sábado, 22 de janeiro de 2011
O príncipe imperfeito
Revista Veja
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Ele queria uma vida de caçadas, assados e missa cantada. A mulher e o corso implacável acabaram com seu sossego
Ele vai entrar para a história como dom João VI, rei de Portugal. Por enquanto, não é rei nem tem número. Exceto o nome com que deverá ser conhecido, muita coisa ainda está em aberto para este homem de 40 anos que se tornou o primeiro chefe de uma família real a pisar no solo do novo continente. O príncipe regente não é exatamente um estadista de destaque – nem, reconheça-se, um homem bonito –, mas na última hora tomou a decisão que lhe salvou a pele e a de toda a corte portuguesa: a retirada, se quisermos usar a palavra polida para fuga, com destino ao Brasil. É o gesto pragmático que marcará para sempre a biografia do príncipe de muitos defeitos, que a história talvez se encarregará de ampliar, e algumas boas idéias. Pragmatismo pode não ser uma virtude muito exaltada, mas, no caso de dom João, fez a diferença entre sobreviver ou se tornar mais um dos reis destronados que vivem exilados em Londres, humilhados pela hegemonia francesa. A decisão, difícil e sem precedentes, de transferir a coroa portuguesa para o Brasil ganha uma dimensão especial quando se considera que João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antônio Domingos Rafael de Bragança tem mais problemas do que nomes. Príncipe herdeiro de um país que, tecnicamente, não existe no momento, ele tem sido incessantemente perseguido por Napoleão Bonaparte, pressionado pelos ingleses, traído pelos sogros espanhóis e enganado pela mulher, que conspira o tempo todo contra o próprio marido. A mãe, todos sabem, é louca.
A conjunção de elementos políticos e familiares desfavoráveis desabou sobre os ombros não muito preparados de um príncipe de temperamento conciliador e ao mesmo tempo desconfiado, com certa tendência à melancolia. Se o mundo em violenta transformação não o arrancasse do gosto pelo isolamento, ele provavelmente continuaria ensimesmado, quase recluso no Palácio de Mafra, o grandioso complexo barroco, com igreja, convento, biblioteca e jardins que convidam à elevação da alma, longe de Lisboa. Lá, entre padres, criados e os cortesãos mais íntimos, e bem longe da mulher, a princesa Carlota, ele se trancafiou ao longo de quase todo o ano passado. Nos intermináveis corredores e salões, enfeitados com mármores raros e madeiras brasileiras, recebeu a sucessão de más notícias – a França estava decidida a engolir Portugal, não importando quanto tentasse contemporizar. Se conseguisse convencer ninguém menos que Napoleão Bonaparte a mudar de idéia, compraria briga com os ingleses, aliados clássicos de Portugal. Para se distrair do dilema torturante, o regente passou os dias decisivos de 1807 dividido entre as missas, os cânticos religiosos e a caça, passatempo aristocrático que também rende os assados suculentos tão apreciados em sua mesa. Os assuntos de estado, cada vez mais prementes, foram tratados por meio dos ministros, que se deslocavam de Lisboa, e de representantes estrangeiros, sobretudo os ingleses, que não se cansavam de avisar: está chegando a hora. Não é difícil avaliar quanto custou a um príncipe que é tudo, menos aventureiro, abrir mão da vida que sempre conheceu e embarcar na perigosa viagem rumo ao Brasil.
Agora, quando se comemora que a aventura chegou a bom termo, prova do acerto da decisão, o príncipe João talvez se sinta um pouco mais seguro e finalmente supere o fato de que, na verdade, não nasceu para ser rei. Aos brasileiros, até hoje só acostumados à monarquia muito a distância, convém lembrar que os príncipes nascidos em famílias reais são todos mimados e cobertos de honrarias, mas importante mesmo é um só: o filho mais velho e herdeiro da coroa. Durante a infância e a juventude, João, o segundo na linha de sucessão, foi uma espécie de reserva, enquanto seu irmão José, seis anos mais velho, era preparado para ser rei. Por volta dos 18 anos, João começou a ser encarado como potencial herdeiro porque José, embora casado havia tempo, ainda não tinha produzido nenhum filho. Como é quase obrigatório na família real portuguesa, que costuma casar seus infantes – como são chamados os príncipes mais novos – com os equivalentes espanhóis, contratou-se o casamento dinástico de João com Carlota Joaquina, filha do rei Carlos IV e da rainha Maria Luísa da Espanha. Não se espera que esse tipo de união seja exemplo de felicidade conjugal, mas, mesmo pelos parâmetros mais flexíveis, pode-se dizer que foi um casamento feito no inferno. Carlota é teimosa, esperta, determinada, vingativa e extremamente insatisfeita com o marido. Sem ânimo e às voltas com doenças (sofre de erisipela, varizes, hemorróidas e tonturas, além dos acessos melancólicos), parece quase um milagre que ele tenha tido nove filhos com Carlota, dos quais sobrevivem oito. As más-línguas dizem que o milagre pode ter explicações mais terrenas. A caçula do casal, Ana de Jesus Maria, tem pouco mais de 1 ano, sendo que, há mais tempo do que permitiria a boa reputação da princesa, João e Carlota só se encontram em ocasiões oficiais.
O destino de João deu a primeira das muitas guinadas com a prematura morte do príncipe José, em 1788. Aos 21 anos, ele se tornou o herdeiro do trono. Quatro anos depois, em janeiro de 1792, uma junta médica declarou que sua mãe, a rainha Maria I, estava "em estado de loucura"; em 10 de março, o Conselho de Estado pediu ao príncipe João que assumisse as rédeas do reino. Ele se tornou inicialmente príncipe governante e, em 1799, príncipe regente. Portugal já estava consumido pelo furacão de mudanças desencadeado com a revolução na França. Sem vocação aparente para o comando, João também enfrentava o inimigo interno – a própria mulher, que por duas vezes urdiu conspirações para depô-lo. Cercado de um pequeno grupo de conselheiros de confiança, vem aprendendo a reinar. Com sua expressão sossegada, o lábio superior frouxo dos Habsburgo, de quem descende, a barriguinha saliente e as coxas roliças, o regente pode dar a impressão de que não vê muito do que se passa à sua volta. Engano: ele lê e comenta os documentos que lhe são encaminhados, ouve os ministros, mantém-se a par das intrigas de sua corte. Chora com facilidade e refere-se a si mesmo na terceira pessoa ("Sua Majestade"). Católico devoto, embora sem os extremos de fanatismo de sua mãe, é apreciador entusiasta da música sacra, dos cantos gregorianos, da missa cantada – quando mais jovem, arriscava-se inclusive na difícil arte do cantochão. Parece solitário, o que é comum aos que vivem no mundo rarefeito dos homens que vão ser reis. É impossível que não tenha sido corroído pela humilhação a que a mulher o expôs com a conspiração dos fidalgos, o fracassado complô de 1805 para depô-lo. Os ares do Brasil podem fazer bem a este príncipe, que, sem nunca ter pisado num campo de batalha, tem muitos motivos para estar cansado de guerra. Espera-se que o contrário também seja verdadeiro.
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