisticadas manifestações artísticas são identificadas como atraso, como o passado do qual devemos nos livrar com urgência para parecermos modernos. Resultado: estamos nos transformando em uma cópia malfeita e mal digerida do que há de pior no mundo.
A antropofagia já está dando indigestão. O Brasil está na contramão da história, e fazemos exatamente o contrário do que já fazem muitos países europeus que buscam uma valorização das culturas diferenciadas, das línguas, dos dialetos, das tradições, dos grupos de identidade. O Brasil precisa viver um novo tempo, sem cair na armadilha de um nacionalismo estreito. A nossa melhor arte será aquela que melhor traduzir a nossa diversidade e recriar a nossa herança de humanidade, a nossa cultura múltipla, mestiça, sincrética e universal. É urgente que nos encontremos, novamente, com o homem brasileiro/universal: o herói de mil faces. Somos um povo à procura da própria alma. A salvação do Brasil é a sua cultura, por ser herdeira das principais vertentes das culturas do mundo (ameríndias, latinas, ibéricas, mediterrâneas, árabes, judaicas, africanas, orientais...) e por trazer em si um projeto de universalidade. O filme capaz de "aparecer" no mundo, ou mesmo de conseguir um pequeno nicho de mercado setorizado, é o filme que tenha características brasileiras sem deter-se em um regionalismo fechado ou no folclorismo.
O Brasil é um encontro de mundos que gerou uma nova cultura. Precisamos lapidar os diamantes dos arquétipos, trabalhar com as heranças milenares herdadas dos povos transplantados, doadas pelos povos autóctones e reinventadas pelos povos mestiços. Somos agentes de um novo processo civilizatório, plural, mestiço e tropical e podemos nos integrar à modernidade, sem negarmos nossas tradições e sem desprezarmos as conquistas tecnológicas e as experiências de vanguarda da contemporaneidade. Urge reescrevermos a nossa cultura na sua destinação histórica de universalidade e religarmos essa nova cultura tropical e mestiça, nascida da contribuição de mil povos, com as vertentes culturais fundadoras, provocando novos encontros, novos conflitos, novas soluções e o conseqüente surgimento de novos signos culturais. O Brasil precisa saber que adormeceu em cima de um importante tesouro. Muito mais do que ouro ou petróleo, esse tesouro é a enorme diversidade cultural dos muitos povos e etnias que habitam as várias regiões do País. Jackson do Pandeiro e Pixinguinha já nos tinham ensinado o ritmo; Manuel Bandeira e Cartola, a poesia mais delicada; Graciliano Ramos e Luiz Gonzaga, o sertão; Mário de Andrade e Ariano Suassuna, a cara; Aleijadinho e Conselheiro, a alma; Oscar Niemeyer e Vitalino, a forma; Humberto Mauro e Manuel Bandeira, o lirismo e Nelson Pereira e Glauber Rocha nos deram "régua e compasso", e, nas sombras da década de sessenta, Hélio Silva, Luiz Carlos Barreto e Ricardo Aronovich, já tinham esculpido com luz rostos, alguns rostos para o povo brasileiro.
A Semana de 22, o chamado romance regionalista de 30, a música de Villa-Lobos, a Bossa Nova, o Cinema Novo, a Tropicália, o Movimento Armorial, o Mangue Beat... todos os mais importantes movimentos de renovação das artes e das culturas do Brasil sempre nasceram do encontro de setores avançados da pequena classe média com as manifestações mais profundas das culturas populares brasileir
as. Nesse momento, nós, cineastas, temos mais a aprender do que a ensinar. O povo é generoso e, mais do que moderno, é eterno. Em um mundo em crise em brutal processo de globalização, só existe uma saída: buscarmos a nós mesmos até a raiz da alma e vivermos um tempo de encontro com o "outro", com o mundo, pelo viés da cultura. Mas o que buscamos? Que teatro? Que dança? Que artes plásticas? Que literatura? Que cinema? Qual a jóia mais preciosa que poderemos oferecer a nós mesmos e ao mundo? Será que o modelo de filmes industriais, como simulacros dos filmes da Motion Pictures, é o único caminho para o cinema brasileiro? Poderemos ter uma indústria de cinema como Hollywood?
O Brasil tem como bancar economicamente um desafio dessa proporção, quando nem mesmo os cinemas industriais dos países europeus conseguem fazer frente à hegemonia norte-americana? E, mesmo se pudesse, é esse o nosso caminho? A guerra mais importante que se trava no mundo dito globalizado não é apenas com bombas e aviões, mas também com satélites. É a guerra digital, a guerra audiovisual, a guerra pela conquista das almas. Uma guerra movida pela conquista de mercados, em que os novos deuses são as mercadorias (concretas ou simbólicas) e a suprema felicidade, o consumo. Diante da hegemonia e do massacre da indústria de audiovisual transnacional, qual seria um outro caminho para o cinema brasileiro? Acreditamos que o primeiro passo seria reconhecer que o Brasil já tem várias culturas populares, múltiplas em belezas e cores, culturas expressas no florescimento do caos urbano dos grandes centros, nos reisados, nos maracatus, nas festas de Iemanjá, nos carnavais, nos bumbas-meu-boi, nos artesanatos, nos rituais indígenas, no revigoramento da literatura de cordel urbana, nos hip-hop que bebem nas tradições dos cocos e dos repentistas, nos grafites das grandes metrópoles, etc.
O Brasil já ensaiava formas, cores, poéticas, sons e movimentos, bem antes de pensarmos em reinventar o cinema tropical. Não podemos pensar em uma indústria audiovisual no Brasil sem levar em conta todas essas cores e sons, todas essas histórias e poéticas construídas pelos povos do Brasil. Não podemos dar um salto no futuro sem os pés firmes no nosso próprio chão. Não existe futuro sem a certeza do presente e o reconhecimento do passado. Se a cultura é uma conquista, não deixa também de ser uma herança. O Brasil não pode continuar envergonhado de si mesmo (“achando feio tudo que é espelho"), importando modelos culturais descartáveis, com uma fome voraz e insaciável, para combater a sua própria cultura sob a justificativa de que não temos uma cultura digna e de que seria preciso transplantar uma nova cultura, moderna, branca, inodora, globalizada.
A macdonaldização do cinema brasileiro é suicídio e não temos o direito de cometer um suicídio, nesse momento de crise profunda. É necessário realizar um cinema brasileiro contemporâneo, com uma estética enraizada na riqueza e na diversidade das culturas populares brasileiras que herdaram e recriaram as culturas do mundo; um cinema que trabalhe a universalidade no particular e a diversidade no singular. Precisamos buscar os mitos, os arquétipos, as lutas, as utopias, o cotidiano, a tragédia, a alegria, a força e o frescor de nossa cultura herdeira do mundo. Trata-se de um ato de generosidade. Devemos ofertar a nós mesmos e ao mundo o nosso bem mais precioso: a nossa própria alma, a alma brasileira. Só existirá um cinema brasileiro quando ele for expressão dos imaginários das diversas nações que formam a riqueza e a diversidade cultural dos povos que habitam as várias regiões do País.
O mundo inteiro começa a reagir e se proteger da barbárie audiovisual globalizada, enquanto o Brasil, numa submissão vergonhosa, própria do subdesenvolvimento mental, aceita todo o "lixo cultural" imposto como sendo a modernidade possível... e tardia. Este estado de coisas
não pode continuar. Outra grande questão que se coloca para o nosso cinema, além da sua expressão como reflexo do Brasil profundo, é: como poderemos realizar os nossos filmes como expressões da nossa própria cultura? Como poderemos conquistar o nosso próprio mercado? Como poderemos fazer os nossos filmes circularem entre os povos? Como poderemos romper com os círculos de dependência? A resposta é que precisamos fazer filmes: filmes de todas os formatos e bitolas. Para realizarmos esses filmes não precisamos de grandes somas de dinheiro, nem de grandes aparatos tecnológicos. Poderemos realizá-los com câmeras de 35mm ou de l6mm, com câmeras de vídeo betacam ou digitais, basta que sejam democratizadas as fontes de financiamento e incentivado o surgimento das produtoras independentes. Podemos usar as novas tecnologias sem achar que isso nos salvará, da mesma forma que não devemos ter medo de usar as velhas câmeras e de sermos, por isso, considerados ultrapassados.
Hoje, qualquer velha câmera leva uma enorme vantagem técnica em comparação com as câmeras que Chaplin, Eisenstein, Vertov ou Fritz Lang usaram para realizar as suas obras-primas. O importante não é usarmos a última câmera lançada em Hollywood ou uma BL II, uma câmera digital ou uma velha Arriflex II C; o importante é termos alguma coisa realmente essencial para dizer. Podemos fazer cinema sem os grandes aparatos e as maquinarias pesadas. Podemos usar as luzes do ambiente e as trevas, as lanternas e os faróis de carros, os pedaços de espelhos que refletem o sol e as réstias de luz que entram pela janela. A luz de graça e a lua da graça. Hoje a grande sensibilidade dos negativos e dos suportes magnéticos ou digitais permitem filmar com pouquíssima luz. A luz do espírito é a única que não pode faltar. A realização do cinema brasileiro independente passa pela organização e pelo planejamento de um novo modelo de produção. Antes de o Dogma 95 ser modismo entre nós, Humberto Mauro, Linduarte Noronha, Glauber Rocha, Geraldo Sarno, Eduardo Coutinho e muitos realizadores do Cinema Novo nos tinham ensinado lições preciosas demais para serem esquecidas. E esses cineastas, mesmo sem recursos financeiros e técnicos suficientes, já realizavam um cinema importante, reconhecido no Brasil e no exterior.
Bem antes do Cinema Novo, a Vera Cruz pagara um alto preço para nos mostrar quais eram os caminhos errados, e a chanchada nos ensinava um país cheio de graça. Se não existe um caminho para o cinema brasileiro, sabemos que o andar faz os caminhos e que as veredas abertas pelos que vieram antes precisam ser alargadas e contemporaneizadas. Um destino pode ser feito com o que se tem nas mãos. É necessário produzirmos muitos filmes (que cada filme tenha a medida das suas necessidades), culturalmente significativos e tecnicamente bem elaborados. "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, são importantes não porque custaram pouco ou muito dinheiro, mas porque traduziram um momento fértil de transformações estéticas, culturais, econômicas e políticas da história do nosso país. O desafio é fazer bons filmes, se possível com baixos custos.
Um cinema brasileiro, feito no Brasil, para os povos brasileiros e para os outros povos do mundo, só será possível se contar, não só com a cumplicidade de grupos de realizadores, produtores e exibidores brasileiros, mas também com o apoio de redes de cooperações e de co-produções com o cinema independente internacional, que contestam a hegemonia hollyoodiana, inclusive dentro dos Estados Unidos da América. Os nossos parceiros prioritários deverão ser os povos fundadores da diversidade cultural brasileira. Precisamos nos encontrar com essas vertentes fundadoras da multiplicidade da nossa cultura para nos revigorar e também fecundá-las com o sopro da mestiçagem e da diversidade.
Um encontro feito de desafios e de generosidade. Que sejam estabelecidos novos pactos de cooperação com intercâmbios de equipamentos, fitas, negativos, técnicos, laboratórios alternativos, serviços de pós-produção, distribuição recíproca, etc. Estaremos inaugurando, assim, um novo processo de universalização das culturas dos povos baseado na diversidade e na reciprocidade. Os independentes estrangeiros virão ao Brasil participar das nossas produções e os independentes brasileiros irão aos seus países para retribuir a colaboração. Técnicos independentes brasileiros e estrangeiros (convidados) defenderão uma nova pátria: o cinema. Os filmes realizados no Brasil serão filmes brasileiros, visceralmente ligados à cultura brasileira. No entanto, no Brasil e no exterior, defenderemos uma mesma idéia: o direito dos povos às suas próprias imagens, à reciprocidade e à universalização dessas imagens. O nosso cinema deve ser um cinema radicalmente brasileiro: tropical, sincrético, mestiço e universal. Um cinema que, por ser brasileiro, pertence ao mundo, já que a cultura brasileira não pertence apenas ao povo brasileiro, mas é, também, um patrimônio de toda a humanidade.