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A cidade faz festa para acolher a corte portuguesa e planos para se transformar numa maravilha
Por enquanto, é uma festa só. Os moradores de São Sebastião do Rio de Janeiro, que sempre abrem os braços para receber gente famosa, estão encantados com tantos príncipes, princesas e outros nobres recém-chegados à cidade. Pode haver até certo exagero no desejo de agradar, refletido em relatos como o do habitual cronista da cidade, Luiz Gonçalves dos Santos, padre e culto historiador que a verve popular apelidou de Perereca: "Ao som do estrondo das salvas, ouvido a léguas de distância, e do alegre repicar dos sinos das igrejas, o espírito de todos se elevou, e homens, mulheres, velhos e crianças correram pelas ruas, ansiosos para assistir à extraordinária chegada da esquadra real". A curiosidade e até a comoção, no entanto, foram verdadeiras quando o príncipe regente João, a princesa Carlota Joaquina, seus oito filhos e sua corte aportaram na baía da cidade. O primeiro ato do casal ao pisar em terra firme foi rezar diante do altar armado no cais e agradecer pelo fim da arriscada viagem. No Largo do Paço, arcos triunfais retratavam dom João entre nuvens, tendo a seus pés os súditos ajoelhados e recebendo frutos típicos ofertados por um nativo da terra – é uma alegoria, claro, mas sabe-se que pelo menos caju e pitanga, ambos de sabor embriagante, os portugueses já provaram. De lá, sob um pálio de seda vermelha, o príncipe e sua comitiva, acompanhados das autoridades locais, seguiram para a catedral. As ruas estavam forradas de areia branca e folhas aromáticas; as janelas e os balcões das casas, enfeitados com colchas de seda e damasco; a população lançava flores; um coral entoava hinos de louvor. Enfim, uma espécie de Carnaval, só que mais solene.
Ninguém aqui ainda está acostumado a lidar com a realeza, mas todo mundo pensava a mesma coisa: o que será que eles estão achando? É difícil decifrar pela expressão do príncipe, muito sério e composto, ou da princesa, com a habitual cara de brava. Mas não há quem chegue ao Rio de Janeiro e não se encante com o que vê, como os cariocas nunca se cansam de ouvir. A admiração começa logo na entrada da baía unanimemente considerada maravilhosa, pontilhada de ilhas e cercada de montanhas. Quando ouvem o nome da mais imponente, Pão de Açúcar, e a explicação (assim se chama o cone de açúcar que se retira das fôrmas usadas nos engenhos), todos concordam com a cabeça, sorriem e redobram os elogios. Embora já comece a correr o boato de que os portugueses não estão exatamente impressionados com a cidade em si, com suas casinhas modestas e ruas estreitas, onde nem andar de carruagem se pode. Está certo que o Rio não é nenhuma Paris – tem atualmente um décimo dos 600 000 habitantes da capital francesa. Mas oferece programas interessantes, como passear no jardim público à beira-mar, com seus quiosques, bancos de mármore, fontes e estátuas. Dá até para ir à noite, por causa das lanternas penduradas nas árvores.
Menos freqüentes e mais movimentados são os desfiles marítimos de navios enfeitados nas águas da baía, quase iguais aos de Veneza. Todo mundo sai para ver. Outra atração sazonal é a pesca da baleia. Na época em que elas aparecem por aqui, dezenas de barcos agindo coordenadamente as cercam, e muita gente acompanha a ação em terra. Um arpoador vai em pé na proa de cada barco para lançar o ferro pontiagudo. Por causa disso, já existe quem chame de ponta do arpoador uma das extremidades da selvagem e bela praia da freguesia de Copacabana. Há quem se compadeça dos animais, em especial quando, arpoados, jorram sangue e lutam bravamente pela vida. Recusam-se até a chamá-los de monstros marinhos. Para os espíritos mais sensíveis, o Rio oferece outras atrações. A Igreja da Glória provavelmente não se compara às catedrais européias, mas é cheia de graça, sem trocadilhos. Quem tem fôlego para subir o morro a pé é recompensado pela vista sublime. Para contemplar a cidade, o melhor é fazer outra escalada e chegar até a Matriz de São Sebastião, que recebeu o príncipe regente para o culto de ação de graças. Os recém-chegados precisam entender que o Rio não é pequeno – a paisagem natural a seu redor é que é enorme. O passeio mais rápido ao entorno da cidade logo os colocará no coração da mata luxuriante, com sua enorme variedade de pássaros, borboletas e macacos. Bem, eles logo descobrirão que é melhor não falar dos macacos. Das cobras, nem pensar.
Na condição de moradores da cidade que é a capital e também o porto mais movimentado do Brasil, os cariocas recebem mais informações do exterior e, com toda a justiça, querem ser considerados parte do mundo civilizado. Isso aumenta a expectativa pela chegada dos portugueses. Apesar das naturais resistências da colônia gigantesca, fadada a um destino maior, em relação à pequena e hoje alquebrada matriz, a transferência do príncipe regente e de toda a corte é reconhecida como um acontecimento capaz de provocar mudanças telúricas. A notícia chegou ao Rio há menos de dois meses, no dia 14 de janeiro, por rotas tortuosas (um barco que faz navegação de cabotagem pela costa brasileira ouviu de jangadeiros de Pernambuco que lá havia aportado um navio português avariado, o Minerva, que deveria preparar caminho na capital para a transferência da corte).
Devido à demora e ao inusitado da novidade, a burocracia local, comandada por Marcos de Noronha e Brito, o vice-rei, que por motivos óbvios deixou esse cargo, esfalfou-se nos preparativos. Agora chamado pelo título de família, o conde dos Arcos desocupou a própria casa, o Paço dos Vice-Reis, mais a vizinha Casa da Câmara e Cadeia. Aí se acomodaram o príncipe e a princesa (imagina-se seu desconforto – há anos não vivem juntos), seus filhos e centenas de damas e criados. Também requisitado, o convento das carmelitas abrigou a rainha Maria – mais calma, embora sempre tresloucada – e comitiva. Todos os edifícios foram reformados, caiados, pintados, forrados e munidos de passarelas de comunicação para que os fidalgos não ponham os pés na lama. De São Paulo e Minas Gerais vieram carregamentos de carnes, frutas, feijão, milho – esses dois últimos incomuns na dieta portuguesa. A série de festividades de boas-vindas vai até o dia 15, com a muito aguardada cerimônia do beija-mão. O Senado da Câmara do Rio de Janeiro consignou 4 contos de réis para as luminárias que decoraram o Largo do Paço no desembarque e outro tanto para bancar a iluminação em volta do agora palácio real, certo de que o momentoso evento entrará "nos anais da história portuguesa e na do gênero humano". Entre as medidas não tão populares, casas de padrão mais alto foram confiscadas para acomodar os figurões da corte – um PR (Príncipe Regente, ou, na versão popular, Ponha-se na Rua) pintado na fachada é o sinal para a família procurar outras acomodações. Proprietários abastados escondem sinais de riqueza e "empobrecem" de um dia para o outro, tentando escapar da ordem. Será um mau sinal se, para compensar, começarem a pensar em receber sinecuras do príncipe.
Passadas as festas, também será o caso de pensar quem vai pagar a conta dessa revoada de alguns milhares de pessoas – ninguém parou para contá-las direito –, entre nobres e plebeus, agora desprovidos de tudo. Novos edifícios terão de ser erguidos para alojar os órgãos públicos, e a própria família real precisará ser acomodada a contento. Em compensação, na área cultural o Rio de Janeiro com certeza vai se beneficiar tremendamente da presença da corte. Os livros da Biblioteca da Ajuda, esquecidos no cais de Lisboa no corre-corre da partida, já estão a caminho. As edições raras e outras preciosidades constituem um tesouro de conhecimento mais valioso do que qualquer bem material que a corte tenha trazido para o Brasil. Amante da música, o príncipe João não deixará de instalar aqui ao menos um teatro digno do nome. Causa ainda certa estranheza, num país que, para onde se olhe, é uma floresta só, o plano de criar um jardim botânico, um lugar onde se plantam árvores exóticas. Mas, se toda metrópole hoje tem o seu, o Rio de Janeiro também haverá de querer um. Dá até para sonhar com o tempo em que, além de lindo, o Rio será elegante, culto e cosmopolita. Somando a isso ruas limpas, governantes honestos, administradores competentes e funcionários impolutos, vai se tornar uma maravilha de cidade.
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